Reconstruções de um compositor dilacerado
O Coro Casa da Música apresenta amanhã em primeira audição mundial nove motetes de Carlo Gesualdo restaurados pelo maestro James Wood
Os motetes da colectânea Sacrae Cantiones II (1603), da autoria de Carlo Gesualdo (1566-1613), um dos mais extravagantes vultos do Maneirismo musical, não voltaram provavelmente a ser cantados desde o século XVII, mas alguns deles serão novamente ouvidos amanhã na Casa da Música, no Porto, numa reconstrução efectuada pelo maestro e compositor James Wood.
Nas épocas renascentista e maneirista, as diferentes partes vocais de uma obra polifónica eram fixadas em livros separados destinados a cada cantor ou naipe de cantores. Acontece que dois dos livros das Sacrae Cantiones II, escritas para seis e sete vozes, se perderam, tornando assim inviável a sua execução. James Wood concluiu recentemente a reconstrução das secções em falta (o baixo e o contralto) dos 20 motetes da colecção, dos quais nove serão apresentados em primeira audição mundial no próximo concerto do Coro Casa da Música (domingo, às 12h), em conjunto com obras de dois dos mais ilustres polifonistas portugueses da mesma época. De Duarte Lobo serão cantados os motetes Audivi vocem de caelo e Pater peccavi e de Frei Manuel Cardoso será possível ouvir a Missa Regina Caeli laetare. O concerto será dirigido pelo próprio James Wood.
Carlo Gesualdo, Príncipe de Venosa, é hoje conhecido pelos seus ousados madrigais, repletos de pungentes cromatismos e dissonâncias, mas também pela sua vida dilacerada. Em 1590 matou a mulher (Maria d"Avalos) e o amante desta (Fabrizio Carafa, Duque de Andria) depois de os apanhar in flagrante delicto, voltando a casar em 1594 com Leonora d"Este. Mudou-se para a corte de Ferrara mas o matrimónio também não correu bem e conta-se que Gesualdo começou a maltratar Leonora.
Culpa e remorso
Em 1597 regressou ao seu castelo, onde passava longos períodos de isolamento e se tornou obsessivo com sentimentos de culpa e remorso. Relatos da época falam das suas tendências sadomasoquistas, dos amantes de ambos os sexos, dos seus delírios e da devoção que o levou a encomendar a Giovanni Balducco uma pintura de altar para o convento de Santa Maria delle Grazie, intitulada Il perdono di Carlo Gesualdo.
Gesualdo começou a escrever música sacra com grande empenho no início do século XVII, dando preferência a textos de carácter penitencial. Tal como nos madrigais, as peças são marcadas por emoções extremas e por uma intensa relação texto-música.
Os dois livros de Sacrae Cantiones foram impressos em Nápoles em 1603 e as três séries de Responsórios para o Ofício de Trevas, na Semana Santa, foram publicados em 1611.
Ao estilo de Gesualdo
Entre 1957 e 1959, Stravinsky realizou uma tentativa de reconstrução de três peças das Sacrae Cantiones. Deixou as partes existentes intactas e compôs as vozes omissas, mas o resultado foi assumidamente uma espécie de fusão de estilos. Depois disso, apenas James Wood voltou a pegar na tarefa de restauro destas peças em 1977, quando era maestro da Schola Cantorum de Oxford, mas só completou a edição total no ano passado.
O maestro britânico procurou aproximar-se ao máximo do estilo de Gesualdo e aplicar as técnicas de composição e as regras ditadas por uma análise meticulosa da música sobrevivente, estudando a fundo os processos da escrita imitativa, o tratamento do texto, o uso dos cromatismos e da dissonância ou o perfil dos intervalos melódicos. Nunca saberemos como eram as vozes originais, mas graças a Wood passamos a poder usufruir de uma das obras fundamentais do Príncipe de Venosa, que até agora permanecia na sombra.