O cigano acha que é melhor do que o não-cigano

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O estereótipo pinta os ciganos como "agressivos, mal-educados, sem respeito". De onde vem isto? "Do desconhecimento", diz Casa-Nova adriano miranda

Valorizam os mais velhos. Recusam o trabalho assalariado. São orgulhosos. Têm uma imagem negativa dos não-ciganos. Como os não-ciganos têm deles. Maria José Casa-Nova, investigadora da Universidade do Minho, estuda há anos a minoria menos querida do país

Orgulham-se de tratar bem como ninguém das suas crianças, dos seus idosos, dos seus doentes. Satisfazem grande parte dos desejos infantis - optam pela explicação em vez do castigo. Encaram os mais velhos como memórias vivas - cabe ao filho mais novo casar e morar com os pais. Quando um cigano é internado, a lógica de tratamento transfere-se para o hospital: a família desloca-se em peso - para o enfermo não se sentir sozinho perante a doença, perante o "outro".

Já nada surpreende Maria José Casa-Nova. Conhece a comunidade como nenhum outro paílha (não-cigano). Estuda-a desde 1991. É uma curiosidade que lhe vem da infância. Quantos acamparam perto de casa e bateram à porta a pedir água? Via-os vir e via-os ir, sem saber de onde vinham nem para onde iam. E, como as outras crianças, ouvia: "Se te portares mal, os ciganos levam-te!".

Dedicou-lhes o trabalho de fim de curso e o mestrado na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. Etnografia e produção de conhecimento - reflexões críticas a partir de uma investigação com ciganos portugueses, lançado no dia 12 em Lisboa e a lançar na terça-feira em Braga, no Instituto de Educação da Universidade do Minho, é parte do doutoramento que defendeu no Departamento de Antropologia da Universidade de Granada (Espanha).

Serão entre 40 mil a 50 mil os ciganos portugueses. Ninguém sabe ao certo - os censos não trazem referências à pertença étnica: é proibido. De ascendência Rom, Sinti, Manouch, Calé, chegaram no século XVI. E, desde então, foram objecto de perseguições várias.

Pouco a pouco, construiu-se e cristalizou-se um "estatuto desfavorecido, subordinado, com um fechamento dentro de uma determinada imagem". O estereótipo pinta-os como "problemáticos, barulhentos, porcos, agressivos, mal-educados, sem respeito". De onde vem isto? "Do desconhecimento", diz Casa-Nova. "Todos parecem saber como são, mas poucos convivem com eles."

Orgulhosos e altivos

Entre 2003 e 2006, a investigadora da Universidade do Minho mergulhou a fundo no quotidiano de cinco famílias alargadas, constituídas por 55 agregados - mais de 190 pessoas - do Norte de Portugal. Procurou "conhecer e compreender processos de produção e reprodução cultural e social: estratégias de manutenção e de reconfiguração cultural que permitem que a cultura cigana, apesar de diferente de há 500 anos, continue a ser definidora de uma forma de vida e a auto e hetero-identificar os seus portadores como ciganos".

Sabe que os ciganos não se vêem como os vêem. Os ciganos vêem-se como orgulhosos e altivos: "Recusam, na sua maioria, o trabalho assalariado, que implique uma subordinação a uma entidade patronal; uma subordinação ao "outro" - pertencente à sociedade maioritária". E isso será uma particularidade sua, à qual não será alheio o sentimento de inferioridade que tentam ocultar ao "outro". Os imigrantes negros, por exemplo, "apresentam uma relação de subordinação com a sociedade maioritária que implica a aceitação de ocupações que os coloca nos níveis mais baixos da hierarquia social".

São a minoria menos querida dos portugueses lusos. E reagem a essa rejeição. Apontam-lhes avareza ("são capazes de não comer para poupar"), subalternidade ("sujeitam-se a tanto para ganhar meia dúzia de tostões"), promiscuidade ("[as mulheres] andam com todos") e perda de valores ("matam os filhos, violam crianças, não respeitam os mais velhos").

"Enfrentar o "outro" que inferioriza pode passar por estratégias de evitamento e ou de submissão ou estratégias de fechamento sobre si próprio e de altivez e/ou arrogância no contacto que são também formas de esconder a percepção da sua inferiorização", escreve Casa-Nova. Ao estudar aquele grupo, a investigadora percebeu como as estratégias de manutenção dos valores culturais eram "fundamentais para inverter a lógica de dominação".

Lei paralela à do país

A lei cigana regula as suas atitudes e acções - uma "lei oral ancestral, reproduzida através de gerações", paralela à lei do país. Os comportamentos mais graves, que acarretam desonra ou morte, são sancionados pelos homens mais velhos, de prestígio, que enformam o tribunal cigano. Para os comportamentos menos graves, bastará o aconselhamento junto de adultos respeitados.

O casamento é uma das práticas mais regulamentadas. Amiúde, os pais combinam os casamentos das suas crianças. Tentam assegurar-se que os descendentes não ficarão solteiros nem casarão com estranhos. Só a mulher pode "dar cabaças" (romper o compromisso). Se o homem o pudesse fazer, a mulher teria maior dificuldade em encontrar novo parceiro porque, pelo machismo que grassa, dela se deduziria um problema - de fidelidade ou de saúde.

Quarenta e sete dos 55 núcleos familiares estudados resultam de uniões endogâmicas - entre primos, sobretudo. Casa-Nova contou apenas oito uniões exogâmicas - seis ciganos casados com paílhas e duas ciganas casadas com paílhos. E constatou alguma pressão para tal escassez.

"Um homem da sua cultura é outra cabeça, é outra cabeça", disse-lhe uma rapariga cigana. Não é só uma protecção contra diferentes formas de ver o mundo. É também um modo de manter a pureza da etnia. "O cigano acha que é mais, que é melhor do que o não-cigano", disse-lhe outra.

Pela tradição, a mulher alia-se à família do homem: casar com um paílha é arriscar assimilação - a comunidade perde um elemento. Para o evitar, tenta-se inverter o comportamento, "converter" o não-cigano à cultura cigana, ganhar mais um elemento: "Se tiveres algum problema, todos os ciganos estão contigo; se disseres "sou cigano", toda a gente foge."

Namorar com uma paílha é "uma vitória" face os homens da sociedade maioritária. O casamento, porém, embora mais tolerado, também traz consequências. "Deixa de poder participar em muitas coisas dos ciganos, como ser padrinho de casamento", exemplificou um jovem.

Sinais de mudança

A virgindade é hipervalorizada - é por custar tanto mantê-la que as raparigas casam entre os 14 e 19 anos e os rapazes entre os 15 e os 21. Nela se joga a ambígua situação da mulher cigana. "A mulher funciona como a força e a fragilidade da comunidade, dado que nela reside o orgulho, a honra ou a desonra do homem (pai, irmão, noivo, marido)", explica Casa-Nova. Isto torna-a "refém" da comunidade, impede-a "de trajectórias escolares prolongadas e ou de uma inserção profissional que não se constitua (como as feiras) numa extensão da esfera doméstica, realizada sob a visão e consequente controlo da comunidade".

De acordo com a investigadora, "o controlo comunitário e grupal sobre o indivíduo é uma constante quotidiana". Exerce-se "de diferentes formas, desde a ameaça de activação do sistema próprio de justiça, à ameaça de exclusão, passando pela ridicularização e pela censura, funcionando como uma poderosa forma de regulação e preservação de comportamentos individuais concordantes com a lógica colectiva e de concretização de expectativas de vida".

A escolaridade é reduzida entre os ciganos portugueses - mais ainda entre as mulheres. Casa-Nova, porém, vislumbrou sinais evidentes de mudança: a geração de 40 anos da comunidade estudada é analfabeta; a de 30 anos vai do analfabetismo ao 2.º ano do 1.º ciclo; a de 20 anos é a do 4.º ano.

A investigadora da Universidade do Minho captou algumas estratégias: reprovar de propósito para continuar na escola. "A escola funciona para elas como um espaço de liberdade, como um espaço de relações inter-étnicas e de sociabilidade, que lhes está proibido fora do espaço escolar pela vigilância de que são alvo."

Na opinião da autora, na origem da ausência de diálogos potenciadores de redes de sociabilidade entre ciganos e não-ciganos está precisamente a "imagem mútua negativa secularmente construída na base de uma memória cultural que se tem perpetuado de geração em geração".

Urge desconstruir estereótipos e construir conhecimento efectivo, diz. "E este só é possível na base da convivência nos mais diversos espaços de sociabilidade: do trabalho ao hospital, do jardim às associações, da segurança social, à escola, ao bairro", defende. "Um dos desafios actuais é pensar a diferença, qualquer diferença, a partir da própria diferença, sem que isso implique uma inferiorização ou uma dominação do "outro". E esta é uma das utopias (enquanto lugares em construção) que falta concretizar", remata.

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