Entre o operário ferroviário de Munique que fundou o partido nazi, Anton Drexler, e o militar aristocrata, morfinómano e decadente que chegou a ser o número dois do III Reich, Hermann Goring, parece ir a distância de um mundo. Porém, no ambiente de colapso social, económico e moral da Alemanha do pós-guerra, gente imensamente diferente haveria de se juntar, pouco a pouco, para protagonizar uma experiência de transformação revolucionária de um país e da Europa com as mais trágicas consequências.
Conversar com Ferran Gallego é tentar perceber que elementos da nossa cultura, então mas também hoje, tornaram possível uma deriva cujos fantasmas ainda não se afastaram por completo das sociedades contemporâneas.
Nos doze retratos que traça no livro surgem-nos alguns personagens que nem sempre caiem no estereótipo do nazi bruto, animalesco, personagens diferentes, alguns deles complexos e contraditórios. Até que ponto era complexo e variado o nacional-socialismo?
Suficientemente complexo e variado para ter conseguido conquistar o apoio de dezenas de milhões de alemães normais, que não eram sádicos nem extremistas. De facto estamos demasiado habituados a olhar para os nazis como uns brutos e a reduzir o nazismo ao seu carácter monstruoso. Isso acontece porque é mais cómodo olhar para esse fenómeno dessa forma, porque assim consideramos que foi uma loucura que nada teve a ver connosco e com a história europeia. Porém o nazismo foi uma deriva patológica da mesma cultura europeia que foi capaz de conceptualizar os direitos humanos. O que hoje nos surge como completamente extravagante foi, na altura, adoptado como uma ideologia normal por milhões de pessoas, atraindo até grandes intelectuais como Martin Heidegger, cidadãos que viram no movimento um sinal de que a Vontade podia vencer a Razão.
O discurso da vontade, a afirmação política de que somos capazes se quisermos: essa linguagem ainda hoje está presente no espaço público...
É por isso que continua a ser importante estudar o nazismo pois ele nasceu da nossa cultura. Há discursos e comportamentos que podem regressar, há pedaços da nossa cultura que fizeram o nazismo e não desapareceram, como as identidades radicais, a obsessão pelo triunfo individual, a indiferença moral. O nazismo foi possível porque se acreditou que o mundo do século XIX tinha sido destruído e se podia fazer o que quiséssemos em nome da comunidade e com a força da Vontade.
Todos os que retrata são ateus ou agnósticos. Há alguma relação entre a ausência de religião e de ralação com Deus e o advento destas ideologias?
O nazismo não pode aceitar um Deus que afirma que os homens são todos iguais e feitos à sua imagem e semelhança. Há um espiritualismo nos nazis, mas que afirma a superioridade de uma comunidade-raça. Não foi por acaso que muitos dos grandes opositores do nazismo saíram do cristianismo protestante e, também, de entre os católicos. Para um cristão todas as vidas valem o mesmo, para um nazi as vidas não têm todas o mesmo valor, podem até não ter nenhum valor. Pior: há vidas que o nazi considera portadoras de infecções sociais e, portanto, vidas que têm de ser "extirpadas".
Temos porém de olhar para o nazismo na sua época, compreendendo o trauma que a sociedade europeia sentiu na sequência da I Guerra Mundial. Creio que foi Dostoievsky que escreveu que se Deus morre tudo passa a ser permitido, e foi um pouco isso que aconteceu na Europa nessa altura. Teve-se a percepção de que a emergência de um enorme poder técnico permitiria ultrapassar os limites da Humanidade, e isso coincidiu com um momento em que desapareceram as baias morais. Foi uma mistura explosiva.
Nos anos de 1930 a democracia não era popular na Europa, praticamente só o Reino Unido resistiu à vaga das ditaduras...
O nazismo era único, mas movimentos como o fascismo italiano, o franquismo espanhol, e tantos outros, foram movimentos que se afirmaram como revolucionários, que se sentiram protagonistas num momento de mudança, e que acabaram por ter algumas relações de parentesco mesmo não tendo sido idênticos. Partilhavam uma cultura anti-democrática que queria destruir a herança de 1789, o legado da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Há uma passagem nos diários de Goebbels em que ele escreve: "Hoje acabou a História que começou em 1789". Queriam destruir o sentido da política tal como se afirmara desde a Revolução Francesa, ou mesmo da Revolução Americana. Queriam acabar com a ideia de cidadãos iguais e substitui-la pela da comunidade de células que habitam num mesmo organismo, num mesmo corpo nacional.
Drexler, o primeiro companheiro de Hitler que retrata no livro, o operário ferroviário que funda o partido, é tratado de uma forma quase compassiva. Ele declara-se ao mesmo tempo socialista e alguém que aspira a resgatar a sua comunidade. Porquê a referência a socialismo?
No centro da Europa houve uma tradição que opunha o chamado "socialismo alemão" ao "socialismo marxista", mas que entendia o socialismo como um "comunitarismo nacionalista" e não tinha raízes nos movimentos operários clássicos.
Mas ambos esses "socialismos" detestavam a burguesia.
O nazi via na burguesia um sinal da degenerescência ideológica e cultural e por isso também a desprezava. Era um símbolo da decadência contra o qual havia que desencadear um movimento de regeneração. Os nazis declaravam-se mesmo anti-capitalistas, o que não é estranho num movimento que cresceu nos meios populares e cujos dirigentes vieram de baixo. De resto a elite alemã desprezava-os. Mas também não eram proletários, antes gente marginalizada: Hitler, o pintor que fora repudiado; Goebbels, o licenciado que tem de trabalhar no balcão de um banco. Eram também gente que a guerra e o pós-guerra tinham atirado para as margens da sociedade, mesmo quando vinham de boas famílias. Pessoas revoltadas, rejeitadas. Goebbels, por exemplo, foi obrigado a deixar a namorada porque estava desempregado e a família dela era rica não o aceitava. Muitos partilhavam por isso um enorme ressentimento contra uma sociedade que os deixava de fora.
Considerando a variedade de histórias pessoais, e de percursos, dos doze personagens que retrata no livro, variedade que traduz alguma da complexidade do nazismo, podemos daí concluir que os alemães acabaram por ser, como alguns defendem, não apenas enganados, antes "carrascos voluntários"?
Isso é esquecer que Hitler, mesmo quando já era Chanceler, nunca venceu umas eleições como maioria absoluta. Muitos opunham-se-lhe quando chegou ao poder. E se depois também é verdade que a Alemanha não se transformou apenas numa prisão gigante onde meia dúzia de brutos mantinha o povo aterrorizado, isso só foi possível porque nos primeiros anos o nazismo teve grande sucesso económico. Nessa época, democracia, na memória das pessoas, tinha a imagem de um regime associado a desemprego, a hiperinflacção, a humilhação. Não temos números para medir a popularidade de Hitler, mas sabemos, por exemplo, que 75 por cento da acção da Gestapo decorria de denúncias, sinal de que a sociedade se auto-vigiava. A resistência foi mínima, e mesmo que a maioria não fosse entusiasta, considerava, prosaicamente, que o nazismo lhes tinha proporcionado uma vida melhor. Mais: temos testemunhos de alemães que nunca se manifestaram, que não eram nazis, e que não resistiram por terem medo da repressão mas por recearem ir contra a onda de entusiasmo que Hitler gerou. Na Alemanha dos anos 30 era possível uma pessoa desconfiar das suas próprias convicções por se sentir tão isolada...
Para além de Göring não há mais nenhum militar entre os doze companheiros de Hitler que escolheu. Porquê? A Wehrmacht comportou-se realmente como um exército profissional imune à influência do nazismo? Os crimes foram das SS?
Foi muito doloroso fazer a escolha dessas doze figuras e é pena que não tenha podido incluir alguns militares, ou outras figuras importantes como Ribbentrop ou Hess. Uma das razões porque deixei muitos militares de fora foi porque optei por retratar um grupo de políticos que está com Hitler desde muito cedo. Os militares eram profissionais, apareceram mais tarde neste processo, e se teria sido muito interessante analisar a forma como a tradição nacionalista prussiana do exército foi pervertida pelo nacionalismo nazi, isso não cabia nesta obra. Houve alguns que se opuseram a Hitler e foram destituídos ainda antes da II Guerra começar, contudo a verdade é que as forças armadas também aceitaram como um adquirido positivo a destruição da República de Weimar. Se não podemos acusar os militares de cumplicidade directa com o Holocausto, podemos acusá-los de terem convivido com naturalidade a ditadura.
Mesmo assim, e sem confundir a Wehrmacht com as SS, que desempenharam papéis distintos, não há dúvida que muitos militares profissionais foram responsáveis por actos e por ordens que violavam todas as leis da guerra. Isso sucedeu sobretudo a Leste, naquela que foi a verdadeira guerra de Hitler. Aí a Wehrmacht não hesitava, por exemplo, em abandonar os prisioneiros, muitas vezes a fuzilá-los - metade dos prisioneiros de guerra russos são deixados morrer. Ao mesmo tempo a Wehrmacht tolerava as acções das SS contra os judeus. A Leste travou-se uma guerra muito suja, uma guerra total como não há memória e que hoje temos muita dificuldade em compreender em todas as suas dimensões.
E como explicar o fenómeno dos Einsatzgruppen, esses esquadrões encarregues de exterminar os judeus depois da invasão da URSS, grupos que eram integrados muitas vezes por soldados ou até polícias que um dia podiam estar a vigiar uma pacata rua de Hamburgo e, no dia seguinte, a matar um judeu com uma bala na nuca em Kiev?
É um fenómeno muito impressionante o dessas pessoas "cinzentas", muitas vezes soldados na reserva, cidadãos que tinham vivido como adultos na República de Weimar e votado nos social-democratas, e que ali actuavam às ordens das SS. Não eram delinquentes, não eram lumpen, mas fizeram-no... Assim como também encontramos entre os SS académicos, jovens cultos, alguns deles com carreiras brilhantes, mas que se tinham deixado fanatizar. Não podemos continuar a olhar para eles apenas como brutos, pois há muita investigação recente que nos mostra como, por exemplo, alguns haviam sido alunos brilhantes vindos de famílias que lhes tinham dado a melhor educação. O que se passou foi que essas pessoas como que sofreram aquilo que eu costumo designar por "mutilação moral".
A possibilidade de pessoas cultas, educadas, poderem voltar a cair em tais extremismos, assim como a já referida permanência de elementos na nossa cultura que permitiram o nazismo, reforçam a necessidade de o estudarmos e compreendermos melhor?
Estudar o nazismo não é a mesma coisa que estudar outro período histórico qualquer. Sem compreendermos este fenómeno nunca poderemos compreender o que foi o século XX. Mais: temos de saber que foi no mesmo país em que nasceu Bach que se imaginou Auschwitz, e que enquanto matavam judeus nos campos ouviam as suas composições para piano e faziam-no em nome da cultura alemã. Auschwitz foi construído em nome da civilização e contra uma suposta barbárie. Os nazis estavam convencidos que eles é que eram os bons, os "decentes". Himmler sempre utilizou essa linguagem, pois pedia aos seus homens para aguentarem esse trabalho "tão duro" que era o do assassínio em massa e, ao mesmo tempo, não se deixarem contaminar e manterem a sua "decência".
Auschwitz não foi um acidente, não foi apenas um excesso do nazismo, Auschwitz interroga-nos sobre o carácter da cultura e da modernidade. Auschwitz obriga-nos a pensar que temos de estar sempre conscientes de que a nossa capacidade para mudar o mundo, ou o poderio que nos dão as tecnologias, têm de ser sempre balizados por referências morais muito fortes que evitem que a técnica sem moral conduza ao utilitarismo. Em Auschwitz escondem-se, condensam-se, todas as contradições das nossas sociedades modernas. Até a ideia de progresso, pois um médico como Mengele não se via como um criminoso, mas como alguém que procurava fazer avançar a ciência, que queria perceber as raízes biológicas dos comportamentos humanos e o fazia pelo método experimental.
Estamos suficientemente atentos ou o que ainda há pouco se passou na ex-Jugoslávia apenas nos prova que um retrocesso é sempre possível?
Em momentos de insegurança e de incerteza, em momentos de medo, podem surgir movimentos que buscam a identidade, a afirmação do grupo, da tribo, e todas as identidades radicais criam-se não em torno do que une mas do separa o grupo dos outros. Quem sou eu? Eu sou o que o outro não é. E isso faz-se num grupo que, em momentos de insegurança, oferece segurança aos seus membros. É isso que se passa, por exemplo, com muitos jovens muçulmanos que se sentem atraídos pelos grupos radicais, pelo terrorismo, pois negam o outro e procuram acolhimento nessas comunidades de iguais. Eles também recusam o mundo moderno, como os nazis recusavam. Tal como recusam os terroristas bascos, que matam em nome de um povo, de uma identidade, não de uma revolução ou da emancipação. Vivem para um nacionalismo de comunidade, para um patriotismo de espaços pequenos, de vizinhos, em que só reconhecem os que são muito próximos recusando um mundo aberto em que todos os homens são iguais.