Jô Soares O brasileiro tem um lado triste. É bom não confundir alegria com felicidade

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Se tivesse de escolher um só poema de Fernando Pessoa, escolheria Liberdade. Mas o humorista brasileiro pôde escolher mais poemas e criou uma personagem - uma espécie de "irmão bastardo de Álvaro de Campos" - para os dizer com sotaque de Portugal no Teatro Villaret, em Lisboa.

ô Soares senta-se numa cadeira junto a uma janela da Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, preparado para a entrevista. Confessara, na conferência de imprensa que terminara minutos antes, que era a primeira vez que visitava a casa do poeta que o fascina desde os 14 anos e que inspirou o espectáculo que tem em cena até dia 7 no Teatro Villaret - também em Lisboa -, Remix em Pessoa (poemas de Fernando Pessoa musicados por Billy Forghieri, com direcção de Bete Coelho).

Foi nos anos 80 do século XX, com o programa Viva o Gordo, que conquistou os portugueses. Vestido de tigresa e de trancinhas no cabelo, foi Bô Francineide, actriz de "pornochanchada", sempre agarrada à sua "porno-mãe" ("pensar que eu saí de dentro dela!"); foi Gelatina, o guarda que tremia dos pés à cabeça com pavor de assaltos; foi o Reizinho, de baixa estatura mas grande ego ("Que sou eu? Sois rei, sois rei").

Trinta anos depois, com 72 anos, continua a ser uma estrela. A Casa Fernando Pessoa estava cheia para o ouvir, e alguém na assistência confessou mesmo que pagava mais para ter, no cabo, o canal da Globo e poder ver o Programa do Jô, no qual o humorista já entrevistou mais de 15 mil pessoas, entre as quais figuras da cultura portuguesa como José Saramago (mais do que uma vez), Joaquim de Almeida, Maria de Medeiros, Mariza ("uma magrelinha, magrelinha, canta que é um espanto"). "Não se sente cansado de falar com tanta gente?", perguntam-lhe. E ele responde, rápido: "Se fosse com a mesma pessoa, eu estaria exausto."

Fãs são fãs, e querem saber coisas como "o que é que está dentro das canecas" pelas quais Jô e os convidados bebem durante o programa. O apresentador espanta-se que "esta curiosidade tenha atravessado o oceano", até porque "não tem nenhum segredo": dentro da canequinha só está mesmo "refrigerante dietético, água, chá [que, aliás, odeia] ou sopinha, se estiver muito frio".

Mas a curiosidade não acaba aí. Agora querem saber "quem é a Esmeralda" de quem Jô começou a falar no final dos seus programas. Ele não diz. Até a produção do programa lhe perguntou quem é afinal a misteriosa mulher, mas não adianta, ele não vai mesmo dizer. Em troca explica que, com essa mistura de humorista e apresentador, num modelo inspirado em apresentadores americanos como Jay Leno ou Conan O"Brien, é-lhe permitido ir mais longe e fazer perguntas que os entrevistados não tolerariam a mais ninguém.

Mas não é para isso que está aqui hoje. Veio para mostrar outro lado seu - além de apresentador e humorista, é escritor (O Xangô de Baker Street, O Homem Que Matou Getúlio Vargas, Assassinatos na Academia Brasileira de Letras), artista plástico, e apaixonado por Fernando Pessoa. Alguém o desafia perguntando se Carlos Drummond de Andrade não é o maior poeta de língua portuguesa. "É como perguntar: "Quem vale mais, Deus ou o Super-Homem?" Vale milagre? Existe uma questão de preferência. Você tem o direito de preferência."

Ele não tem dúvidas. A sua preferência vai para Pessoa e, em particular, para Álvaro de Campos, com o seu "humor ácido e um tipo de niilismo que não é mais do que uma forma de humor". No palco do Villaret - teatro fundado pelo seu amigo Raul Solnado, falecido no ano passado, e de quem fala várias vezes, recordando histórias comuns -, Jô Soares será "uma espécie de irmão bastardo" de Álvaro de Campos.

Agora está sentado na cadeira junto à janela, o rosto redondo, cabelo e barba brancos, aparados, uma T-shirt preta com o rosto de Pessoa, magro, comprido, sério, gravado a branco. Em comum os dois parecem ter apenas os óculos redondos. Começamos por aí uma conversa, conscientes de que vamos ter de atravessar alguns estereótipos - só para ouvir Jô Soares desmenti-los.

O que é que tem um brasileiro extrovertido, bem-disposto e mais para o gordinho, a ver com um português magro, introvertido e angustiado como Fernando Pessoa?

Tudo aquilo que Fernando Pessoa guarda, o que tem para dentro, eu exteriorizo de outra forma. Ele tem, indiscutivelmente, um imenso senso de humor, que eu acho que é uma característica da inteligência e que ele expressa obviamente através de heterónimos como o Álvaro de Campos. E depois é uma identificação meio mediúnica. É uma coisa que a gente não explica: as coisas que a gente escolhe, as paixões que a gente tem, literárias ou artísticas, não tem muita explicação. É uma coisa que foi crescendo dentro de mim há muitos anos.

Não é preciso ser-se um angustiado para compreender Fernando Pessoa?

Não, acho que é o contrário. Quanto mais extrovertido você for, melhor representa essa angústia interior que ele tem. Alguém me perguntou na colectiva [conferência de imprensa] que pergunta eu faria se pudesse entrevistar o Fernando Pessoa e eu disse: "Nenhuma, porque ele não iria no meu programa, imagina. Ficaria trancado no quarto e não sairia"."

Como descobriu Pessoa? Disse que foi em Paris...

Sim, eu não falava francês e fui com a minha mãe na livraria portuguesa em Paris comprar uns livros em português para poder ler. Não tinha nada para ler, e é um hábito que eu tenho desde os oito anos de idade. E tinha ali todo o Eça de Queirós e todo o Fernando Pessoa. Foi o primeiro contacto.

E qual foi a impressão que teve ao ler Pessoa com essa idade?

Foi fantástica, porque ele, ao mesmo tempo que tem esse lado que você falou, tem também um lado muito comunicativo. Ele te fala ao coração e te diz coisas que você pensa e não sabia exteriorizar tão bem. Como o Eça: o primeiro livro que li foi A Relíquia; fiquei comprado por esse homem. É um livro de um humor extraordinário, com um desfecho fantástico. E esse foi o meu primeiro contacto com a literatura portuguesa.

E identificou-se imediatamente com Álvaro de Campos?

Sim, à medida que ia lendo mais, mais. E também com algumas coisas surpreendentes, como [o poema] O menino de sua mãe, e com o Alberto Caeiro também. Tem momentos em que se pensa: "Eu gostaria de ter dito isso, eu pensaria isso." É uma multiplicidade tão grande. Por isso ele tinha esse lado tão louco de ser ligado ao esoterismo, à Rosa-Cruz, ao mago Aleister Crowley, que era um maluco, um farsante. Um mago raramente não o é - uma das qualidades de um bom mago é ser farsante. Como é que uma pessoa tão introvertida se ligou tanto a um maluco que era o oposto dele? Tirava fotografias exóticas, estranhas. E tem também o lado da ligação com o horóscopo, muito forte.

A Cecília Meireles, que era uma grande poetisa brasileira e tinha a maior admiração por ele, um dia veio a Portugal. Os dois correspondiam-se e ela disse "vamos conhecer-nos", e ele falou "claro". Marcou um encontro num hotel, ela esperou duas horas e ele não foi. Deixou-lhe um livro dedicado e uma carta pedindo desculpa e explicando que tinha traçado o horóscopo dos dois e tinha concluído que não ia ser bom eles se encontrarem.

O Eça e o Pessoa têm o mesmo lado muito português de uma certa tristeza.

Sim, mas é uma melancolia criativa. Não é uma melancolia do desespero. O Eça também, claro, mas sempre tem uma visão de humor das coisas. O conto O Mandarim, em que um cara aperta um botão e outro cara morre na China, é uma obra-prima.

Não é precisamente o contrário do estereótipo que temos do brasileiro, o espírito mais solar...?

Parece que não. Um seriado como Os Maias fez um imenso sucesso no Brasil, e a leitura do Eça é muito comum. Não vejo nenhuma incongruência. A gente veio daqui.

No entanto, os brasileiros são vistos como esse lado mais solar quando comparados com os portugueses, que teriam um lado...

... mais lunar? Pode ser, mas eu tenho um lado muito lunar. Não é o lado da depressão. É o lado de eu ser uma pessoa noctívaga. Escrevo à noite, trabalho mais à noite. Todo o meu lado de criação fica melhor à noite.

Você está falando "solar" no sentido quase de cliché, quase caricato - "oba, oba, somos solares". Eu acho que o brasileiro tem um "banzo", que é uma palavra africana dos negros que sentiam saudades de casa. Essa mistura toda... O brasileiro tem um lado triste. É bom não confundir alegria com felicidade. No Carnaval as pessoas estão muito alegres, mas não necessariamente felizes. Podem estar até em depressão, mas isso não passa. É uma coisa do inconsciente e é uma coisa que virou quase lugar-comum, essa alegria do brasileiro.

Essa coisa de caracterizar as raças por esse tipo de qualidade fica um pouco aquele negócio de: o italiano é bom na massa, o francês é bom no queijo, o alemão é bom na guerra, o japonês é traiçoeiro. Não se pode fazer esse tipo de coisa porque acabamos nos dando mal.

E a imagem que os brasileiros têm dos portugueses. Há a ideia de que ainda perdura uma imagem influenciada pelos primeiros imigrantes portugueses, de gente muito pouco moderna, vinda das aldeias... Pessoa ou Eça estão associados a essa imagem, do português antiquado?

Nem um pouco. Essa visão tacanha de Portugal, que estaria ligada aos primeiros imigrantes, é uma coisa que mudou inteiramente, a não ser em certas camadas que continuam a ter uma visão do português... Mas as piadas que se contam dos portugueses no Brasil são as mesmas que se contam aqui dos alentejanos. O Raul Solnado contava que a mãe do alentejano dizia: "Estive no salão de beleza." E o filho perguntava: "Para quê?" "Para ficar bonita." "E por que não ficas?" É uma piada de alentejano que eu já ouvi no Brasil contada como piada de português.

Mas Fernando Pessoa é visto como uma figura totalmente moderna. Não tem como você ler e não ver que ele é totalmente moderno. Para mim, é o primeiro grande poeta moderno.

É uma prova de autoconfiança vir dizer Pessoa em Portugal?

A primeira coisa que um artista não pode perder é a vontade e a necessidade de tomar riscos. Eu estou sempre tomando riscos. Quando fiz esse espectáculo no Rio e em São Paulo também era um risco. Mesmo o CD [Remix em Pessoa começou por ser um CD, resultado da colaboração com o músico Billy Forghieri] era um risco.

Se você não tem desafios, fica reaccionário, fica se repetindo. Em tudo o que faço estou sempre correndo riscos: na invenção desse meu programa [Programa do Jô], quando decidi parar de fazer programas de quadros de humor, quando faço uma exposição de pintura, quando escrevo um livro, quando faço um show tocando trompete. São tudo coisas de risco. Se não tenho risco, não há emoção. Fico nervoso sempre antes de entrar em cena, pelo menos nas estreias, e acho isso fundamental para a minha actividade. O cirurgião não deve fazer isso, mas o artista deve.

Sente alguma diferença entre representar Pessoa no Brasil e aqui? A expectativa das pessoas será diferente? Os portugueses serão mais críticos?

Certamente serão mais críticos, mas como é um espectáculo feito com muito amor... Acho que são dois aliados que podem vencer qualquer barreira: o humor e o amor. Eu sou recebido aqui com muito amor, e com muito humor. Vim fazer o Pessoa no teatro construído por um grande amigo, que foi o Raul Solnado, e que se chama Villaret em homenagem àquele que foi um dos grandes divulgadores do Pessoa, inclusive no Brasil [o actor João Villaret].

Não há o risco de os portugueses olharem para si e pensarem "o Jô Soares é divertido", e associarem-no mais ao humor e menos à poesia?

Não sei qual é a resposta que está tentando provocar. O espectáculo está no palco, é para ser visto e apreciado, ou não, a nossa profissão é uma exposição de vitrina. E acho que é um espectáculo que tem humor, o Álvaro de Campos tem uma visão de humor sobre as coisas. Não está inteiramente fora do que eu sou. Pode estar fora do que eu faço habitualmente, mas não fora do que eu sou.

E porquê a opção de musicar os poemas?

O CD já foi um risco. Pegar em Fernando Pessoa e musicar com diversas formas de música moderna já foi um risco. Mas funcionou bem, teve uma belíssima recepção. Quando depois tive vontade de fazer no palco, então não tem como segurar.

Acha que a música acrescenta algo aos poemas?

Vê-se como o Pessoa é tão moderno que combina com tudo, com qualquer música, com qualquer coisa. A música encaixa-se nele, não é preciso fazer um tipo de música adequada. Eu disse o poema Cruzou por mim num CD no qual participa também o Tom Jobim e outros artistas, e ficou uma coisa belíssima. Ninguém achou estranho o Tom Jobim musicar uma poesia do Pessoa.

Na sua perspectiva, quem diz um poema vai também acrescentar algo, transformá-lo numa outra coisa? A sua personagem na peça é uma terceira pessoa, que não é nem o Jô Soares nem o Fernando Pessoa?

Eu acho que sim. É um parente do Álvaro de Campos, um irmão bastardo de um heterónimo [dá uma gargalhada]. Não é uma coisa para chegar no palco e declamar. Eu acho que declamar é uma coisa chata. É você estar ali só dizendo. Era uma coisa que, por exemplo, o Villaret não fazia. O Villaret emprestava a sua personalidade à poesia. Isso é que é importante.

O Jô empresta a sua personalidade e o que resulta é a tal terceira pessoa?

Exactamente. Quando eu faço uma personagem, estou emprestando uma personalidade, como qualquer actor, a essa personagem.

Tem dito que para si era muito importante que o sotaque fosse o português de Portugal e não brasileiro. Porquê?

Claro, porque tem palavras que a gente nem usa no Brasil. "Enxovalho". Não sei dizer "enxovalho" sem ser "enxovalho" [repete a palavra com sotaque de Portugal]. "Algibeira", não sei dizer... "algibeira" [diz com sotaque brasileiro], ficaria uma coisa tão falsa para mim. Ou outras tantas palavras que não se usam no português do Brasil.

E no entanto tem poesias como Ao volante de um Chevrolet que quase podia ser dito apenas com português brasileiro. Mas, mesmo essa, no meio tem coisas que não dá para mim. Já ouvi o Paulo Autran recitar O menino de sua mãe com sotaque brasileiro e ficou perfeito. Eu não saberia fazer. Tenho de criar uma personagem. E, neste caso, essa personagem é portuguesa.

É como um actor americano que vai fazer um texto shakespeariano e o faz com sotaque de inglês da Inglaterra, porque na vida dele nem existe a maneira de falar um texto shakespeariano em americano.

Se este espectáculo fosse só um poema, qual escolheria?

Liberdade. "Ai que prazer / não cumprir um dever". Que maravilha.

Porquê?

Porque é o próprio anti-intelectual, é o próprio visceral, o próprio não-erudito, o verdadeiramente culto. "Ler é maçada / estudar é nada". É genial. Se tivesse que ser um só, seria isto. "E mais do que isto / É Jesus Cristo, / Que não sabia nada de finanças, / Nem consta que tivesse biblioteca". Para mim, o espírito do Pessoa é esse, o de Liberdade. a

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