Até àquela frase podia ser apenas uma história de amor que correra mal. A rapariga que volta, passados anos, para confrontar o homem com um passado que ele quer esquecer. Que lhe atira à cara acusações. "Tu fizeste de mim um fantasma. As pessoas falavam de mim como se eu não estivesse presente". E de quem ele se defende fugindo. "Tu não tens direito à minha humilhação".
Mas depois surge aquela frase. "Com quantas raparigas de doze anos é que fodeste mais?". E já não há escapatória. As palavras estão lá, "brutais como as palavras podem ser", diz Miguel Guilherme, o Ray/Peter de "Blackbird", a peça do britânico David Harrower encenada pelo cineasta Tiago Guedes e que está na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, até 21 de Fevereiro.
E de repente esta é uma história de pedofilia. E Una (Isabel Abreu) já não é uma mulher abandonada, é uma criança abusada, uma vítima daquele homem, que esteve preso durante três anos por aquilo a que ele chama um "erro". Ela esteve presa muito mais ("cumpri a tua sentença durante 15 anos, revivo o que se passou todos os dias"). "Tu sabes que eu não era um desses", diz-lhe Ray.
"Ele nem o nome consegue pronunciar. Nunca se considera um pedófilo", sublinha Miguel Guilherme. "Há coisas que são muito concretas: este homem abusou, não há outras palavras, é pedófilo. Mas depois não há espaço para outra coisa para além dessa palavra. Eu acho que é esse espaço que [o autor] quer preencher. O espaço que não existe para lá da palavra pedofilia, e que é um espaço enorme".
Mas, por enquanto, ainda estamos presos naquela sala dos fundos de um escritório qualquer, cheia de lixo espalhado no chão, restos de comida, copos, latas. E ainda estamos presos na palavra "pedofilia". Até que surge aquela outra frase. "Eu era muito nova, estava muito apaixonada". E o tapete debaixo dos nossos pés desloca-se ligeiramente.
"O que me interessou na peça foi a complexidade disto tudo", explica Tiago Guedes. "[David Harrower] lança-nos um tema tabu, uma transgressão, depois começa a desmistificá-lo, e damos por nós a acreditar numa história de amor. E temos um conflito interno perante essa nossa crença, por estarmos a acreditar que aquele amor é possível e ao mesmo tempo não querermos acreditar que aquilo seja possível, por todas as razões". Interessou-lhe também "a forma como o texto é construído, como uma pauta musical, onde quase se ouve como ele quer que eles falem".
"Eu era um corpo imaculado"
A história continua, as memórias de um a serem completadas com as do outro, desde esse primeiro dia, "o dia do churrasco", os bilhetes que ela lhe deixava, os pretextos para se verem, os encontros no parque, no meio dos arbustos, e finalmente a fuga, aquela noite terrível na qual que iam ficar juntos e se separaram para sempre.
Agora ela volta, quinze anos depois, para encontrar um homem que mudou de nome e de vida e dizer-lhe "eu era uma menina, uma virgem, um corpo imaculado". E para o ouvir dizer que não. "Não te lembras de ti, de como tu eras. Forte, determinada, sabias o que querias. Tu sabias mais sobre o amor do que ela [a namorada dele na altura] sabia, do que eu sabia, sabias o que querias. Não eras como as outras crianças".
No fundo, diz Isabel Abreu, "ela vem à procura do 'diz-me que aquele amor existiu, que eu não enlouqueci, diz-me que não te esqueces-te de mim', embora as palavras que lhe saem sejam diferentes". Nessa altura já nós acreditamos naquela história de amor. Mas Harrower há-de puxar-nos o tapete, desta vez violentamente, de debaixo dos pés e nós havemos de ficar sem saber o que pensar.
A peça "não desculpa os pedófilos", frisa Tiago Guedes, mas leva-nos a "pôr em causa todos os nossos preconceitos enquanto sociedade e a forma como olhamos para certo tipo de relações e como as padronizamos". A sociedade não sai muito bem. Isabel fez uma pesquisa sobre o tema para perceber a marca que a reacção da sociedade deixou na Una. "O que é terrível é que, em muitos casos, as crianças não se sentem abusadas porque amam e compactuam, embora sempre com a noção de que aquilo é proibido. Temos a justiça a entrar por um lado e por outro a vítima a dizer 'mas eu amo'".
"Deixaste-me apaixonada"
Foi o olhar da sociedade sobre eles depois do fim abrupto da fuga e de Ray ter sido preso (ela revela-lhe que sempre o protegeu, que mentiu garantindo a todos que ele nunca lhe tocara) que a levou a olhar para essa criança de doze anos e esquecer a rapariga "forte e determinada" que está na memória de Ray.
Todos lhe disseram que ela era "um corpo imaculado" e ela quis acreditar nisso. Para um dia - este dia - lhe poder dizer que o odeia por ele ter abusado dela. E para o obrigar a repetir essa palavra - "abuso". Ele repete, porque também não quer falar de amor. Mas tropeça nas palavras. "Eu nunca amei... nunca desejei mais ninguém com aquela idade". E ela acaba por lhe dizer aquilo que a levou ali, quinze anos depois daquela noite: "Tu deixaste-me sozinha a sangrar... deixaste-me apaixonada".
Miguel Guilherme compreende Ray. Mas lembra novamente que quando estamos perante a pedofilia "não há espaço para excepções". "Ele diz que cometeu um erro, mas para nós ele cometeu um crime. Não há uma palavra para inventar este amor. Ela com 12 anos será sempre um objecto, nunca um sujeito. Nós, a sociedade, não conseguimos imaginar que ela possa fazer a sua própria escolha. Ela é o objecto do abuso e ele será sempre o sujeito do abuso. A peça é tudo o que não pode ser dito para além disso".