“Se a rádio diz é porque é verdade” e o Haiti confia na Rádio Caraíbas

Num país onde os rumores têm uma força avassaladora, a lendária estação sempre foi uma fonte de confiança dos haitianos. Hoje, está a dizer aos seus ouvintes como se devem organizar para saírem do caos.

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"O estado não existe", diz Israel Jacky Cantave Carlos Barria/Reuters

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Metade do edifício ruiu e a outra metade pode ruir a qualquer momento. Mas a antena, esse centro nervoso de todo o sistema, esse órgão essencial, simultaneamente boca e coração da Rádio Caraíbas, essa, ficou intacta. Só era preciso isso. O resto reconstituiu-se em poucos dias.

A Rádio Caraíbas existe há mais de 60 anos. É uma rádio lendária no Haiti. Passa música, notícias e programas de diálogo com os ouvintes. É a mais ouvida e aquela em que as pessoas confiam. “Se dizem na rádio é porque é verdade”, explica Israel Jacky Cantave, jornalista e um dos directores. Num país onde os rumores têm uma força avassaladora, as pessoas precisam de uma fonte de confiança. É a rádio. E, acima de todas, a Rádio Caraíbas.

Quando o terramoto destruiu as instalações, inutilizou os estúdios e todo o material, a equipa sentiu que era o fim de uma era. Talvez a sua rádio nunca mais viesse a emitir. Mas quando perceberam que a antena principal estava intacta, jornalistas e editores sabiam o que tinham a fazer, e não perderam tempo.

Arranjaram um velho jipe, microfones, dois computadores portáteis e alguns cabos, que fizeram entrar no edifício, ligando-os à antena, e começaram a emitir da rua. É lá que estão agora, estacionados na Rue Chavanne, mesmo em frente aos seus estúdios, rodeados por uma multidão.

“A esmagadora maioria da população do Haiti é analfabeta”, diz Israel. “Por isso, a rádio sempre teve muita audiência. É a principal fonte de informação das pessoas. Mas agora é-o ainda mais. Toda a gente ouve rádio”.

Por essa razão, Israel e os restantes trabalhadores da Rádio Caraíbas consideraram que tinham uma obrigação: ajudar as pessoas na crise pós-terramoto. Numa primeira fase, o que faziam era divulgar mensagens de pessoas que procuravam os seus familiares desaparecidos. Era uma espécie de Perdidos e Achados de seres humanos, numa cidade virada do avesso.

“Essa foi a fase emocional”, explica Israel. “As pessoas andavam desesperadas, sem saber umas das outras, e nós demos uma ajuda. Não só a encontrar gente, mas também dando um sentido de ordem e de conforto na população. Para que as pessoas sentissem que não estão sozinhas”.

Mas agora entrou-se numa segunda fase. Mais séria. A equipa reuniu-se e decidiu começar a organizar a cidade. Já que as autoridades não fazem nada, a Rádio Caraíbas assumiria o controlo.

“O Estado não existe”, diz Israel Jacky Cantave. “E nós, jornalistas, temos uma grande responsabilidade. As autoridades não fazem nada. Nesses casos, a sociedade civil tem o direito e a obrigação de agir. É isso que nós hoje representamos: a sociedade civil do Haiti”.

Organizar os bairros

Decidiram então organizar comités, em cada bairro, para ajudar a resolver os problemas.

Explicaram tudo na antena, e as pessoas, em cada zona da cidade, começaram a trabalhar. Foram criados cinco comités: de Saúde, de Segurança, de Recuperação de Cadáveres, de Relações Públicas e de Ajuda Alimentar. Em cada bairro, estes comités estão a recolher informação sobre as necessidades. A seguir fazem listas pormenorizadas e concretas sobre o que é preciso, que trazem para os “estúdios” da rádio. As listas são lidas no ar e depois entregues ao Governo, para que tome medidas. Ou as entregue às organizações internacionais, para que saibam onde e como actuar.

“Comité de Ajuda Alimentar do bairro de Martissant de Baixo...”, lê-se num papel que alguém entregou e foi parar ao topo de um maço de centenas de folhas como aquela. “... Necessidades mais urgentes: 1- Entrega de rações de alimentos essenciais para 100 mil pessoas; 2- Entrega de dois mil pacotes de leite para crianças em risco...”

Israel tem a noção do papel que a rádio está a assumir, e do que as pessoas esperam deles. “A primeira fase foi individual, emotiva. Agora entrámos na fase do colectivo”, explica. “Estamos a organizar-nos e estamos a actuar”.

O director da Rádio Caraíbas não faz ideia do que o Governo vai fazer com este trabalho de recolha, ou se vai fazer alguma coisa. Por isso, encoraja-se as pessoas a assumirem, de forma organizada, o controlo da situação.

Os comités de segurança dos bairros, por exemplo, deverão criar grupos, armados, para patrulhar os bairros e defender os habitantes dos gangs de criminosos e saqueadores. Através da rádio, Israel e os seus colegas jornalistas, ajudados por quem sabe, estão a ensinar os ouvintes a fazer isto.

“Os gangs dos líderes criminosos que fugiram da prisão, que foi destruída pelo sismo, estão a reunir-se de novo, para atacar sistematicamente as várias zonas da cidade”, diz Frantz Clermont, que fazia um programa na Rádio Caraíbas. “A polícia não tem capacidade para proteger as pessoas. Por isso elas têm de organizar a sua própria defesa.”

Em cada bairro há muitas armas, e muitos homens que trabalham para informais agências de segurança privada. É com esses recursos que se estão a formar os piquetes de defesa.

“Mas nós vamos controlar os cidadãos, orientá-los e ensiná-los”, diz Israel. Deixadas a si próprias, as pessoas podem cometer toda a espécie de loucuras. Muitas pensaram que o terramoto era o fim do mundo. Muitas ainda pensam que foi mesmo o fim do mundo. Muitas acreditam nos rumores. De que vai haver outro terramoto, ou aquele que corre agora com mais insistência, que vai haver um tsunami”. Mas mantêm-se calmas, porque sabem que se isso acontecer será anunciado primeiro na Rádio Caraíbas, 94.5 FM.

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