Um monólito chamado Stanley Kubrick

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Durante uma residência nos Arquivos de Stanley Kubrick, na Universidade of the Arts, em Londres, as irmãs Wilson tropeçaram numa série de fotografias de uma mulher em poses e movimentos dirigidos. De perfil, de frente, de costas, de corpo inteiro ou de rosto, vestida com roupas ricas no que parece ser um estúdio.

A seguir à intrigante descoberta, então, a revelação: o material, que incluía fotos do período da II Guerra Mundial (em particular dos guetos judeus, do exercito nazi, da vida civil da época), tinha sido reunido em 1993 pelo cineasta com o objectivo de preparar a realização de "Aryan Papers", um filme sobre o Holocausto. Seria uma adaptação do romance "Wartime Lies", de Louis Begley, que conta a história de uma mulher e de uma criança que tentam fugir do gueto de Varsóvia, fazendo-se passar por católicos. Quanto à misteriosa mulher das fotografias, era Johanna ter Steege, a actriz escolhida por Kubrick para o papel principal.

O filme, todavia, nunca passou da fase de pré-produção. Depois de vários encontros, sessões, testes, onde o realizou encenou, esquadrinhou, mediu (com as mesmas réguas que saltaram para "Tempo Suspenso" sob o nome de "Measure Obsoloscere"), o corpo, a voz e os gestos de Johanna ter Steege, a desistência. Para a actriz, quase um ano concentrada no projecto, a agonia. Durante dois dias não conseguiu sair da cama

Ainda hoje a decisão de Kubrick é motivo de especulações. Autor escrupuloso, perfeccionista, obcecado com a verdade das imagens (era um conhecedor profundo e um leitor obsessivo de "The Destruction of the European Jews", do historiador Raul Hilberg) não terá confiado na justeza da sua representação. Ou porque aquilo não podia ser traduzido pelo seu cinema ou porque a sua biografia - perdeu familiares no Holocausto e a sua última mulher, Christiane Susanne Harlan, era sobrinha de Veit Harlan, realizador de "O Judeu Suss", filme da propaganda nazi - não lhe dava a segurança e transparência que o seu olhar, diante da objectiva, solicitava (convém dizer que "A Lista de Schindler, nas salas de cinema no mesmo ano, não ajudou).

"Unfolding the Aryan Papers", de Jane e Louise Wilson, não se reduz, muito pelo contrário, a este episódio. Com pouco mais de 17 minutos, é uma obra feita de sobreposições, duplos, de imagens fixas e em movimento. Ouvimos Johanna ter Steege a narrar a sua história com Kubrick (conta os diálogos, as sessões, os pedidos do realizador) e passagens do livro de Louis Begley. Aos documentos, às fotografias do arquivo de Kubrick, as duas artistas acrescentam o seu filme rodado no edifício Hornsey Town Hall, em Londres, mostrando a actriz 15 anos depois. Esta repete gestos, posições, experimenta o mesmo guarda-roupa, mas o corpo treme e a voz respira, tem grão. E então percebemos que o tempo passou não apenas sobre o filme que nunca chegou a ser filme, mas também sobre a actriz que nunca chegou a representar (ou chegou?)

O encontro de artistas com Kubrick não é, necessariamente, uma situação fortuita. Ao lado de Godard, Hitchcock, Vertov, Tarkowski ou Buñuel, este natural do Bronx, que foi fotógrafo da revista "Look", é um dos autores de cinema mais citados na arte contemporânea. Numa edição de 2004 da revista "Frieze", o jornalista e autor George Pendle comparava os seus filmes ao conceito de diorama e dois anos antes, na mesma revista, o crítico alemão Jörg Heiser ensaiava uma aproximação entre a estética minimalista e o monólito de "2001, Odisseia no Espaço", concebido por Kubrick e Arthur C. Clarke (segundo o autor, Kubrick "apagou" dessa sequência a voz do narrador e o ênfase na componente narrativa inicialmente previsto).

A presença/influência visual do cineasta também pode ser identificada na arte portuguesa contemporânea, nomeadamente em obras produzidas já neste século. Consequência prática de um gosto, de uma apropriação aleatória de imagens preexistentes e abertas à significação ou de uma simpatia pelo humanismo austero do realizador? Talvez as três hipóteses. Seguem os exemplos: "s/título", (1999), de João Onofre; "SpaceJunk (2001) e "Time Zones (2003) de Miguel Soares; "Intermission" (1996) e "Solar Watch" (2006), de Alexandre Estrela; e "Moon Watcher's Defeat" (2007), de João  Tabarra. J.M.

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