Aqui há uns meses anunciámos ao mundo que o melhor disco soul de 1969 era de um branco e tinha acabado de sair. Falávamos do disco de estreia de Mayer Hawthorne, "A Strange Arrangement", editado no ano passado na mítica editora de hip-hop e derivados, a Stones Throw. Na altura aproveitámos e mencionámos outras apostas mais do que recomendáveis que a editora iria lançar nos meses seguintes, incluindo um clássico instantâneo, "In Search Of Stoney Jackson", colaboração de uns desconhecidos Strong Arm Steady com um tal Madlib.
Eis então "In Search Of Stoney Jackson", embalado e prontinho e trazer da loja para casa: como os camelos, que têm três estômagos e ruminam durante vários dias a mesma refeição, "In Search Of..." tem várias cabeças, múltiplos pares de ouvidos, recolhe as franjas da música negra de décadas anteriores e regurgita tudo sob a forma de bolo musical janado, inquieto e psicadélico, hip-hop que no século XXI soa a clássico instantâneo.
É o tipo de disco que lembra putos a montar puzzles da forma errada, juntando peças que à partida não encaixariam - e é imensamente lúdico.
Não é o disco típico de Madlib, que por vezes parece quase ser um bibliotecário da música negra. E não é o disco típico de Madlib porque à frente de cada sample, de cada "beat", está um trio de rappers de L.A., os Strong Arm Steady (SAS), que fazem uma demonstração de classe: não é que não falem de armas, mulheres ou drogaria, é que não fazem gala disso; antes entregam cada rima com o primor dos mestres. O que, para moços cuja discografia é quase nula ou sem visibilidade, é um feito.
"In Search Of Stoney Jackson", obscuro título para disco tão luzidio, talvez não vá valer aos SAS um disco de platina, mas é certo que lhes vai dar a respeitabilidade que até agora só tinham na sua zona e entre os entendidos do hip-hop. "Com o 'In Search Of Stoney Jackson' vamos ao Brasil, à Austrália, ao Japão, e vamos passar meses na estrada, meu", diz, ao telefone, Krondon, assim confirmando a ideia que tínhamos: isto não vai ser gigante mas vai ser grande.
Krondon é um terço dos SAS e o membro mais visualmente reconhecível da banda: um albino grande para xuxu, que dificlmente passa despercebido na rua. É também um tipo com um coração de ouro, que atende o telefone às três da manhã, fica horas à conversa e agradece mil vezes a cada elogio que fazemos ao disco. Mais parece um velho cantor soul do que um rapper. Os outros dois membros são Agony e Mitchy Slick.
Ao contrário do que se possa pensar, esta trupe não é um trio de novatos. Eles andam pelo circuito underground de L.A. há muito, e um dos seus ex-membros, X-Zibit, já tem uma data de discos a solo e um de oiro. Os próprios SAS já poderiam ter uma discografia maior se até aqui tivessem editado discos e não uma data de mixtapes - já lançaram mais de uma dezena, e são pioneiros do género.
"Há uns tempos", conta Krondon, "o J Ro, que é o meu Rick Rubin, perguntou-me se nós queríamos fazer mais uma mixtape" (J Ro, já agora, é um produtor de hip-hop da cena underground de Los Angeles. Rick Rubin é o fundador da Def Jam, mítica editora de hip-hop. Entretanto tornou-se conhecido pelos discos que produziu com Johny Cash). "Eu disse-lhe que já chegava de fazer mixtapes, que queremos é ser conhecidos por fazer grandes discos", continuou Krondon. "E aí o J Ro disse 'Então vamos fazer um disco com o Madlib'. E eu pensei que era um sonho". A relação já vem de trás, afirma: "Vimos da mesma cidade - ainda que não da mesma zona. Mas conhecemo-nos há muito tempo, andávamos muito juntos". É todo elogios para Madlib: "É uma instituição. E nós vamos tornar-nos numa".
Madlib pode ser conhecido pelo seu trabalho a solo, mas vem da Liquid Crew. O que não fazíamos ideia é que Agony, dos SAS, "sempre foi parte dessa cena". Krondon, um dos tipos com mais bom humor com que alguma vez conversámos, queria à força que ficássemos a par das histórias que Agony tinha a contar de Madlib: "Queres que chame o Agony para ele te contar a história toda? Ele está mesmo aqui. Eu passo-to. Tu tens de ouvir isto. Tu tens de fazer os teus trabalhos de casa e conhecer estas histórias, 'brutha'".
A razão pela qual os SAS não têm esse estatuto não se deve apenas a terem passado anos a editar mixtapes em vez de discos, mas ao facto de a maior aposta do colectivo, "Arms & Hammers", ter ido para a gaveta depois de ter sido gravado. "Andámos a trabalhar nisso três anos", conta Krondon. "Está gravado e remisturado e vai sair este ano na editora do Talib Kweli", informa, com aquele desafogo de quem finalmente respira fundo e vê a vida a andar para a frente. O disco nunca saiu porque a editora, na altura, foi à vida. "O que me deixa feliz", diz, "é 'Arms & Hammers' ser tão diferente de 'In Search of Stoney Jackson'. Nós estamos a parir dois mundos totalmente diferentes ao mesmo tempo. As pessoas têm uma ideia do que os artistas fazem. E muitas vezes os artistas tentam fazer aquilo que os outros pensam que eles devem fazer. Nós não. Não estamos nisto para agradar. Queremos estar ao lado do J Dilla, do Jay-Z, do Nas, do Snoop Dog".
O que Krondon diz é natural na cultura confrontacional do hip-hop. O que não é normal é ele depois atirar, como um menino grande, "Não me leves a mal, não quero soar arrogante, quero deixar bem claro que respeito todos esses artistas e aprendo com eles e quero ser tão bom quanto eles. 'Word, brutha'".
Cinco quilos de erva
"In Search Of Stoney Jackson" "é um disco clássico", "uma combinação linda", em que "o total é maior que a soma das partes". "Talvez a melhor coisa que algum de nós alguma vez fez", diz Krondon, já se sabe, "com todo o respeito pela obra do 'brutha' Madlib"
Na raiz do sucesso do disco está o método. Ou melhor a ausência de método: "Uma semana depois de lhe falarmos no disco, o Madlib apareceu-nos com 300 'beats'. Não estou a brincar. Ainda os tenho todos no meu computador".
Os SAS puseram tudo no PC. E depois andaram "por ali a foder com a cena durante três meses". Tinham um método: "Quem estivesse a passar por L.A. ia ao estúdio, fumava ganza connosco e era obrigado a ouvir os 'beats' todos até gostar de um, até dizer 'É este o 'beat', tenho uma ideia, vamos gravar'. Quem quer que de nós lá estivesse na altura, gravava o que quisesse, quando quisesse".
Aquilo, diz Krondon, "era jam". Ou ainda melhor "Era como jazz". "Queríamos que as nossas vozes funcionassem como instrumentos. Queríamos entrar no ambiente de cada faixa. Isto é mesmo improvisação. E é isso que torna 'In Search Of Stoney Jackson' um clássico", diz Krondon a mil à hora, antes de afirmar, às gargalhadas, que o disco "pesa cinco quilos de erva". A erva, insiste, representa um grande papel na música dos SAS. Ela ajuda ao ambiente de liberdade que se respira por todo o disco, o ambiente que nos faz sentir "que a qualquer momento tudo pode acontecer". Porque este "não é um disco de hip-hop certinho em que sabes que depois de um rapper vem outro rapper e o convidado aparece no refrão. A estrutura é livre. Cada um fez o que quis e isso dá origem a merdas muito esquisitas. É isso que faz do disco o melhor disco de hip-hop, jazz, funk que se ouviu em muito tempo".
Perguntamos de onde vem o nome "Stoney Jackson". Resposta: "Ah, meu, isso é toda outra história. Isto tem camadas como um bolo de casamento". "Tu sabes o que 'stoney', certo?" [calão para estar pedrado]. Além disso, o disco sai na Stones Throw. Depois o verdadeiro nome do Madlib é Otis Jackson. Dá para perceber de que estamos à procura". A história não acaba aqui. Stoney Jackson é um nome verdadeiro. "Era um cantor actor dos anos 80. Vê no Youtube. Vê os clips, as entrevistas. Aí vais perceber. Quer dizer, aquele preto entrou no vídeo do Michael Jackson, o 'Beat It'. E depois googla 'Jericho'. Vais perceber".
(Bem, Stoney Jackson era um actor dos anos 80, que entrou em filmes de culto, contracenou com Chris Rock, e entrou numa série de clips. A parte do "Jericho" ainda estamos para perceber.)
A terminar dizemos a Krondon que seria simpático se eles dessem um pulinho a Portugal. Resposta mais do que à altura: "Tudo o que tens a fazer é dizer aos promotores, ao Presidente, ao Governo, ao exército, que nós queremos ir aí, eles ligam ao nosso agente e nós aparecemos com o Madlib, o J Roc e vamos rockar bum-bum-bum a noite toda. Tens o meu número de telefone, por isso não há desculpa".
Nós temos o número deles, vocês têm de os ouvir. E depois vamos todos bum-bum-bum a noite toda.