O pequeno teatro barroco do sexo nas colónias

Foto

Em 2007, quando integrou na sua colecção o portfólio "Harper's Pictorial History of the Civil War (Annoted)", com um conjunto de 15 serigrafias da norte-americana Kara Walker, e a instalação-vídeo "The Girl from the Golden West", do português Vasco Araújo, o Museu de Belas Artes de Houston decidiu expor em conjunto as suas novas aquisições, apresentando sumariamente os autores: "Kara Walker é uma artista controversa e provocadora, melhor conhecida pelas suas silhuetas de imagens do Sul rural [dos Estados Unidos] dos anos que antecederam a Guerra Civil. Reimagina esta era em termos fantásticos, exagerando desassombradamente estereótipos raciais para forçar o público de hoje a reexaminar a suas presunções sobre o passado."

À época, o perfil de Vasco Araújo, que acabara um ano de residência de trabalho como bolseiro do Core Program, do próprio Museu de belas Artes de Houston, era traçado como o de um artista que "localiza o seu trabalho no mundo da ópera" com vídeos que "frequentemente celebram personagens marginais". A verdade, contudo, é que a exposição antecipava já aproximações entre a sua obra e a de artistas precisamente como Kara Walker.   

Vasco Araújo começou, de facto, o seu percurso enquanto artista plástico pela exploração do universo da ópera. Por um motivo simples: era um universo que conhecia por dentro. Formado em escultura, mas também em canto (que continua a praticar), a estrutura de construção dramática da ópera, enquanto espectáculo total, serviu-lhe de matéria inicial. A ópera era um mecanismo; nunca foi, contudo, sujeito ou objecto da sua obra. Na adaptação de certas árias, mas, sobretudo, na construção de personagens - na maior parte dos casos, femininas, habitantes de uma zona limítrofe, uma zona cinzenta entre a realidade e a ficção - o percurso de Vasco Araújo alicerçou-se inicialmente numa pesquisa ligada a questões de auto-representação e identidade a partir de um questionamento sobre a identidade sexual.

Operando um trabalho de transformação de género sobre si mesmo, como protagonista de vídeos e fotografias em que frequentemente se apresentou como mulher, foi-nos propondo a sexualidade como qualquer coisa de não definitivo, um território de permanente transição e mutação, chegando à noção de um eu múltiplo.

Mas o seu percurso sofreria inflexões. De resto, podemos tomar como um dos momento-marco de inflexão precisamente "The Girl from the Golden West" (2004), instalação-vídeo - foi escolhida para a Bienal de Veneza de 2005 - que parte da peça homónima de David Blasco e da ópera "La fanciulla del West", de Puccini, ambas de 1910.

Questões de representatividade e identidade, sim, mas, nos últimos anos, depois de "The Girl from the Golden West", frequentemente ligadas à história colonial, a circunstâncias de um passado colonial que é o português, mas trabalhado de forma facilmente universalizante. É o caso de "Debret", a exposição que apresenta agora no Pavilhão Branco do Museu da Cidade, em Lisboa.

Brancos e negros em miniatura

A partir da obra de Jean-Baptiste Debret, pintor oitocentista francês que a convite de D. João VI integrou a missão francesa para o Brasil - o seu legado em pintura, aguarela, desenho e gravura traça um retrato do Rio de Janeiro da época -, Vasco Araújo reinterpreta as relações entre brancos e negros nos tons de um "vaudeville" em que a comédia é apenas a face superficial de uma tragédia maior. Estamos no domínio da miniatura: para "Debret" Vasco Araújo recupera estratégias já exploradas em "Ballet de l'Alcidiane" (2002).

Em "Ballet de l'Alcidiane" (2002), representando os protocolos das danças de corte chegadas a França vindas de Itália, Vasco Araújo propunha-nos vitrinas em cujo interior diminutos cenários e figuras em plasticina colorida evocavam os ideais (nomeadamente estéticos) veiculados por esses jogos performativos; em "Debret" regressamos à face lúdica, à exuberância e teatralidade dessas pequenas figuras, desta vez em fimo: uma série de delicadas mesas pintadas e, sobre elas, uma série de ovos, referência aos famosos ovos Fabergé da corte imperial Russa, de dentro dos quais, em vez de jóias, saem os quadros de uma história - efabulada "ma non troppo" - das relações de poder e subjugação estabelecidas entre colonos brancos e escravos negros.

Talvez um primeiro olhar, mais desatento, passe apenas pela ironia caricatural do sexo sem censura. As pernas de dois negros a aparecer sob os folhos da saia armada de uma grande senhora a quem fazem cunnilingus, um pequenino e pálido homem enchapelado a fixar um horizonte para lá de nós com as pontas do casaco levantadas e as calças descidas enquanto um escravo o sodomiza: é preciso parar, demorar mais, para ver os cortes vermelho sangue das vergastadas nas costas dos escravos que fazem a tessitura terrivelmente violenta deste pequeno teatro barroco do sexo nas colónias.

Por entre as referências às artes decorativas, o processo é alegórico: a questão não é o sexo, são os exercícios de poder, a subjugação, o desrespeito. "Pelo que fizeram se hão-de condenar muitos, pelo que não fizeram, todos", escreveu Padre António Vieira. É uma das muitas citações de tom tonitruante inscritas nos tampos das mesas feitas palco.

Portugal - e esta tem sido uma discussão permanente - nunca fez um verdadeiro face-a-face com o seu passado colonial, não construiu um verdadeiro discurso pós-colonial. Até há poucos anos a cultura contemporânea portuguesa era, na verdade, praticamente omissa em imagens evocativas desse percurso, sobretudo imagens que despissem a couraça protectora de uma certa distância analítica permitindo-se, em vez disso, alguma visceralidade.

No final do ano passado, com a publicação de "Caderno de Memórias Coloniais" (ed. Angelus Novus), Isabela Figueiredo libertava demónios num ajuste de contas com o pai morto, um electricista em quem fez encarnar todos os males do racismo - o pequeno racismo quotidiano, da base da pirâmide. As reacções não se fizeram esperar, extremadas. Talvez estejamos, por fim, a chegar a alguma catarse.

Sugerir correcção
Comentar