Dois séculos depois das "Luzes" de Diderot e D'Alembert, os autores da enciclopédia moderna, a "Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX" vem iluminar a música portuguesa como nunca antes se tinha visto. Não é livro para ficar na estante: quem quiser saber (quase) tudo sobre a música portuguesa do século passado terá de viajar pelos quatro volumes desta enciclopédia que faz muito mais do que reunir o que já se sabia. Dá, pela primeira vez, uma detalhada visão de conjunto da música portuguesa, passando as fronteiras da popular e da erudita, e acolhendo tudo e todos os que se destacaram e/ou contribuíram para a história inscrita no século. Nela cabem músicos e compositores, danças e instrumentos, mas também críticos, historiadores, poetas e instituições. O primeiro volume desta viagem pela música em Portugal foi agora editado pela Círculo de Leitores. Os três que completam a Enciclopédia chegarão ao ritmo de um por mês.
Sob a direcção de Salwa Castelo-Branco, a Enciclopédia nasce depois de um trabalho de investigação de mais de uma década. Nascida no Egipto, mas radicada em Portugal desde o início da década de 1980, a coordenadora liderou uma equipa de centena e meia de colaboradores, entre especialistas como Rui Vieira Nery e Mário Vieira de Carvalho e toda uma nova geração de investigadores formados, durante o processo, no Instituto de Etnomusicologia da Universidade Nova de Lisboa. Tratou-se de um "trabalho de equipa", como a directora do projecto faz questão de sublinhar, destacando os nomes do "núcleo duro" que a acompanhou no processo: António Tilly, Rui Cidra, Hugo Silva, Pedro Félix, Pedro Roxo e Leonor Losa.
É mais do que uma enciclopédia sobre a música. Porque não é só o país que faz a música, a música também faz o país.
Aquilo em que primeiro pensamos ao deparar com a Enciclopédia é que esta virá preencher um vazio de obra e pensamento sobre a música portuguesa. Terá sido isso, de resto, a impulsioná-la...
Todos nos deparámos com esta lacuna. Recebia emails e faxes de colegas no estrangeiro, perguntando onde podiam encontrar uma biografia, um texto rigoroso sobre Amália Rodrigues, José Afonso, Luís de Freitas Branco ou qualquer outro grande nome da música portuguesa e, de facto, em 1995, isso não existia. Havia o dicionário generalista de Lopes-Graça e Tomás Borba [editado em 1955], um esforço notável para a época, com entradas muito valiosas, mas com pouco sobre a música portuguesa e muito pouco sobre a música popular. Antes disso, tivemos os dicionários de Ernesto Vieira, no final do século XIX, início de século XX, um biográfico, outro mais geral. Muito valioso enquanto documento histórico, mas, se lermos a entrada sobre fado, não nos serve para o século do fado. Depois, no final do século XX, temos uma enciclopédia sobre a música ligeira, pelos irmãos Pinheiro de Almeida, que tem muitos dados, mas não é abrangente. Achei que para abrir uma janela sobre a música no século XX, em Portugal, tínhamos que ter essa abrangência.
Em que tipo de trabalhos se inspirou esta enciclopédia?
Tentei que a enciclopédia se pautasse pelo melhor que existe no mundo e, a nível de um dicionário universal abrangente, surge obviamente o "Grove" [Dictionary of Music And Musicians]. O "Grove" tem um estilo de apresentação que assegura que todas as entradas têm um percurso biográfico, a formação, o percurso artístico, um parágrafo no mínimo sobre o estilo composicional e o estilo interpretativo. Isto para que percebamos porque é a Amália a grande diva do fado. Não basta dizer que a voz dela é excepcional, que ela tem talento e bom gosto musical. Há coisas mais concretas que podem ser ditas numa linguagem acessível ao público em geral. Porque há ingredientes no modo como ela aborda a melodia: a mudança do timbre, mais nasalado ou menos nasalado, ou a ornamentação. Outro exemplo, os muitos compositores de bandas filarmónicas, que são um universo muito importante, mas, com algumas excepções, compõem dentro de um quadro estilístico muito específico. Outros inovaram, introduziram uma linguagem mais jazzística, mais acessível aos jovens, e é importante que a pessoa acabe de ler a entrada com a percepção do que fez aquele homem.
A obra nasce ao fim de um longo processo de mais de dez anos. Como foi orientado? Com que dificuldades se depararam?
O ponto de partida foi varrer toda a literatura e discografia existente. Tivemos que contar com os investigadores que havia, mas também com a formação de toda uma geração de jovens investigadores que se formaram no processo da construção da enciclopédia. Essa foi uma das apostas, porque em 1997 não havia, por exemplo, quem estudasse o pop rock de um ponto de vista académico, com as ferramentas dos "popular music studies", área de investigação que se desenvolveu desde os anos 80 nos EUA e em Inglaterra. E também a aplicação da etnomusicologia, na acepção mais lata do termo. Desde os anos 70 que estuda todos os domínios da música a partir de uma perspectiva multidisciplinar e contextualizante, aplicando a metodologia da etnografia. Tentámos que esta perspectiva esteja tão presente quanto possível: a música como parte da cultura, como processo social. O modo como a música não só se integrou como corporizou processos sociais.
[A enciclopédia] demorou 12 anos a ser concluída pela sua extensão, pela necessidade de assegurar o rigor e também pela falta de acesso às fontes. Como não temos um arquivo sonoro nacional, apenas temos acesso àquilo que passou para CD. Quer quanto aos discos de 78 rotações, quer em relação aos EPs que não passaram para CD, tivemos que recorrer a colecções particulares. E optámos pela edição dialógica, pelo diálogo com os biografados - fizemos mais de 400 entrevistas e, depois de os textos estarem prontos, voltámos a trocar impressões quanto a questões factuais. As entradas têm autoria e ponto de vista, uma perspectiva analítica de autor, mas queríamos assegurar que a parte factual estava correcta. Claro que, como acontece numa obra de referência, esperamos por uma segunda edição para colmatar eventuais lacunas.
Não é feita uma separação de domínios musicais, mas ainda hoje as investigações estão, de certa forma, separadas. Como se promoveram as investigações de forma a cruzar os vários domínios?
À medida que o trabalho foi avançando, fomo-nos apercebendo de que não existem aquelas separações que os próprios termos sugerem. Muitos compositores da chamada música erudita também trabalhavam para o teatro de revista, como o Frederico de Freitas. O Alain Oulman foi, como sabemos, um compositor muito importante no fado, mas não havia nenhuma informação disponível sobre ele. Alain Oulman tem uma formação de música erudita e o seu encontro com a Amália e com o fado foi muito interessante. Esta abrangência mostrou a importância do cruzamento entre domínios musicais. Por outro lado, quisemos enquadrar a música em termos culturais e políticos.
Partindo de uma perspectiva etnomusicológica, era impensável separar os domínios. Os 155 redactores são cada um especialista e interessado em alguns domínios. Houve uma estratégia múltipla. Ir aos especialistas que já publicaram e que fizeram investigação sobre figuras, eventos, domínios. O professor Mário Vieira de Carvalho, com o seu trabalho sobre Lopes-Graça, é o autor da entrada sobre Lopes-Graça. Outra estratégia foi convidar um conjunto de pessoas, algumas mais experientes, outras em fase de formação mas com imenso potencial, e desafiá-las a fazer investigação. Esta obra não é a síntese daquilo que existia, esta obra estimulou nova investigação. Mais de 90 por cento do que está aqui é novo e é importante enfatizar isso. Não é uma obra de síntese daquilo que existia, porque em muitos casos não existia nada.
O primeiro volume da Enciclopédia vem acompanhado de um CD ["Breve Viagem Pela Emissora Nacional (1938-75)"], o que acrescenta uma dimensão sonora à informação registada. Servirá de impulso para divulgar um acervo musical que, muitas vezes, não está disponível ao público?
A nossa aposta foi, precisamente, pôr cá fora coisas que não estão no mercado ou não passam na rádio. O terceiro volume terá um CD com gravações do princípio do século até aos anos 30. Fonogramas de 78 rotações, quer de fado ou canções revisteiras, a música urbana que circulava então. Vemos como a indústria fonográfica, que é sempre transnacional, se relacionou a nível global. Ouvir o som ajuda-nos a chegar de pára-quedas àquele momento e a partilhá-lo. O arquivo da rádio é muito rico e está todo por explorar, por estudar, por reeditar. Esperemos que no futuro possamos fazer esse trabalho.
Podemos dizer que, depois desta edição, as Ciências Musicais não vão ser as mesmas?
Espero bem que sim. Temos, definitivamente, uma geração jovem de estudiosos musicais variados a interessar-se pela erudita, o pop-rock, o jazz, o fado ou a música popular urbana. Com toda a modéstia, o Instituto [de Etnomusicologia - Centro de Estudos em Música e Dança] teve muito a ver com isso. Desde os anos 80 que estou a formar gente aqui na Faculdade [de Ciências Sociais e Humanas - UNL] e logo que começou a haver uma massa crítica mínima, nos anos 90, promovi a investigação e mantive as pessoas juntas. A dinâmica do trabalho em equipa é completamente diferente. Não seria possível de outra forma.
Finalizada a investigação e escrita a Enciclopédia, que Portugal sobressai delas?
Um país riquíssimo, quer em termos de música tradicional, quer em termos da chamada música popular, quer na erudita. No fundo, é um país por descobrir, com muito mais do que suspeitamos. E é um país muito interessante porque tem uma componente que muitas vezes é esquecida e a que demos atenção. A vocação ultramarina. A história de Portugal enquanto país que esteve presente em África, na Ásia ou no Brasil tem muitos reflexos na música: os processos que ocorreram a partir dos anos 60, com a migração oriunda das ex-colónias portuguesas, sobretudo Cabo Verde e Angola, e também com a presença em Portugal, e as carreiras, com Portugal como base, de grandes músicos angolanos e cabo-verdianos, como o Bana ou o Bonga. Também sobressai a quantidade de músicos portugueses muito conhecidos que tiveram uma boa parte do seu percurso nas ex-colónias. Pessoas que viveram lá, que lá tiveram carreiras musicais, mesmo que ganhassem a vida com outras coisas. Essa vivência dos territórios do Portugal ultramarino é muito interessante - tal como está patente na música do José Afonso, em que teve uma grande importância na configuração do seu estilo -, mas é também algo por explorar no caso de outros compositores e intérpretes.
De nacionalidade portuguesa, mas nascida no Egipto, tem também um olhar exterior sobre a música portuguesa. Identifica-lhe alguma marca, algo que, independentemente das diversas expressões musicais, seja distintivo?
Há coisas que um país partilha com os outros, devido à rádio e mais tarde à televisão. Aquilo que distingue Portugal tem a ver com o espaço lusófono, com essa interacção que extravasa os limites da Europa. A presença dos migrantes tem um papel na música em Portugal: o hip hop é interessantíssimo pelo papel que desempenha a segunda geração. Depois também há uma importância enorme da poesia, que atravessa vários domínios. Temos cerca de 30 entradas sobre poetas e autores de letras, quer no âmbito do fado, quer no âmbito da música popular, como David Mourão-Ferreira, Manuel Alegre ou Ary dos Santos... A poesia, dos poetas populares aos mais eruditos, tem uma preponderância que fundamental. Outro aspecto é o modo como a nação se foi construindo através da música. O nacionalismo na música não começa no Estado Novo, começa em meados do século XIX e atravessa todos os tipos de música desde meados do século XIX. A Monarquia Constitucional, a República, depois o Estado Novo e o pós-25 de Abril, apresentam modos muito distintos, apesar de algumas semelhanças, de construir a Nação ou as regiões.
Qual pensa ser o futuro desta obra? Para o público em geral, o que poderá significar?
Espero que estimule o público a valorizar mais a música e, quanto ao público que já a valoriza, que o leve a abrir-se a outros domínios. Que contribua para valorizar a música enquanto património pelas entidades do Estado e que estimule mais investigação e mais edições. Que abra os meios de comunicação social ao diálogo com a Universidade. E que continue... Em Espanha publicou-se um dicionário de música hispânica - uma obra enorme em nove volumes, sediada e financiada pela Sociedade Espanhola de Autores. Uma obra dessas gastaria muitos recursos mas vale a pena apostar nela, porque os arquivos das rádios estão cheios, têm material fabuloso e as pessoas estão ainda vivas. Desde que a enciclopédia começou, e isso é a ordem natural das coisas, muitas pessoas desapareceram. Mas entrevistámo-las, trabalhámos com elas. Foi uma das nossas aflições e um dos nossos anseios: fixar a memória.