Ninguém pergunta a um realizador de filmes de acção se ele tem vontade de matar gente em catadupa; ninguém perguntava às actrizes de Bergman se fora dos filmes do sueco elas queriam cortar os pulsos (ou o que mais cortassem nas fitas). Mas por alguma estranha razão, enclausurada no inconsciente colectivo de quem compra música, espera-se dos músicos que sejam fora do palco o que são nas canções e nos concertos.
Pode haver uma linha a unir vida e canção, mas é certamente mais sinuosa do que uma linha recta. Os artistas hedonistas são muitas vezes ex-reprimidos, os misteriosos são frequentemente seres inseguros, e há alturas em que se descobre que as Grace Kellys são ninfomaníacas que encontram um papá em cada homem que lhes surge à frente.
Tomemos o caso dos Beach House. Os adjectivos usados para descrever esta dupla cuja música se resume a uma guitarra a envolver em névoa doirada os rococós de um órgão com travo a cravo incluem invariavelmente denominações como "nostálgicos", "oníricos" ou "misteriosos". As descrições da voz de miss Legrand, vocalista, usam termos como "veludo" e definem-na como "coquette" e "a última das românticas".
Se recuarmos uns meses, ao concerto que a dupla deu no Maxime, em Lisboa, as palavras parecem fazer sentido: entre os sofás vermelhos, as luzes a meia altura e a bola de espelhos do ex-cabaret, as canções lentas dos Beach House (servidas pela voz "coquette", de "veludo", de miss Legrand, por uma guitarra em slide e por um órgão esquecido num palacete em ruínas) eram "nostálgicas", "oníricas" e a donzela parecia, no meio daquelas canções de amores perdidos, "a última das românticas". As canções de "Devotion", o disco que então promoviam, evocavam amores de inverno, raparigas lacrimejando em salões com lustres, tragédias surdas envolvendo o namorado da melhor amiga, chá e vestidos de folhos.
Mas depois do concerto, quando os pagantes se sumiram reconfortados na confirmação dos adjectivos que tinham lido em revistas da especialidade, os Beach House - Alex Scally e Victoria Legrand - começaram a beber, actividade que, pelo à vontade com que se dedicaram à ingestão de álcool, não pareceu ser-lhes desconhecida. Tornou-se claro que não são apenas um parzinho acabrunhado, de ar tímido, com jeito para canções belas. São um parzinho acabrunhado, de ar tímido, com jeito para canções belas, que bebe como se não houvesse amanhã.
Gente da sua idade
Meia dúzia de meses depois, a dupla esteve à conversa com o Ípsilon a propósito de um concerto em Portugal, e aproveitando para antecipar "Teen Dream", terceiro tomo da discografia da dupla - um disco que, dizem, funciona como um "battle cry" aos adolescentes. Foi no lobby de um hotel lisboeta, em dia de festival de música, com estrelas dos Strokes e de mais um punhado de bandas a passear por ali. Tínhamos acabado ouvido "Teen Dream" pela primeira vez no dia anterior, e só agora é que ele sai para as lojas. Estávamos há mais de uma hora à conversa, devorando bebidas (água lisa, para sermos precisos) quando Alex Scally, o homem das guitarras, atira: "Nós levamos vidas desequilibradas. Somos boémios. Deixamo-nos levar por este estilo de vida".
E ali estava: o romantismo melancólico de uma dupla que, à partida, diríamos passar as noites à lareira, dava lugar a uma simples verdade. Os Beach House são gente da sua idade e gostam de viver entre festas, gente bonita, os copos e os corpos. Romantismo, melancolia, onirismo, o raio: eles gostam de hedonismo e do duro.
Passamos uns minutos à volta disto. Alex Scally é particularmente conversador, enquanto Victoria Legrand, enfiada numas olheiras descomunais, pontua aqui e ali as afirmações do colega de banda: "Eu nem sequer cozinho". Scally continua: "Eu sinto-me alienado do meu apartamento. Mudei-me para lá, mas nunca vivi lá. É um armário caro". Victoria sobe a parada: "Eu nem sequer tenho apartamento". O diálogo continua nestes termos - o que, na prática, significa que eles parecem, por vezes, uma dupla de humor. Era a última coisa que esperaríamos deles, mas têm-no em barda.
A propósito, o estatuto da relação entre eles é alvo de alguma curiosidade entre os media: são ou não namorados?; ele é gay?; ela é promíscua? Lemos coisas assim nas páginas de publicações americanas. Scally, diz, com humor, que são casados mas é mentira: não há suficiente amargura e ressentimento no número de humor da dupla para haver ali casamento.
O assunto "morada actual" é finalizado com uma simples afirmação de Scally: "Temos um armazém com os nossos instrumentos [em Baltimore, EUA]. É lá que vivemos a maior parte do tempo que estamos em casa". Passaram o último ano e meio em estrada, na sequência da explosão de "Devotion", o disco anterior (de 2008, mas que só chegou cá no ano passado). Depois de tamanho sucesso podia esperar-se uma longa espera até à chegada de "Teen Dream", o novo disco. Podia esperar-se que gente que faz canções tão lentas e que escreve canções que podiam ser mini-peças de Ibsen escrevessem com meticulosa ciência o sucessor do seu enorme êxito. No entanto nem "Teen Dream" foi um disco de laboriosos geómetras, nem a dupla acha que "Devotion" tenha sido sucesso algum.
Victoria, que escreve todas as palavras que canta, resume o processo de uma forma que revela o seu jeito para imagens: "["Devotion"] não foi uma explosão. Foi um fogo lento". Bastas vezes, na sequência de uma pergunta, eles falam entre si como se estivessem em casa e nós não existíssemos. Neste caso, Scally responde directamente a Legrand: "Era um disco que precisava de tempo para crescer, não era?" Depois vira-se para nós: "Este também não oferece gratificação instantânea". Victoria acrescenta, virada para o parceiro de "casamento": "Eram canções que pareciam uma garota a seduzir, a flirtar. Leva o seu tempo até chegar ao que interessa".
Em "Teen Dream", "ainda há mais mistério" do que em "Devotion", mas Scally acha que o novo álbum "tem tanto corpo como alma". "Nos outros", prossegue Victoria, "o corpo estava mais vestido. E agora há um ombro muito sexy à mostra". Ponto final parágrafo.
Sem vidros fumados
"Teen Dream" foi escrito no intervalo das digressões nos últimos meses, quando eles deviam estar a descansar. Legrand diz que "não houve transição, tempo para relaxar" e Scally justifica: "Sentimos que não temos tempo a perder. Estávamos reprimidos por andar em digressão e atirámo-nos de cabeça". Em digressão, explica, ficam fartos de tocar sempre as mesmas canções, que acabam por apagar da cabeça as ideias que vão surgindo entretanto. "Aproveitar as primeiras semanas de descanso para tocar piano e guitarra é uma bênção e surge tudo aí".
Por isso, em vez de fazerem o que está de acordo com a imagem deles - serem românticos lânguidos e preguiçosos que passam tardes a beber chá - trabalharam incessantemente no armazém. Tinham escassas regras - "fugir das guitarras slide porque estava a ficar muito usado, começava a soar a truque" e fazer "um disco sobre subir e descer, mesmo emocionalmente" - e grandes objectivos. Objectivo número um: "Queríamos que as canções fossem enormes". Conclusão, segundo Legrand: " É um disco mais próximo. Não há um véu fumado".
A conclusão número dois diz respeito à questão Mulher vs Menina que vem muitas vezes à baila a propósito de Legrand. "A voz dela está cada vez melhor. Estou impressionado. Já não é a voz de uma rapariguinha, é a voz de uma mulher. Agora a voz dela expressa um mundo. Como a Aretha Franklin ou a Ann Peebles. É fantástico. Comparam-na com a Nico, mas a diferença é que a Nico é só um sentimento, não é a vida inteira".
Por trás de tudo isto revela-se um pequeno segredo: os Beach House não são humildes. Scally - que se auto-define como um obsessivo - diz que, no estado em que estão actualmente, podiam "escrever as canções do primeiro disco num dia". E atira a mais inusitada das comparações. "Não somos tão bons como os Beach Boys, mas do "Surfin' Safari" para o "Pet Sounds" as canções deles ficam muito maiores. E nós queremos fazer o mesmo, só que queremos fazer muito com muito pouco. Tentamos transformar dois instrumentos numa orquestra".
Eles querem ter a vida toda enfiada na garganta. Querem ser tão bons quanto os Beach Boys. Caso não o consigam, não há problema: Victoria Legrand ficará sempre muito melhor nas fotografias do que Brian Wilson.