Obama faz nomeação inédita e os transexuais aprovam
A engenheira americana Amanda Simpson ocupou esta semana um cargo político em Washington. E só se tornou notícia porque é transexual. A direita religiosa está furiosa, o activismo LGBT aplaude. Mas quem é ela?
Amanda Simpson nasceu em Chicago numa família de origem judaica e foi registada com o nome Mitchell Simpson. Tem 48 anos. Até aos 39 viveu socialmente como homem, mas em 2000 mudou de sexo. É divorciada e tem um filho de 15 anos. Formou-se em Engenharia na California State University, em 1988. Durante mais de três décadas trabalhou para a indústria americana de armamento. Na semana passada, por indicação do Presidente Barack Obama, iniciou funções como consultora técnica do Departamento do Comércio dos EUA e reacendeu o debate sobre os direitos das pessoas transexuais e transgénero.
É a primeira vez que uma pessoa assumidamente transexual é nomeada para um cargo público por um Presidente americano, confirmou ao P2 o histórico activista americano da causa lésbica, gay, bissexual e transgénero (LGBT), David Mixner. Simpson trabalha em Washington, no gabinete da Indústria e Segurança, do Departamento do Comércio, e está incumbida de fiscalizar as exportações de armamento. Na ABC News comentou: "É mau ser a primeira, mas alguém teria de ser e calhou-me a mim. Terei que ter um desempenho acima da média e, ainda assim, sei que me vão olhar sempre com desconfiança."
Essa desconfiança parece não a preocupar muito: "Penso ter a experiência e as qualificações necessárias para lidar com qualquer problema. Já ultrapassei várias dificuldades noutros lugares e mostrei aquilo que sou capaz de fazer. Espero em breve ser apenas uma entre centenas e que esta nomeação abra caminho a novas oportunidades para outros."
Ascensão repentinaSimpson é aquilo que em inglês se designa por transexual MtF ("male to female" - que mudou de homem para mulher). Alguma imprensa americana refere-se-lhe como sendo transgénero, termo mais abrangente e menos rigoroso. Segundo uma notícia de 2002 do jornal Arizona Daily Star, agora citada pelas agências, ela terá gastado cerca de 70 mil dólares em seis operações, incluindo a de mudança de sexo.A direita religiosa americana não gostou da nomeação e já reagiu em força. "Até onde irá esta política de activismo gay e transgénero?", pergunta-se Peter LaBarbera, presidente do grupo anti-gay Americans For Truth About Homosexuality, citado pelo site The Huffington Post. "Obviamente, esta Administração está a soldo do lobby gay", afirmou.
Ao mesmo tempo, os conservadores evangélicos avisaram Obama para não contar com os seus votos nas eleições presidenciais de 2012. E Monica Schleicher, porta-voz da associação cristã Focus on the Family, declarou que "a promoção da transexualidade a nível do Estado visa trivializar o género, um dos mais básicos sistemas de organização social".
Para David Mixner, estas pessoas são "fanáticos religiosos" que "ainda nem devem ter compreendido bem o alcance desta novidade", pelo que "as piores reacções negativas ainda devem estar por chegar". O que não é estranho, se se atender ao facto de "a sociedade americana ter muito pouca compreensão pela luta pela liberdade das pessoas transgéneros", conclui Mixner.
Contactada pelo P2, Jó Bernardo, uma das primeiras activistas transexuais portuguesas, a viver actualmente em Paris, mostrou-se surpreendida, mas disse "acreditar piamente" que a nomeação de Simpson se deve exclusivamente às suas competências profissionais. "Muito me alegra que finalmente as pessoas transexuais ou transgéneros possam ser avaliadas pelas suas competências e não pelas transformações de índole puramente pessoal que possam ter feito em determinado momento das suas vidas."
Já o deputado do Bloco de Esquerda, José Soeiro, que está a preparar uma lei de identidade de género (a ser apresentada à Assembleia da República durante esta legislatura), diz tratar-se de um "acontecimento simbólico muito positivo e importante, que reconhece a dignidade de transexuais e transgéneros". Sobre se uma nomeação semelhante poderia ter lugar em Portugal, feita por um primeiro-ministro ou Presidente da República, o deputado tem dúvidas: "Em abstracto, sim, mas na prática sabemos que subsistem preconceitos."
Simpson era até agora praticamente uma desconhecida. Uma pesquisa pelo seu nome no site da conhecida revista gay americana The Advocate não devolve mais do que meia dúzia de notícias recentes sobre a nomeação. Olhando os dados biográficos disponíveis, dir-se-á que a sua ascensão foi repentina.
Piloto de testes de aviõesTornou-se activista LGBT no fim dos anos 90: passou pelas associações Out & Equal e National Center for Transgender Equality, a cuja direcção pertenceu entre 2006 e 2009. Como engenheira, trabalhou nos últimos 20 anos para a empresa de armamento Raython (no Texas) e antes disso tinha sido piloto de testes dos aviões T-39 Sabreliner e A-3 Skywarrior, escreve a agência AFP. Em 2000, iniciou o processo de mudança de sexo.Em vez de escolher o silêncio, como a maior parte das pessoas nessa situação, deu entrevistas e assumiu publicamente. Mas nunca chegou a ser uma figura nacional, como agora. Terá sido da sua responsabilidade a criação, dentro da Raython, de uma política de igualdade no acesso ao emprego por parte de homo e transexuais, segundo o site da GLBTA, associação que promove a visibilidade das pessoas LGBT dentro de empresas privadas americanas. Ter-lhe-á facilitado a vida o facto de a empresa ter uma política interna liberal: há muito que dava aos cônjuges dos seus empregados homossexuais os mesmo benefícios sociais que tinham os casais heterossexuais casados.
Em 2004, recebeu o prémio Women on The Move (mulheres com iniciativa), da YMCA, associação centenária americana que se dedica à defesa dos direitos humanos. E em 2005 entrou na cena política.
Disputou eleições internas no Partido Democrata para tentar ser candidata oficial ao órgão legislativo do estado do Arizona (House of Representatives). Acabou por não ser a escolhida. O tema da sua identidade de género esteve sempre presente: "Os verdadeiros problemas que afectam a população deste Estado estão acima daquilo que sou em termos de género", disse na altura.
No Verão de 2008, quando o Partido Democrata discutia qual o candidato a apresentar às presidenciais (Hillary Clinton ou Obama), Simpson foi escolhida por Hillary como delegada à convenção nacional do partido, que teve lugar em Denver, no Colorado.
A nomeação surge numa altura em que o Presidente Obama está sob fogo cerrado de grande parte do movimento LGBT americano. Por não dar sinais de querer pôr fim à política Don"t Ask, Don"t Tell (DADT - não perguntar, não dizer), que estabelece que os militares homossexuais que revelem a sua orientação sexual sejam expulsos das Forças Armadas; e por não revogar a Defense of Marriage Act (DOMA - lei da defesa do casamento), segundo a qual os casamentos entre pessoas do mesmo sexo celebrados num qualquer Estado não podem ser reconhecidos em todo o país.
David Mixner, um conhecido crítico de Obama, prefere não fazer a ligação entre os temas, limitando-se a comentar que "Simpson foi escolhida por ser a pessoa mais qualificada para o cargo e porque o Presidente Obama soube reconhecer que as qualificações dela são o que mais importa neste caso".
O mesmo pensa Carla Antonelli, activista transexual espanhola. Contactada pelo P2, considera que "não tem relevância nenhuma que se trate de uma mulher transexual", porque os critérios de escolha para postos de trabalho devem ser os da "competência e preparação profissional."