Iémen, um país feito de crises e absurdos à beira da explosão

Chamam-lhe a "nova frente" da "guerra ao terrorismo". Será a próxima Somália, o mais falhado dos estados, ou o próximo Afeganistão?

O país do pai de Bin Laden é notícia quando há um atentado ou o rapto de um grupo de turistas. Aparece e logo se esfuma. Isso mudou quando Farouk Abdul Muttallab incendiou a perna ao tentar fazer explodir um avião prestes a aterrar em Detroit no dia de Natal.

Foi no Iémen, diz Muttallab e confirma Washington, que o jovem nigeriano de 23 anos recebeu treino e explosivos. Ali terá amadurecido um percurso de radicalização que iniciara pouco antes, talvez em Londres, onde estudou Engenharia Mecânica.

A Al-Qaeda, na sua forma tradicional, como existia no Afeganistão até ao 11 de Setembro, com campos de treino e hierarquia, adora o caos. Países montanhosos, com tribos poderosas e Estado central fraco, muito conservadores e religiosos, onde armas e até explosivos se vendem nas esquinas. O Iémen tem tudo isso e "pode tornar-se um refúgio para terroristas", diz Bernard Haykel. Mas a Al-Qaeda não merece crédito pelas condições que tornaram favorável a sua presença.

Para o director do Instituto Transregional da Universidade de Princeton, "a razão pelo qual o Iémen é um Esta-do fraco é a liderança do Presidente [Ali Abdullah] Saleh, um autocrata que fica com o dinheiro para si e impediu a criação de instituições políticas e o desenvolvimento do país". Saleh chegou ao poder em 1978, quando havia dois Iémens. Ficou durante a guerra, a unificação e a nova guerra civil.

Em 2005 comemoraram-se os 15 anos da reunificação. Mukalla, um porto a leste de Áden, foi a sede das festas. À chegada, estranhava-se então uma estrada acabada de estrear com um enorme corredor central de relva, quilómetros de relva fosforescente num dos países do mundo com a maior crise de água. Como em todas as cidades, em cada rua, rotunda, esquina e parede, não faltavam retratos de Saleh nessa imensa estrada.

O Iémen é feito de muitos absurdos, como o facto de metade da água restante ser usada no cultivo de qat, a erva que iemenitas, somalis e etíopes consomem e na qual os homens gastam parte considerável do parco orçamento familiar. Saleh é mais um absurdo, como a relva que mandou plantar em Mukalla.

A relva e Saleh

A relva tem tudo a ver com a Al-Qaeda. O Iémen é hoje o país de todas as crises e a Al-Qaeda adora crises. Há uma crise de água; uma crise de emprego e um crescimento demográfico explosivo; há o petróleo e o gás a esgotarem-se; há a guerra com os xiitas zaiditas do Norte, que desde 2004 fez milhares de mortos e em 2009 provocou uma crise humanitária e uma troca de acusações entre Riad e Teerão, de apoiarem uns o Governo, outros os rebeldes; há o movimento separatista do antigo Sul marxista que ameaça iniciar uma revolta. Há a Al-Qaeda.

Há também Saleh, que sempre usou os islamistas para combater os secessionistas ou outros inimigos. Que é zaidita, mas que os iemenitas vêem como aliado dos islamistas sunitas.

As ligações entre o Iémen e a Al-Qaeda são tão antigas como Osama bin Laden. Como da Arábia Saudita ou dos Balcãs, muitos iemenitas partiram para combater os soviéticos no Afeganistão. Apoiados pelo dinheiro do saudita Bin Laden, dos príncipes da família Saud e de Washington.

Anos mais tarde, o Afeganistão tornou-se na casa de todos quantos acreditavam que era preciso combater os regimes laicos e déspotas da região, aliados dos norte-americanos. Iemenitas houve que voltaram a partir. Combateram os EUA no campo de batalha que o 11 de Setembro fez renascer, alguns ter-se-ão feito explodir no Iraque. Muitos morreram, cem acabaram em Guantánamo. Outros voltaram a casa, junto à fronteira do Norte, no deserto e nos desfiladeiros de Hadhramaut, a leste, ou no Sul, mais perto do mar - que chegou a fazer do Iémen a Arábia Feliz, próspero entreposto de todas as rotas, da seda ao incenso.

Um ano antes do 11 de Setembro, a Al-Qaeda reivindicou o ataque ao USS Cole, que matou 17 marinheiros norte-americanos; um ano depois dos atentados de Nova Iorque, reclamou o ataque ao petroleiro francês Limburg. Ambos no porto iemenita de Áden. Saleh disse que estava com a Administração Bush e esta enviou dinheiro e agentes. Mas deu nas vistas: em 2002, a CIA matava pela primeira vez recorrendo a um míssil lançado por uma aeronave sem piloto, um drone. Ali al-Harthi, procurado pelo ataque ao Cole, morreu em andamento, num jipe numa montanha do Iémen.

Algumas acções desse período ajudaram o inimigo: "O ataque com o drone é o melhor exemplo. A Al-Qaeda obteve um boom de curto prazo no recrutamento. Mas o ressentimento que surgiu entre os iemenitas foi pior. Descarregaram em Saleh e este nunca mais viu os EUA como um parceiro amigo e credível", recorda Brian O"Neill, co-autor do blogue Waq al-Wad, dedicado ao Iémen.

Com o tempo, Washington pensou que a Al-Qaeda estava derrotada no Iémen. Veio o Iraque, também. E A Al-Qaeda na Península Arábica (AQPA) atacava na Arábia Saudita, país dos santuários do islão. O ano passado, a AQPA tornou-se iemenita: vencida em Riad, atravessou a disputada fronteira e encontrou novos líderes, incluindo Saeed Ali Shehri, libertado de Guantánamo em 2007.

De novo um avião

"Ali Shehri conseguiu criar um movimento capaz de lançar o ataque [de Agosto de 2009] contra o vice-ministro do Interior saudita e agora tentou treinar este nigeriano. Se não tivessem escolhido um alvo ocidental, um avião, ninguém lhes teria prestado importância", argumenta Bernard Haykel.

Entretanto, as Shabab somalis, milícias que nasceram da União dos Tribunais Islâmicos, uma coligação que chegou a controlar Mogadíscio em 2006, dizem estar a enviar reforços para o Iémen. "As ligações são ténues, mais emocionais do que logísticas", garante O"Neill, ex-editor do jornal Yemen Observer. "As Shabab estão envolvidas numa luta interna sobre quem é mais puro. Não têm tempo para se envolver seriamente no Iémen." Pelo menos por agora.

Os membros da Al-Qaeda no Iémen (a nova AQPA) serão umas centenas. Num país em que as tribos são tão poderosas, há quem proponha que se pague aos chefes tribais para expulsar estes homens dos seus territórios, como o general David Petraeus fez no Iraque. "Infelizmente, não me parece que resulte. Há uns anos teria sido possível, mas as tribos já não confiam no Governo e aceitar dinheiro dos EUA seria difícil de engolir. Mais importante, os membros da AQAP têm estado a casar em determinadas tribos. Os que poderiam banir a AQAP não vão expulsar um membro da tribo", explica O"Neill.

Washington não fala em enviar militares. Seria desastroso: nenhuma academia pode preparar soldados para o Iémen. Em vez disso, congratula-se com as operações lançadas por Saleh, que nas últimas duas semanas permitiram prender e matar alguns jihadistas, e anuncia que vai aumentar a ajuda económica. Dinheiro para Saleh comprar armas, treinar soldados e combater a Al-Qaeda.

Haykel não tem dúvidas: "Ele vai usá-lo para combater os seus próprios inimigos". O"Neill defende que "é do interesse dos EUA dar informações a Saleh e até talvez armas, mas estas só podem ser usadas contra a Al-Qaeda, e não contra a rebelião huthi [xiitas do Norte] ou contra o movimento secessionista do Sul".

Não se meter

O"Neill sustenta que o melhor que Washington pode fazer é combater os problemas de desenvolvimento de um país "desesperado, pobre e malnutrido". Estrategicamente, "ajudaria a secar parte da base de recrutamento da Al-Qaeda, ao mesmo tempo que mudaria a face da presença dos EUA, que parecem só se incomodar quando os problemas os afectam directamente e só saberem responder com ameaças e violência".

Haykel tem a sua própria solução. "Que a América não se meta. O que tem de fazer é convencer os países da Península Arábica a encontrarem uma solução, que só pode ser regional. Eles são mais ameaçados por um colapso do Iémen do que os EUA. Uma solução instantânea para muitos problemas seria abrirem o mercado de trabalho aos iemenitas", defende, numa conversa telefónica a partir de Nova Iorque.

O Iémen não é nem nunca foi um país verdadeiramente unificado. Saleh está no poder há 31 anos e fez muitos estragos, concentrando o poder em redor da sua família. Ainda há Estado no Iémen. Mas, pesando todas as crises que ali se cruzam hoje, é fácil imaginar um Afeganistão ou uma Somália na ponta sul da Península Arábica.

Brian O"Neill considera que Saleh tem "20 por cento de hipóteses" de sobreviver. "Sem os lucros do petróleo, não conseguirá manter a sua rede. Já quase não governa fora de Sanaa, para lá da capital só manda o Exército", resume. Haykel prevê que, sem uma solução regional, o Iémen será "um Estado falhado como a Somália em cinco a dez anos".

Se o Iémen realmente explodir, "os efeitos serão devastadores, a crise de refugiados será terrível e o país fornecerá uma base fácil para a Al-Qaeda atacar no Golfo, no Corno de África, no mar Vermelho e mesmo no coração do reino [saudita]", diz O"Neill.

Se em vez de se encontrarem soluções continuarem a cometer-se erros, o Iémen "vai tornar-se num pesadelo regional duradouro", afirma O"Neill. "E uma vez estilhaçado será quase impossível voltar a juntá-lo."

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