O dia do desespero

Enquanto víamos "A Estrada", demos por nós a pensar que o filme de John Hillcoat apenas vai ter uma fracção infinitesimal dos espectadores que assistiram à super-produção de Roland Emmerich "2012". Vai de si: as pessoas hão-de sempre preferir um apocalipse que "encha o olho", cheio de milagres tecnológicos que salvam o futuro da humanidade à última hora, do que um que nos recorde como a nossa existência na Terra é frágil, à mercê dos elementos e, apesar de toda a esperança, sem salvação garantida.


O apocalipse tem sido assunto recorrente no cinema recente, mas o que Hillcoat faz a partir do romance de Cormac McCarthy ultrapassa a fancaria digital de Emmerich ou até a perturbante visão da metrópole abandonada do "Ensaio Sobre a Cegueira" de Fernando Meirelles. O mundo destruído, moribundo, angustiantemente plausível de "A Estrada" é um daqueles "milagres" que ainda só o cinema consegue criar - um equivalente invertido, cinzento e "flat", da demiurgia Cameroniana de "Avatar".

Não é, no entanto, nessa oposição fácil e gratuita do filme inane de grande espectáculo ao filme intimista de prestígio que reside o discreto triunfo de "A Estrada". Nem no facto do australiano Hillcoat (que apenas conhecemos entre nós do western dos Antípodas "Escolha Mortal", 2005) e do argumentista inglês Joe Penhall terem conseguido adaptar o supostamente inadaptável romance de McCarthy, transcendendo uma pós-produção complicada que viu a estreia do filme, rodado em 2008, atrasada de quase um ano.

Esses factores ajudam, claro, e não é pouco - a par de uma impecável produção artística e técnica (a fotografia cinzenta, dessaturada de Javier Aguirresarobe, o design de produção meticuloso de Chris Kennedy), a par das interpretações assombrosas de Viggo Mortensen e do estreante australiano Kodi Smit-McPhee no papel do pai e do filho que percorrem uma América pós-apocalíptica em busca de uma quimera que talvez já não exista. Mas o verdadeiro triunfo de "A Estrada" é no modo como Hillcoat articula todos esses elementos numa visão angustiante, aterradora, incomodativa, de um mundo morto e sem esperança, onde a humanidade está reduzida a uma selvajaria animal e impiedosa, a uma sobrevivência primal. Onde um homem e um menino procuram, quase como D. Quixote investindo contra os moinhos, manter viva a chama de uma civilização, por mais trémula que ela seja, no mais absoluto negrume.

Hillcoat faz deste mundo perdido em que nos mergulha impiedosamente o palco improvável de uma meditação sobre a herança, a transmissão, a esperança. Inverte de modo hábil as coordenadas habituais do cinema de género e da ficção apocalíptica para as reduzir a um mero esqueleto, amputado de heroísmos e fantasias, do qual apenas resta um instinto tribal de sobrevivência confrontado com um mundo onde todas as referências e padrões desapareceram para talvez nunca mais regressarem e onde o desespero e a morte são perseguidores incansáveis. Talvez haja mais de super-herói neste pai que teima em sobreviver no que em todas as fitas de super-heróis jamais feitas (e não é inteiramente casual que seja Viggo Mortensen, consagrado pelo heróico Aragorn do "Senhor dos Anéis", a entregar-se-lhe com esta paixão). O que reside no fim da estrada que Hillcoat desenha não sabemos, tal como não sabemos o que causou o apocalipse que destruiu a civilização; o que sabemos é que a viagem em que ele nos leva exige um estômago forte (espíritos frágeis, abstenham-se) e nos devolve à realidade singularmente impressionados.

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