João Goulão A história dele confunde-se com a história da droga
É o primeiro português a dirigir o Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência. Está há mais de 20 anos na linha da frente da luta pela prevenção, tratamento, redução de danos e reinserção. Por Ana Cristina Pereira
Sempre quis ser médico. Excitava-o a ideia de "salvar pessoas". Aos seis anos, um colega magoava-se num jogo de futebol e ele já corria para a caixa de primeiros socorros para lhe tratar da ferida. Havia vários médicos na família. João Goulão derretia-se com um tio, uma espécie de João Semana de Idanha-a-Nova. Chamavam-no a meio do dia ou a meio da noite, conforme a aflição, e lá cavalgava ele. "Fazia de tudo - desde partos a arrancar dentes."
Não morava nessa que fora a terra da mãe. Nasceu em Cernache do Bonjardim, por causa da barragem Bouça e Cabril. O pai trabalhava na Hidroeléctrica do Zêzere - competia-lhe tratar das expropriações dos terrenos a abafar pelas águas. Por força disso, a família saltava de terra em terra - viveu ali, em Castelo de Bode, em Tomar, em Portalegre.
Os testes vocacionais confirmaram o sentido do desejo infantil. Contava 17 anos quando avançou para a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Acolheu-o uma irmã mais velha, em Almada. Dentro de casa, convivia com "velhos revolucionários da margem Sul". Por ela passavam vultos como Victor Wengorovius, Isabel do Carmo, Óscar Mascarenhas. Quem diria que haveria de ser, um dia, o senhor Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência (OEDT)?
A revolução de 25 de Abril de 1974 apanhou-o no 3.º ano. Os portugueses queriam experimentar tudo, inclusive drogas, sobretudo cannabis (o consumo crescia no mundo ocidental desde a década de 60). Goulão também experimentou. Ele e uns amigos alugaram um chalé na Costa da Caparica para estudar, para namorar. Um dia, um trouxe cannabis: "Pusemo-nos a imaginar um mundo em que as pessoas, em vez de pernas, tinham rodas."
Fez o curso no Hospital de Santa Maria. Fascinava-o a cirurgia vascular - muito por influência de Dinis da Gama, que ainda hoje encara como "um mestre". A vida indicou-lhe outra direcção. Naquela época, havia serviço médico à periferia: um ano a exercer fora dos grandes centros. Escolheu Faro. Não ficou um ano, ficou 17. Impressionado com o contacto humano, rendeu-se à clínica geral.
Não saía a cavalo, como o tio, mas também coleccionava as suas peripécias. A heroína entrara no país no final dos anos 70 e fazia já os seus estragos. Toxicodependentes e suas famílias procuravam no centro de saúde o médico que ganhara fama de boa gente. Ele estendia-lhes o ouvido. Que mais lhes poderia fazer? "Eu não tinha ainda qualquer conhecimento técnico."
Em muitos países, a droga fora confiada às polícias. Em Portugal, a resposta oficial nascera, primeiro na Presidência do Conselho de Ministros, depois no Ministério da Justiça, em 1975-1977: Centros de Estudos da Profilaxia da Droga no Porto, em Coimbra e em Lisboa.
Para os toxicodependentes, "contra a corrente, existiam apenas dois serviços médicos", recorda o psiquiatra Luís Patrício. A psiquiatria do Hospital de Santa Maria e a psiquiatria do Hospital de São João (Porto). Só em 1987 apareceu o Projecto Vida e, dentro dele, o Ministério da Saúde criou um serviço de apoio: o Centro das Taipas (Lisboa).
A ministra Leonor Beleza nomeou o psiquiatra Nuno Miguel e o seu mais antigo colaborador, Luís Patrício, para chefiar o serviço. Abriram oito extensões na coroa de Lisboa, prepararam terreno para o Porto e para o Algarve: convidaram Goulão - "referenciado por muitos doentes pela empatia e desejo de ajudar estes doentes", lembra Patrício - para um estágio.
Coube-lhe abrir o Serviço de Prevenção e Apoio a Toxicodependentes (SPAT) de Faro. Eram tempos recheados de contradições. Alguns polícias rondavam, espreitavam, anotavam. Não importunavam os consumidores ali, abordavam-nos noutro sítio, noutro dia.
Nas ruas, a heroína conquistava terreno. Portugal será um dos países com menor número de toxicodependentes, mas a percentagem de problemáticos era elevada. No final dos anos 80, um por cento da população estava agarrada à heroína. Ser toxicodependente era, ao olhos do cidadão comum, ser delinquente.
A heroína, comenta agora, na sua voz baixa, pausada, era ultra-estigmatizante até para um médico: "Os serviços de saúde tradicionais - inclusive de saúde mental - não aceitavam aqueles doentes. Diziam: "São doentes porque querem. O Estado não tem de investir neles.""
Já não estamos no mesmo sítio. As estimativas que apontavam para 100 mil heroinómanos apontam agora para 50 mil. E estes 50 mil não estão desamparados, como estiveram aqueles 100 mil: "Estão enquadrados em programas de tratamento ou de redução de danos."
Aquilo era quase a pré-história. Os toxicodependentes eram tratados com "medicação de paragem". A desabituação fazia-se em casa. Só a título excepcional se encaminhava algum paciente para a Unidade de Desabituação das Taipas ou para alguma unidade privada convencionada.
A agenda de Goulão era apertadíssima. Militante do PCP desde 1975, fora eleito vereador na Câmara de Faro. Acumulava funções de director de SPAT - que o tempo converteu em Centros de Atendimento a Toxicodependentes (CAT) - com as de director regional do Serviço de Prevenção e Tratamento da Toxicodependência (SPTT). Em 1997, assumiu a direcção nacional - Elza Pais dirigia o Instituto da Droga e da Toxicodependência (IPDT), que substituíra o Projecto Vida.
Presidir àquela estrutura técnica "era um desafio, um reconhecimento, uma honra". Mas Goulão "não imaginava que pudesse influenciar de forma tão directa as políticas" desta área. Orgulha-se de ter participado, em 1998, "na intervenção heróica no Casal Ventoso", que incluiu um centro de acolhimento e um programa de substituição de opiáceos - João Soares era presidente da Câmara de Lisboa e José Sócrates era ministro adjunto de António Guterres.
A epidemia de heroína ainda não abrandara e já novos consumos se infiltravam - de cocaína, de sintéticas. Era a hora do alargamento do SPTT, da instalação de respostas. Goulão decidiu avançar com um programa de substituição por metadona, um opiáceo de síntese, da família da morfina e da heroína, até ali só usado no CAT da Boavista, no Porto, graças ao médico Eduíno Lopes.
Integrou o grupo - liderado por Alexandre Quintanilha - que propôs a descriminalização do consumo. Fazê-lo (dentro de uma proposta de desenvolvimento de uma política que englobava prevenção, tratamento, redução de danos, reinserção) parecia-lhe uma consequência natural: "O Estado que punha os consumidores na cadeia era o mesmo que lhes trocava as seringas."
Houve debate. O Parlamento dividiu-se entre direita e esquerda. "Paulo Portas [líder do CDS-PP] dizia que ia ser uma catástrofe, que Portugal se iria transformar num paraíso das drogas - nada disso aconteceu", regozija-se o médico, obstinado moderado, optimista contido. O debate não ficou fechado dentro das fronteiras nacionais. "Havia um grande interesse internacional, grande expectativa."
A proposta vingou na Assembleia da República. Entrou em vigor em Julho de 2001. Portugal inovou. Nem na Holanda se tinha descriminalizado o consumo de drogas - "O que eles têm é um preceito constitucional que permite ao procurador-geral do reino perseguir ou não determinados crimes, e, com isso, decidiram não perseguir o consumo de cannabis."
Há outras experiências mais ou menos permissivas. Em nenhum outro país, porém, há comissões de dissuasão de toxicodependentes. Muito por causa delas, os consumidores de cannabis representam dez por cento dos utentes dos Centros de Respostas Integradas (que substituíram os velhos CAT).
Os resultados parecem-lhe "inegáveis: Portugal é hoje um país modelo". O relatório do Instituto Cato publicado em Washington, em Abril de 2009, indica que o consumo de drogas baixou com a descriminalização. Depois de anos a puxar as orelhas a Portugal, a agência das Nações Unidas anuiu. O país recebeu, de resto, palmadinhas nas costas de diversos organismos internacionais, inclusive do OEDT, que em Dezembro elegeu Goulão para a presidência.
Para Luís Patrício, a ascensão significa "que as políticas que Portugal tem desenvolvido merecem atenção e que Goulão merece a honra de ser o rosto político reconhecido pelos seus pares coordenadores nacionais nos países da União Europeia. O facto de ser médico e de ter trabalhado no terreno, deu-lhe mais capacidade para melhor compreender e mais responsabilidade perante o que propõe ou tem feito. Importa que não se afaste do terreno, da realidade", avisa.
Luís Fernandes, investigador da Universidade do Porto que há muito estuda as drogas, também ficou agradado com a notícia: "Tem capacidade política, não no sentido pejorativo do jobs for the boys, mas no sentido de saber governar - saber ouvir, dialogar, fazer acordos - e tem saber técnico na área em que é líder."
Fez parte do concelho científico do OEDT entre 1997 e 2007, era membro do conselho de administração desde 2005. Agora, como presidente da agência sedeada em Lisboa, quer afinar modos de ler as mortes relacionadas com drogas e desenvolver a recolha de dados no lado da oferta.
Manuel Pinto Coelho será a única voz médica a manifestar-se em público contra a política nacional - contesta, amiúde, os programas de substituição de opiáceos. Quando o SPTT e o IPDT se fundiram, em 2002, Fernando Negrão foi nomeado presidente e convidou Goulão e Pinto Coelho para a direcção, mas Goulão recusou trabalhar com Pinto Coelho. Ficaram ambos fora. Goulão ficou no CAT de Parede e no Serviço de Saúde da Casa Pia até o PS regressar ao poder e o convidar para presidir ao IDT.
Não foi só somar. Há lutas que parece ter perdido. Em 2000 havia grande percentagem de toxicodependentes arredados dos serviços públicos. Hoje, parece-lhe que "já não faz sentido" abrir salas de chuto: "Estamos a chegar a essas franjas através das equipas de rua."
Nem uma seringa se trocou nas cadeias. Goulão continua, no entanto, a falar nisto como "um avanço civilizacional importante". O programa "não cautela o anonimato de quem precisa de trocar a seringa. As pessoas autodenunciam-se. Acham que vão perder regalias - saídas precárias, visitas".
Teve um braço-de-ferro com o presidente da Câmara do Porto, Rui Rio, por em Julho de 2006 ter denunciado o protocolo que sustentava o Porto Feliz, um programa municipal de inclusão dos arrumadores de automóveis. Rio já muitas vezes pediu a sua demissão. E Nuno Melo e Teresa Caeiro - pelo fim do Porto Feliz e por o director da Ares do Pinhal (uma das maiores beneficiárias de verbas) ser assessor do conselho de administração do IDT.
Em defesa da "liberdade e da democracia", subscreveu, em 2007, um texto crítico das políticas do Governo em diversas áreas. Sobre isso diz apenas: "Sempre me assumi mais como técnico do que como político. Nesta área, felizmente, tem sido sempre possível levantar os problemas que os técnicos acham mais adequados."
Goulão sabe que a sua história se confunde com a história das drogas. Sabe em que ponto está e sabe em que ponto o país está. "Hoje, em Portugal, coexistem dois grandes contextos de uso: a epidemia de heroína, que tivemos duas décadas, muito associada a ambientes de marginalidade e de exclusão; o consumo de várias substâncias, com o álcool muito associado ao lazer e ao prazer." A droga, contudo, já não é a preocupação central na vida dos portugueses: "Não havia nada que as famílias mais temessem há dez anos do que terem os filhos a consumir drogas. Hoje em dia, temem o desemprego." Este saber deixa-lhe pouco tempo para a vida pessoal. Mas não se queixa: casou três vezes e desses três casamentos resultaram quatro filhos (32, 30, 24 e cinco anos) e duas netas (dois e cinco anos) - a menina, a pequenita, diz que quer ser médica, como o pai.