"Vamos tornar-nos super-sapienscabeçudos"EntrevistaYves Coppens
Quem somos, donde viemos, para onde vamos? Estes foram alguns temas da conversa que tivemos há dias, em Lisboa, com o paleontólogo francês Yves Coppens, que falou com o P2 entre uma conferência sobre os mamutes e outra sobre o "acontecimento Homo". Por Ana Gerschenfeld
"Crânio pequeno", comenta em voz baixa Yves Coppens. Está a olhar para o retrato de um personagem do século XVIII, pendurado na sala da Embaixada de França onde nos encontramos. "Desculpe", acrescenta logo, mas explica que não consegue deixar de ver os ossos por baixo da pele e dos músculos quando olha para uma cara. Mesmo que seja um retrato. Coppens, paleontólogo há 50 anos, gosta de contar histórias da sua vida científica e conta-as muito bem. Na véspera, no Instituto Franco-Português, em Lisboa, com o seu ar de Pai Natal e a sua voz suave, deleitou a assistência durante duas horas com a descrição dos seus trabalhos de juventude sobre os mamutes e os elefantes. Mas a sua grande descoberta foi Lucy, o celebérrimo esqueleto de Australopithecus afarensis, encontrado em 1974, quando Coppens dirigia, com vários colegas, uma expedição científica internacional ao deserto de Afar, na Etiópia. E hoje ainda, aos 75 anos, continua a viajar para lugares recônditos e inóspitos do planeta à procura das origens dos homens.
Qual é, em grandes linhas, a história mais provável da origem e da disseminação geográfica de Homo sapiens?
O homem é um primata e a sua história está ligada à dos primatas. Os primatas aparecem há uns 70 milhões de anos e surgem porque nessa altura - há sempre uma razão ambiental - aparecem as plantas com flores. As plantas com flores fazem frutos. De facto, os primatas são animais insectívoros que se adaptaram ao consumo de frutos e à vida nas árvores. Aliás, ainda temos em nós os vestígios disso tudo: continuamos a comer fruta, temos os olhos à frente do rosto para apreciar as distâncias (o que é bom para saltar de ramo em ramo), vemos às cores, o que é útil para saber se a fruta está madura ou não.
A vida nas árvores dos nossos antepassados também ficou registada na nossa clavícula - que não é feita para abraçar melhor os amigos, mas para abraçar melhor as árvores e conseguir trepar. Temos cinco dedos para agarrar coisas e se perdemos as garras e adquirimos unhas, também foi para facilitar a subida. Todos estes sinais anatómicos remontam à época da passagem dos insectívoros para os primatas.
Damos agora um grande salto e chegamos a dez milhões de anos atrás, quando a família dos grandes símios africanos, nomeadamente os chimpanzés, se separa da nossa família. E nessa altura, sem dúvida também por razões ambientais, uns continuam a viver num meio coberto, florestal, denso, enquanto os outros - nós - passam para um meio menos coberto, uma floresta menos densa ou uma savana arborizada. É aí que começa a aparecer uma série de pré-humanos, que são preciosos porque nos fornecem informações sobre o nosso passado próximo. São os fósseis de Tumai, com sete milhões de anos [descobertos no Chade em 2001], de Orrorin, com seis milhões de anos [2000, Quénia], os ardipitecos, com 5,8 a 4,4 milhões de anos, os australopitecos como a Lucy [3,2 milhões de anos], etc. Estes hominídeos ainda não são humanos.
Que características têm?
São todos tropicais, surgem todos em África, têm um encéfalo que tende a desenvolver-se aos poucos, uma face que vai aos poucos perdendo o focinho para se tornar mais plana, andam todos de pé. No início, são bípedes e arborícolas ao mesmo tempo - andam a pé mas continuam a trepar às árvores. Mas há uns quatro milhões de anos, acabam por se virar exclusivamente para a marcha, abandonando os ramos. Estas espécies são o viveiro, o bouquet de formas que precede a Humanidade. Entre eles está Lucy, a minha preferida.
De quem falaremos mais adiante...
Chegamos assim a uns três milhões de anos atrás - e é aí que um desses pré-humanos se torna homem. Mais uma vez, por causa de uma mudança climática - e neste caso, para se adaptar a um aquecimento. Isto acontece há 2,7 ou 2,8 milhões de anos. Eu estudei esta questão e mostrei a correlação entre as mudanças climáticas e a origem do homem. O homem aparece porque um pré-humano teve a obrigação de se adaptar a uma mudança ambiental; a transformação de pré-humano em humano é uma adaptação ambiental.
O que distingue o pré-humano do humano?
Duas coisas essenciais. Como vimos, o pré-humano já estava de pé, era exclusivamente bípede, mas desta vez, são os dentes que mudam: tornam-se dentes de omnívoro. Como há menos vegetais [devido ao aquecimento], esse pré-humano começa também a comer carne. O seu cérebro também se desenvolve nitidamente, tanto do ponto de vista volumétrico como da sua complexidade. Como os cérebros dos nossos antepassados já desapareceram, fazem-se moldes da cavidade que ocupavam no crânio e os moldes mostram uma crescente complexidade dos lobos cerebrais e da irrigação sanguínea, que deixaram as suas marcas na face interna da caixa craniana.
Por sua vez, o desenvolvimento do cérebro, que é a forma de adaptação escolhida por aquela personagem - o Homo habilis - traz com ele a consciência, o que é realmente extraordinário. Significa que em vez de saber - como Lucy provavelmente sabia -, graças a um bocadinho de córtex a mais, a um punhado de células cerebrais a mais, o Homo habilis sabe que sabe, como uma espécie de retorno em espelho. E, sabendo que sabe, pode antecipar o futuro, pode imaginar coisas. É a partir dessa altura que, em vez de utilizar simplesmente os objectos à sua volta, começa a transformá-los. E isso muda tudo. "More is different", como dizem os ingleses. Apenas um bocadinho de cérebro a mais e sobe-se logo para o nível acima. Acontece como nos impostos: basta ganhar mais uns cêntimos para passar para o escalão superior e pagar três vezes mais (acabei de pensar nisso agora mesmo). O mesmo acontece com a vida: com um pequeno acrescento, o cérebro torna-se capaz de reflexão.
Portanto, o homem aparece nos trópicos, em África, onde viveram todos os seus predecessores, incluindo o pré-humano que se tornou homem, e vai espalhar-se geograficamente, primeiro por esse continente fora e depois pela Eurásia.
É, portanto, o Homo habilis que começa a viajar.
Sim, penso que sim. Há quem tenha dito que foi o Homo erectus [mais tardio], mas não há qualquer razão para que o Homo habilis tenha ficado lá à espera, a pensar "quando for erectus, vou começar a mexer-me" [ri-se].
E essa migração acontece porquê?
Acho que tem a ver com a procura de alimentos, numa altura em que a demografia começa lentamente a crescer. Quando um grupo destes humanos caçadores-recolectores atinge um certo patamar numérico, alguns deles têm de formar um novo grupo noutro sítio. E quando esse grupo atinge, por sua vez, o patamar, um novo grupo desloca-se para um pouco mais longe. Fala-se em 50 quilómetros por geração, o que significa que foram precisos 15 mil anos para passar dos trópicos para a Europa. Como as técnicas de datação não são tão finas, não os vemos a deslocar-se; vemo-los ali e depois vemo-los aqui - e entretanto, passaram-se 15 mil anos.
Mas então, onde aparece pela primeira vez o Homo sapiens?
É preciso não esquecer que os territórios na altura eram imensos: abrangiam a totalidade da África e Eurásia. Os diversos grupos estavam isolados uns dos outros e isso conduziu a uma diversificação das espécies humanas. O Homo habilis inicial tornou-se Homo erectus em cada sítio onde estava - e, por sua vez, o Homo erectus tornou-se Neandertal na Europa (que funcionava como uma ilha na época das glaciações), sapiens em África e na Ásia continental, Homem de Java na ilha de Java e Homem das Flores na ilha das Flores. Há sem dúvida outros, cujos fósseis vamos encontrar um dia.
Esta diversificação humana aconteceu há quanto tempo?
Há 50 a 100 mil anos. Mas a difusão do homem começou dois milhões de anos mais cedo e a sua diversificação há mais de um milhão de anos. Há quem diga que o Neandertal tem 200, 300 ou mesmo 400 mil anos. Os mais arrojados dizem 500 mil - e eu digo que tem muito mais. E desses quatro tipos de humanos (Neandertal, sapiens, Java, Flores) só o Homo sapiens é que se vai deslocar (há 40 a 60 mil anos).
O Homo sapiens espalha-se a partir da África?
Da África e da Ásia (China, Mongólia, Sudeste asiático). Passa para a América, onde não há ninguém, para a Austrália, onde também não há ninguém. Mas também para Java, Flores e para a Europa, onde já há outros homens. Em todas as regiões onde já existem populações, o Homo sapiens vai coabitar com elas e acabar por as eliminar, por assim dizer. A prazo, o Neandertal, o Homem de Java e o de Flores desaparecem e só resta o Homo sapiens. É por isso que somos todos sapiens.
Foi um dos descobridores de Lucy, com o norte-americano Donald Johanson e outros. Quando encontraram a Lucy, perceberam logo a sua importância?De maneira nenhuma. Eu já trabalhava, na altura, no Sul da Etiópia, onde já tinha encontrado fósseis de hominídeos. E sabia que os fósseis do deserto de Afar tinham a idade certa para conter também fósseis de hominídeos. Aliás, num colóquio antes da nossa expedição, tinha mesmo anunciado que iríamos lá encontrar hominídeos. Não falhou. Mas era previsível.
Quando começámos o trabalho em Afar, em 1972, encontrámos muitos vertebrados, mas nenhum hominídeo. Mas logo em 1973 começámos a encontrar alguns fósseis de hominídeos e nos anos seguintes ainda mais. Começámos por encontrar um bocado de osso temporal e um joelho, que baptizei "o joelho de Claire" [do título de um filme de Eric Rohmer]. Portanto, quando dois jovens da nossa equipa encontraram os primeiros fragmentos de Lucy, pareceu-nos interessante, mas nada de extravagante.
Quando voltámos ao local, em 1974, e fomos desenterrando mais fragmentos, vimos que eles tinham mais ou menos o mesmo calibre e a mesma cor, a mesma densidade e que as suas dimensões eram compatíveis com o facto de terem pertencido a um único e mesmo esqueleto. No início, Lucy era apenas o AL-288 - um conjunto de fósseis encontrados numa dada localidade de Afar. Aos poucos, fomos percebendo que se tratava provavelmente de um único indivíduo. E isso permitiu-nos obter uma silhueta. De repente, ficámos com uma ideia da sua altura - 1,10 a 1,20 metros -, do seu peso (20 a 25 quilos) e também das articulações e da proporção das suas extremidades superiores em relação às inferiores. Foi assim que vimos que as curvas da coluna vertebral, a forma muito achatada da bacia mostravam que esse ser andava de pé. Mas, por outro lado, as articulações do úmero e do joelho mostravam que era arborícola. Era a primeira vez que se descobria no mesmo esqueleto sinais de bipedismo e de vida nas árvores. Era uma demonstração inesperada e fantástica do estado intermédio entre o carácter arborícola de antes e o bipedismo de depois.
Por que lhe chamaram Lucy?
Lucy era o fóssil 288. Na grande tenda-laboratório onde marcávamos os fósseis, que não era uma tarefa muito divertida, costumávamos conversar ou ouvir rádio ou cassetes de Bach, Mozart, dos Beatles. Acontece que no dia em que marcámos o osso da bacia e percebemos que era do sexo feminino, estávamos a ouvir Lucy in the sky with diamonds, dos Beatles. A partir daí, 288 passou a chamar-se Lucy, que era, admitamos, uma designação mais elegante.Foi recentemente publicado o estudo de uma outra hominídea fóssil, Ardi (ardipiteco), cujos ossos sugerem que nós, humanos, somos muito mais parecidos com o antepassado comum ao homem moderno e aos chimpanzés do que os próprios chimpanzés. Ou seja, que foram os chimpanzés que divergiram muito a partir desse antepassado comum e não nós, como se pensava. O que acha desta teoria?
Penso, o que não é novo, que os chimpanzés também se especializaram. Ou seja, que essa maneira que têm hoje de se erguer de vez em quando ou de andar nas quatro patas apoiando-se nos nós dos dedos das mãos é muito específico dos chimpanzés. Isso já se sabia, mas é verdade que se pensava que o antepassado comum teria mais a silhueta de um chimpanzé. Ardipiteco mostrou que não era bem assim. Mas a mim agrada-me essa especialização em duas direcções, ao mesmo tempo na direcção dos pré-chimpanzés e dos chimpanzés, por um lado, e na direcção dos pré-humanos e dos humanos por outro.
O facto de o registo fóssil da Humanidade ser tão fragmentado, tão incompleto, deve ser frustrante. Pensa que a genética vai conseguir fornecer respostas que faltam para colmatar as brechas?
Colmatar as brechas não me parece, porque será sempre precisa uma demonstração paleontológica para ter a certeza do que a genética nos diz. Mas todas essas ciências, genéticas ou moleculares, são preciosas porque fornecem elementos novos. Portanto, os paleontólogos permanecem atentos aos dados vindos dessas ciências.
Tem dito que não gosta muito da teoria darwiniana porque, nela, o acaso parece funcionar bem de mais. Pode explicar?
A ideia de Darwin da selecção natural é uma realidade, mas a evolução é um fenómeno complexo que não se explica só pela selecção natural. Eu acho que Darwin era um homem de grande qualidade, de grande lucidez e clareza de pensamento, que fez um grande trabalho - um homem de síntese por excelência. O que eu digo é que, no terreno, sempre vi os animais transformarem-se no bom sentido. Portanto, eu era sobretudo crítico da interpretação genética [que diz que a selecção natural opera sobre mutações aleatórias], porque me parecia que as mutações aleatórias eram demasiado boas - que o acaso fazia demasiado bem as coisas, por assim dizer.
Christian de Duve, o Prémio Nobel de Medicina, deu-me uma explicação interessante. Segundo ele, é preciso ter em conta o stress induzido pelas mudanças climáticas. Nessas condições, as mutações continuam a ser aleatórias, mas aparecem às centenas ao mesmo tempo. E quando isto acontece, o acaso fornece uma escolha muito maior [à selecção natural]. Acho que isto permite em parte explicar por que é que, no terreno, as coisas não parecem ser o fruto do acaso. Quando a escolha é possível entre 500 opções, é mais fácil acertar no alvo do que quando só existem duas opções.
Há quem diga que os humanos já não evoluem - e outros que afirmam que os nossos genes nunca tinham evoluído tão depressa como nos últimos 1000 a 2000 anos, nomeadamente por causa da mudança de dieta, da explosão demográfica, etc. Acha que ainda estamos a evoluir?
Continuamos com certeza a evoluir. Mas com um pouco menos de ruído. E é verdade que a cultura, que tem funcionado como um ecrã entre a solicitação ambiental e a resposta da nossa anatomia, tem limitado os estragos, por assim dizer.
E como vamos evoluir?
Vamos transformar-nos noutra coisa. Não em mil ou dois 2000 anos, mas mais para a frente: vejo um desenvolvimento do encéfalo, do cérebro, que se vai tornar mais complexo, mais denso, mais rico em neurónios, com mais sinapses, mais volumoso também - o que quer dizer partos mais problemáticos. Mas isso pode resolver-se naturalmente com uma redução do tempo de gestação, dando ao crânio da criança a possibilidade de crescer tranquilamente fora da barriga da sua mãe.
Vamos transformar-nos em super-sapiens?
Sim, vamos tornar-nos super-sapiens cabeçudos. Em vez de termos 1500 centímetros cúbicos de volume craniano, o que não é nada, vamos ter 5000 cc.
Mas não vamos conseguir mexer-nos!
Sim, vamos. Lucy tinha apenas 400 cc! Se ela estivesse cá e visse o tamanho das nossas cabeças, ou acharia graça ou ficaria muito assustada - ou morria a rir ou fugia a sete pés.
Outros caracteres físicos terão de evoluir também para suportar o cérebro.
Forçosamente. Os caracteres evoluem em função uns dos outros. Mas só até certo ponto, uma vez que precisamos de conseguir estar de pé ou sentados. Eu teria gostado que a roda aparecesse na anatomia humana, mas isso nunca aconteceu...
O que faz actualmente?
De há dez anos para cá tenho-me dedicado a escavar o permafrost da Sibéria e da Mongólia, à procura de mamutes. O último que encontrámos, e que ainda não vi, tem 47 mil anos. Outros têm entre 15 mil e 25 mil anos.
Então já não se interessa pelo homem?
Pelo contrário. Imagine o que seria encontrar, ao pé de um mamute, um caçador - ou uma caçadora - perfeitamente conservado, durante milhares e milhares de anos, a 15 graus negativos!