Falhanço da cimeira do clima põe relevância das Nações Unidas em xeque
Há quem questione se o falhanço da cimeira não deixa a ONU mais irrelevante. Talvez, mas num aspecto os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO concordam: não é possível prosseguir as conversações sobre as alterações climáticas sem as Nações Unidas.
A conferência de Copenhaga é a última de uma série de grandes encontros da ONU que seguem o mesmo guião, comenta a correspondente nas Nações Unidas da revista norte-americana "The Nation", Barbara Crossette. "Dias de regateio, recriminações, saídas e sessões pela noite fora antes que surja um acordo final que não agrada a quase ninguém", descreve.
Assim, "num contexto da ONU, o drama de Copenhaga não foi novo": podemos pensar por exemplo na conferência sobre o racismo, polémica pelo discurso do Presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, que afirmou que Israel era um Estado racista, o que provocou a saída da sala de muitos delegados em protesto.
No caso de Copenhaga os 13 dias de negociações foram marcados pelainterrupção dos países em desenvolvimento do chamado G77 e por uma última noite de maratona negocial. Tudo isto permitiu apenas que se chegasse a um acordo voluntário subscrito por alguns países - os 192 membros da ONU decidiram apenas "tomar nota" do Acordo de Copenhaga, que estabelece uma base para a luta contra o aquecimento global e que foi negociado pelos EUA, China, Índia, Brasil e África do Sul.
Não houve um acordo vinculativo que substituísse o Protocolo de Quioto, que entrou em vigor em 2005, sete anos depois de ter sido negociado.
Nova ordemA cimeira de Copenhaga terminou no final da semana passada, mas as repercussões continuam a sentir-se. Copenhaga teve duas características que fazem com que este guião seja amplificado: lidou com um problema que exige uma solução dentro de um período de tempo o mais curto possível, e contou com representações de alto nível, com a presença de vários chefes de Estado e de governo.
Assim, começam a ser colocadas as questões sobre a relevância do seu promotor, a ONU. Viriato Soromenho Marques, professor universitário e responsável pelo programa de Ambiente da Fundação Calouste Gulbenkian, recusa que a ONU esteja a perder importância.
Apesar disso, sublinha que há uma nova ordem internacional de geometria variável, em que o poder dos países vai mudando conforme o que está em causa - os países mais ricos terão mais a dizer na luta contra a crise, os mais poluidores na luta contra as alterações climáticas (estas duas listas tendem a coincidir).
Mas os novos directórios de países poderosos complementam, e não desafiam, a ONU, disse numa conversa telefónica com o PÚBLICO. "Não há ninguém a agir neste momento contra a ONU do modo que agiu a Administração Bush em 2003", compara, lembrando a época em que muito se falou sobre a irrelevância da ONU, quando os Estados Unidos e uma coligação de alguns apoiantes decidiram levar avante um ataque ao Iraque mesmo sem uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas a autorizar a acção militar.
Metas e verificaçãoPor outro lado, reconhecendo que a conferência de Copenhaga falhou, Viriato Soromenho Marques sublinha a importância de que um acordo se consiga no quadro das Nações Unidas, com metas e mecanismos de verificação, e não de um modo em que haja compromissos voluntários dos países, sem metas de verificação.
Soromenho Marques lembra ainda que foi no âmbito da ONU que se iniciou o longo processo de luta contra as alterações climáticas, em 1988, com a criação de um grupo científico, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas.
As Nações Unidas não se têm colocado numa posição muito relevante também para facilitar o processo, considera Soromenho Marques. Mas agora - após Copenhaga - "o secretário-geral da ONU [Ban Ki-moon] deveria tentar sublinhar o que pensa do roteiro de viagem para o próximo ano e enviá-lo aos governos. A tónica num acordo vinculativo em 2010 é crucial".
"O próximo protocolo - Quioto II ou Cidade do México - tem de ser negociado no âmbito da estrutura da ONU", diz ainda o professor, adiantando que o papel das Nações Unidas será essencial: "A própria natureza da protecção do clima exige que toda a gente participe. Não há outro fórum que possa desempenhar o papel da ONU."
Marcel Vietör, investigador do German Council on Foreign Relations (DGAP, na sigla em alemão), afirma que há dois conjuntos de forças opostas que marcam a cimeira de Copenhaga e o papel da ONU.
A primeira é o interesse individual versus interesse colectivo, a segunda a eficácia versus representação. No primeiro caso, sublinha que em Copenhaga todos os principais actores estavam mais preocupados em minimizar os seus custos individuais, o que foi contraproducente para chegar ao objectivo - bom para todos - de reduzir o mais possível as emissões de CO2, que exigia que todos contribuíssem o máximo possível.
Eficácia vs representaçãoPor outro lado, há quem argumente que em muitas áreas a ONU não consegue ser eficaz e representativa ao mesmo tempo. "A ONU é provavelmente demasiado ineficaz para ser o único organismo a lidar com as alterações climáticas", adiantou Vietör, num e-mail ao PÚBLICO, defendendo mais acções de actores como a União Europeia, mesmo que unilateralmente. "No entanto", continua, "a comunidade internacional não pode prosseguir sem a ONU."
Isto porque fóruns como o G20 representam "os países que são mais responsáveis pelas alterações climáticas (no presente e no futuro, países industrializados e economias emergentes), mas ao mesmo tempo estes não sentem a pressão" para reduzir as emissões. "Os países que sofrem mais, países em desenvolvimento, pequenos Estados que são ilhas, estão representados apenas no quadro da ONU."