Uma estátua de culpa

A história da presença portuguesa em África está toda por contar. A história política, reduzida a sínteses enviesadas. A das pessoas comuns, por fazer. Nada sabemos das famílias fundadoras, dos "pieds-noirs", dos imigrantes, dos colonos, dos militares que optaram por não regressar a Portugal, dos altos-funcionários em comissão de serviço. O mais aproximado que temos dessa realidade é um importante estudo de Cláudia Castelo, "Passagens para África" (2007), sobre o povoamento de Angola e Moçambique entre 1920 e 1974, centrado no quadro geral da emigração para as Colónias, a economia local, as barreiras raciais, o indigenato, as diferenças sociológicas entre Angola e Moçambique, as sensibilidades políticas, a influência da maçonaria em Moçambique, a força da comunidade sul-africana em Lourenço Marques (em 1928 representava 27 por cento da população da cidade), o estatuto das companhias majestáticas em Moçambique, a acção das juntas provinciais de povoamento, os colonatos-modelo, a angariação de mão-de-obra, o trabalho forçado, as culturas obrigatórias, a ocupação de terras, a dicotomia entre africanos e indianos, as dissensões do Pacto Colonial, os equívocos da acção psicossocial, os sobressaltos independentistas, os conflitos dos colonos com as forças armadas (sobretudo em Moçambique), etc. Até ver, continua sendo o contributo decisivo para a reconstrução das memórias coloniais.

Faltava, porém, um relato na primeira pessoa. Foi isso que fez Isabela Figueiredo (n. 1963), sem poupar nos detalhes. O seu "Caderno de Memórias Coloniais" é uma obra imprescindível para compreender o sentido (ou sem sentido) da nossa presença em África. Isabela ainda não tinha 13 anos quando deixou Moçambique. Narrativa mnemónica, portanto. Isenta de nostalgia, vontade de dourar a pílula ou propósito de reescrever a História. Factos, em toda a sua crueza: "Os brancos iam às pretas. [...] As pretas tinham a cona larga e essa era a explicação para parirem como pariam, de borco, todas viradas para o chão, onde quer que fosse, como os animais. A cona era larga. A das brancas não, era estreita, porque as brancas não eram umas cadelas fáceis, porque à cona sagrada das brancas só lá tinha chegado o do marido, e pouco, e com dificuldade, que elas eram muito estreitas, portanto muito sérias, e convinha que umas soubessem isto das outras."

Isabela vivia na Matola. A Matola, oficialmente designada Vila Salazar, era um arrabalde de Lourenço Marques (em 1980 foi integrada na cidade de Maputo). Quando Isabela ali viveu, era um sítio de passagem a caminho da fronteira da África do Sul. Foi lá que os massacres de 7 de Setembro de 1974 se fizeram sentir com maior intensidade: "a negralhada perdeu o freio [...] chacinou, cega, tudo o que era branco: os machambeiros e família, os gatos, cães, galinhas, periquitos, vacas brancas, e deixaram-nos agonizando sobre a terra, empapando sangue; salvavam-se as galinhas cafreais de pescoço pelado. E os gatos pretos." Por exemplo, um dos vizinhos, o marido da Conceição, foi todo desmembrado à catanada antes de ser espalhado no milheiral. Isabela tinha 11 anos, mas não esqueceu.

A Matola não tinha o "glamour" da Maxaquene, da Ponta Vermelha, da Polana e de Sommerschield. A Matola era um reduto "lumpen" na zona dos sapais. Foi ali que Isabela cresceu, intuindo o desconcerto do mundo. Depois da matança de Setembro, os pais mudaram-se para a cidade, indo viver para "a praceta projectada à Avenida Latino Coelho", no Alto Maé, bairro do lado oeste onde a miscigenação nunca foi figura de retórica. Talvez por isso Isabela fale de Lourenço Marques como de "um largo campo de concentração com odor a caril." É uma imagem forte, como quase todas as do livro, porventura injusta. Contra o proselitismo da África "dourada", Isabela opõe o traço grosso do seu quotidiano: "Ao sábado trabalhava-se, e o meu pai pagava a semana ao final da tarde. Ao sábado havia milando. [...] A única hipótese de não haver milando era meterem o dinheiro recebido no bolso das calças rasgadas e saírem, cabisbaixos. Se reclamavam, havia milando, e não eram poucas as vezes em que saíam da sala com um murro nos queixos, um encontrão dos bons. Havia milando bravo." Isabela não disfarça nem tenta desculpar. Era assim, conta como era. Cumpre o desejo do pai: "É por ti que vão saber. Tens de contar. Conta a todos." Isabela conta. O que o pai queria e também o que não queria: os "discursos de ódio", ouvidos a dois centímetros do rosto, sentindo o cuspo, "uma raiva tão grande dentro de si".

Isabela não perde o pé, conta, com sobriedade, sem adjectivação escusada, esse mundo de pesadelo. O avesso da história da carochinha.

Em Portugal, na escola das Caldas, fazem-lhe ver que ali não há "pretinhos para [lhe] lavarem os pés e o rabinho". Nunca o esquecerá. Nessa altura, em Moçambique, o pai estava preso. Passou vários anos na prisão antes do regresso a Portugal. Isabela fez-se mulher. Não esqueceu nada: "Um desterrado como eu é também uma estátua de culpa." A escrita redime-a. Há muito pouca gente a escrever como ela.

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