A luz de Caravaggio e a noite de Bacon

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Francis Bacon e Velázquez - a ligação entre o pintor britânico nascido em 1909 e o espanhol nascido em 1599 podia ser óbvia. Afinal, Bacon inspirou-se no retrato do Papa Inocêncio X, de Velázquez, para vários dos seus quadros. Mas os comissários não estavam à procura de uma ligação óbvia. Pelo contrário. Por isso, o que puseram ao lado de Bacon foi Caravaggio, pintor italiano nascido em 1571. E entre os dois não há, à primeira vista, nada em comum.

"Caravaggio Bacon" (Galeria Borghese, em Roma, até 24 de Janeiro) é um projecto arriscado: juntar dois génios da pintura, com duas épocas e duas histórias pessoais completamente diferentes, olhar para os quadros e esperar que eles comuniquem entre si, que os rostos e corpos arrancados da escuridão por Caravaggio permitam uma nova leitura das figuras contorcidas e distorcidas de Bacon, e vice-versa.
"Queremos oferecer ao espectador a oportunidade de uma experiência estética, mais que didáctica, porque esta não é uma mostra de história, nem da história das formas, nem uma história dos indivíduos no seu tempo [...]", escreve no catálogo a comissária Anna Coliva. Esta é uma exposição que dá toda a liberdade a quem a vê. "Há ligações [entre os quadros] que surgem por elas próprias à sensibilidade do espectador e não são impostas por teorias do curador".

São ligações, explica Luigi Ficacci, especialista em Francis Bacon, numa entrevista de divulgação da exposição, que "têm a ver com a razão mais interna e individual da arte". O que Ficacci vê tanto em Caravaggio como Bacon é uma abordagem "muito profunda e traumática em relação à verdade da existência", o que os leva ambos, nas respectivas pinturas, a "colocar questões radicais sobre o mistério da existência".

Poderia haver a tentação de pensar que estamos perante dois "artistas malditos" (sendo que maldito é um conceito diferente consoante a época). Mas não é exactamente assim, argumenta Ficacci. A ideia de Caravaggio como "artista maldito" é "lendária e inexacta". O pintor é geralmente apresentado como um homem emotivo, violento, excessivo - uma imagem alimentada pelas lutas em que se envolvia frequentemente e, sobretudo, pelo crime que cometeu, o assassínio de um jovem em Roma, que o levou a fugir da cidade e a viver escondido, até acabar por morrer, antes dos 40 anos.
"Bacon é realmente um artista maldito, mas a ideia de Caravaggio como pintor maldito é acima de tudo uma ideia feita que lhe foi atribuída já na idade moderna", reforça noutra entrevista Maurizio Calvesi, professor na universidade romana La Sapienza e especialista em Caravaggio. "A ideia do artista maldito nasce no início do século [XX] com Rimbaud, no período romântico, altura em que o artista deve ser maldito para ser verdadeiramente importante". Antes disso, no século XVI, uma fama como a de Caravaggio era, acima de tudo, "motivo de condenação".

Colérico e assassino

É verdade desde sempre Michelangelo Merisi da Caravaggio foi descrito como um colérico e um assassino. Mas, sublinha Calvesi, é preciso ter em conta que o seu biógrafo da época era Baglione, que foi também seu inimigo pessoal. Quando à suposta homossexualidade, o perito não vê qualquer prova disso na biografia do pintor e afirma que o facto de pintar jovens efebos vem de uma tradição da pintura e não é revelador de nenhuma opção sexual. "No entanto", admite, "ninguém mais conseguirá tirar esta ideia da cabeça dos realizadores e escritores, porque é muito mais fascinante falar dele nesses termos".

Já Bacon nunca escondeu a sua homossexualidade que foi, muito frequentemente, tema dos seus quadros. Foi, aliás, essa a razão que levou a que o seu pai o expulsasse de casa quando era ainda adolescente, depois de o ter encontrado a experimentar a roupa interior da mãe. Esta muito difícil relação com o pai pode, segundo Ficacci, explicar que a imagem do tirano surja tão obsessivamente na pintura de Bacon, seja através de Papas, ou de políticos. "Numa análise simplificada, em muitos casos é a imagem do pai que se propõe através destas figuras".

Mas de que forma, afinal, as pinturas de Bacon e Caravaggio comunicam entre si quando postas lado a lado? Há em ambos, na perspectiva de Ficacci, a tal relação traumática com "o mistério da existência". Caravaggio vivia numa "ânsia de salvação que muitas vezes raia o desespero". É por isso que pinta "a salvação do homem na concreta e nua condição natural da sua existência, privado de estruturas sistemáticas do intelecto, de garantias dogmáticas, de protecção do poder". 

É uma posição religiosa, a partir do interior da fé católica, a de Caravaggio. A diferença em relação a toda a pintura que o antecedeu, diz Calvesi, é que ele não segue "a tendência para a idealização de tipo neoplatónico, para ver as coisas através do mito, através dos clássicos e da reminiscência do mundo antigo". Na pintura de Caravaggio, "tudo é atravessado por uma sensação iminente da realidade: a realidade enquanto tal, aquela que está perante os nossos olhos, que está a acontecer no momento em que a vemos"

Por seu lado, a pintura de Bacon, sempre segundo Ficacci, "penetra aquela mistura de violência, de angústia, de ânsia do sagrado, de desejo, desespero, de busca do amor, de abjecção animal que é a matéria própria do homem moderno e revela como esta é necessariamente a matéria constitutiva da beleza". E mesmo quando o tema é, por exemplo, a Crucificação, esta é, segundo o crítico e historiador de arte John Russell, apenas "um nome genérico para uma situação em que a dor física é infligida a uma ou mais pessoas e uma ou mais pessoas juntam-se para ver".

Autobiográficos?

Há muito de autobiográfico na obra de Bacon. O seu amante Charles Dyer foi pintado inúmeras vezes, e, numa determinada fase, o seu suicídio - matou-se em 1971, na véspera da inauguração de uma grande exposição de Bacon no Grand Palais de Paris, no quarto que ambos partilhavam - tornou-se o tema central dos quadros de Bacon. Na Galeria Borghese está o "Triptych - August 1972", em que Dyer aparece com uma mancha rosada no chão, "como se a vida estivesse a escapar-se dele", na descrição do próprio Bacon. Noutros quadros Bacon pintou os amigos - Isabel Rawsthorne, Lucien Freud (ambos podem ser vistos na Borghese) - e depois, à medida que estes morriam, pintava-se cada vez mais a si próprio ("Three Studies for a Self-Portrait", de 1980, igualmente na exposição).

Caravaggio não era autobiográfico. Ou pelo menos não o foi em praticamente toda a sua obra. As excepções serão "Autoritratto come Bacco" (1593), uma das suas primeiras obras conhecidas, e "David con la testa de Golia" (1610). Condenado à morte pelo assassínio que cometera, representa-se a si próprio como a cabeça já decapitada de Golias, boca aberta, olhos a meia haste, "identificando-se com o mal, numa espécie de confissão e arrependimento", na leitura de Calvesi. À semelhança de Bacon, Caravaggio pinta-se como um rosto distorcido que emerge da escuridão - mas que parece, a qualquer momento, poder ser de novo tragado por ela.

Claudio Strinati, especialista em História de Arte, sobretudo século XVI, e autor de outro dos textos do catálogo, vê outros paralelos entre os dois pintores. "Juntos estes artistas mergulharam pelo menos parte das suas obras numa escuridão impenetrável e avassaladora, ambos tratam a pintura como um campo de batalha onde se travam paixões violentas e funestas, e ambos tiveram vidas difíceis marcadas por comportamentos excessivos".

Mas também ele reconhece diferenças essenciais: "Michelangelo Merisi era homem de grandes e profundas convicções, seja no campo estético seja no campo social e religioso. Bacon não era um crente e não o é a sua obra". E se Bacon se "move na dimensão do negativo", já Caravaggio "não representa nada que não seja evidente e não tem outro objectivo que o da beleza mesmo no momento do desespero total e da separação."

Num há esperança, no outro não. "Com Caravaggio, ao fim da noite surge a radiosa estrela da beleza, enquanto que para Bacon, a noite, na qual os fantasmas que se agitam e continuam incansavelmente a sussurrar e a avisar-nos, é uma noite que não acaba nunca".

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