Chil Rajchman: A herança de Treblinka

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Chil Rajchman

"Os vagões tristes transportaram-me para este lugar. Vêm de toda a parte: de leste e de oeste, do norte e do sul. De dia como de noite, em todas as estações: Primavera, Verão, Outono, Inverno. Os comboios chegam sem percalços, incessantemente, e Treblinka prospera a cada dia que passa. Quantos mais chegam, mais Treblinka consegue absorver."
Assim começa o relato deixado pelo judeu polaco Chil Rajchman, nascido em 1914, um de entre as poucas dezenas que conseguiram sobreviver ao inferno do campo de extermínio nazi de Treblinka, a menos de cem quilómetros a norte de Varsóvia. "Sou o Último Judeu", agora publicado pela Teorema, foi o título dado aos apontamentos de Rajchman, que narram os dez meses passados no campo e foram publicados apenas depois da sua morte, em Montevideu, no Uruguai, país para onde emigrou e onde fez o resto da sua vida até 2004.

Rajchman chegou a Treblinka em Outubro de 1942 (o campo entrara em funcionamento em Junho desse ano) com uma das suas irmãs, da qual se separa para sempre assim que saem do vagão que os transportara. Homens e mulheres são apartados e despidos de todas as roupas. Formam em fila, e os alemães escolhem cerca de uma centena de homens novos - Rajchman está entre os seleccionados. As mulheres são levadas. A partir desse momento começa a correria para aquela centena que foi escolhida: separar dos montes as bagagens, as roupas, os lençóis, as malas, os sapatos, os vestidos das mulheres. Os mais lentos são chicoteados pelos guardas ucranianos que serviam os alemães das SS.

"Treblinka foi concebido de um modo profissional": não era um campo de concentração mas um campo de extermínio. Os que chegavam morriam em poucas horas, depois de encaminhados para as câmaras de gás através do "Schlauch" [corredor]. "Com arbustos plantados, parece uma rua de um jardim público" - uma rua em ângulo recto para que não se vissem logo as câmaras, um edifício branco marcado com a estrela de David. Quando pisam essa rua de areia branca, as pessoas devem correr, são chicoteadas e matraqueadas. Nesse caminho da morte, homens e mulheres voltam a encontrar-se, nus. Os SS, postados à porta, empurram as pessoas para dentro, ao mesmo tempo que gritam, "Schneller, schneller" [mais depressa, mais depressa].

Até à chegada do próximo comboio, Chil Rajchman passou o tempo a escolher roupas; sempre que endireitava as costas era chicoteado. Entretanto, um SS pergunta se há entre eles um cabeleireiro. Ele diz que sim, apesar de nunca o ter sido. Mais tarde é colocado no corredor que leva às câmaras de gás; a sua tarefa: em cinco tesouradas deve conseguir cortar os cabelos da cabeça de uma mulher, que se sentará à sua frente, e enfiá-los dentro de uma mala, que tem ao lado, sem que nenhum cabelo toque o chão. Depois de as portas das câmaras estarem fechadas, os cabeleireiros são obrigados a cantar.

O matadouro

Treblinka estava dividido em duas áreas, uma antes das câmaras, e outra para lá delas. Os trabalhadores das duas áreas não comunicavam entre si para que não soubessem o que se passava no denominado "campo nº2", que Rajchman (que para lá foi transferido) descreve como "bem pior do que as câmaras de gás".
O primeiro trabalho de Chil é carregar areia de um monte para outro, ao mesmo tempo que os compridos chicotes dos guardas ucranianos giram por cima das cabeças e das costas de todos. Há fossas abertas. Numa delas, dois judeus alinham corpos. Próxima tarefa: retirar das câmaras de gás os corpos e transportá-los numa padiola. Tudo é feito a correr. Pelo caminho há que parar no "dentista", o prisioneiro encarregue de com um alicate extrair aos mortos os dentes de ouro, as pontes e coroas de prata e platina. Rajchman também irá desempenhar essa função.

Mais tarde, já com várias valas de dez metros de profundidade cheias de cadáveres (Rajchman chega a estimar cerca de dez mil mortos por dia), chega um SS para aperfeiçoar a cremação de centenas de milhar de corpos em putrefacção e inventar, a partir de carris ferroviários, o engenhoso sistema do "grelhador". Chil ocupar-se-á igualmente da tarefa de carregar para a fogueira os membros e corpos desenterrados, em adiantada decomposição, ao mesmo tempo que três escavadoras gigantescas trabalham 12 horas por dia.

A revolta e consequente fuga dos prisioneiros dá-se a 2 de Agosto de 1943, com a morte de muitos. Chil Rajchman consegue esconder-se e chegar meses depois a Varsóvia, onde permanecerá até ao final da guerra e onde escreverá o caderno "para dar testemunho do matadouro". O campo de Treblinka foi encerrado e desmantelado meses depois da fuga.

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