De César Aira (n. 1949), um dos escritores mais originais, subversivos e prolíficos das letras hispânicas nas últimas duas décadas, alguém disse um dia ser "o segredo mais bem guardado da Argentina". Pode bem ser. Autor de cerca de cinquenta livros (entre romances, novelas, colectâneas de contos e ensaios), tinha até agora apenas um romance publicado em Portugal, "Como Me Tornei Monja" (2007). Faz parte daquela geração de escritores latino-americanos (com Roberto Bolaño, Horacio Castellanos Moya, e outros) que já nem pertence ao chamado período "pós-boom" (Álvaro Mutis, por exemplo); eles sempre estiveram mais perto dos espanhóis Vila-Matas e Javier Marias (com as suas influências centro-europeias) do que de García Márquez ou de Vargas Llosa. Apesar de não terem em comum um estilo, ou tão-pouco uma ideia orientadora, o que acaba por os aproximar é esse evidente (por vezes declarado) afastamento da tradição sul-americana e a capacidade, cada um à sua maneira, de ser capaz de construir o seu próprio cânone.
O curto romance "Um Episódio na Vida do Pintor Viajante" é dos textos menos experimentais (ou exóticos) de Aira. Apesar de as páginas iniciais poderem dar ao leitor a sensação de que está perante uma biografia no sentido canónico do termo, essa ilusão depressa se extingue. Os dados biográficos do pintor Johann Moritz Rugendas (1802-1858) mais não servem do que para nos introduzirem nessa ideia de "geografia artística" criada pelo sábio alemão Alexander van Humboldt (1769-1859), que defendia que "só nos trópicos se encontrava o excesso necessário de formas primárias para caracterizar uma paisagem", e que essa caracterização teria de vir da "soma das imagens coordenadas num quadro abarcador". O pintor Rugendas, personagem principal desta história de César Aira, foi o mestre dessa arte pictórica da "fisionomia da natureza". E é na segunda das duas viagens de estudo que fez ao continente sul-americano - principalmente num episódio que tem lugar na pampa argentina em 1837 - que o leitor o encontra. Rugendas procurava algo (uma revelação?) que fizesse com que ultrapassasse as fronteiras do seu estilo. Como num pressentimento, sabia que isso aconteceria no "vazio misterioso que estava no ponto equidistante dos horizontes sobre as planícies imensas". Por esta altura, começara já a fazer esboços e estudos a óleo, os seus procedimentos alteravam-se. (Note-se que Aira criou num dos seus ensaios o conceito de "procedimento", que ele diz ser a ferramenta básica de todas as vanguardas.)
O momento alto da narrativa é, de facto, o que ocorre nessa pampa desértica. Durante uma tempestade, o pintor é atingido por dois raios que lhe deixam a face desfigurada e lhe provocam enxaquecas crónicas. Na sua escrita perfeita e elegante, Aira quase esboça uma espécie de "pintura holográfica": "Como uma estátua de níquel, homem e animal acenderam-se de electricidade. Rugendas viu-se brilhar, espectador de si mesmo num instante de horror, que lamentavelmente se repetiria. A crina do cavalo estava parada, como a barbatana de um espadarte. A partir desse momento tornou-se uma visão estranha para si próprio."
Mais tarde, montado no mesmo cavalo que entretanto fora rebaptizado de Rayo, o pintor, durante um ataque de índios ao lugar onde se encontra hospedado, com a cara coberta por uma transparente mantilha preta, esboça freneticamente e em desenhos sucessivos todos os movimentos de homens e animais, tentando capturar uma batalha em tempo real. Mas o autor sabe que a reescrita de acontecimentos passados é sempre artificial. Na sua escrita auto-reflexiva, César Aira cria uma espécie de discurso duplo, pois ao mesmo tempo que há um narrador que descreve os procedimentos artísticos, acontece a descrição dos conflitos criativos.
Este curto romance, inteligente e original, é uma magnífica meditação sobre a representação estética do mundo, sobre o papel da arte na vida.