Cientistas vislumbram duas “paisagens genéticas” devastadas pelo cancro

As mortes devidas ao cancro do pulmão representam cerca de 16 por cento das mortes por cancro no mundo. E, dos dois tipos de cancro do pulmão, o cancro de pequenas células (15 por cento dos casos) é o mais letal: apenas um em cada 20 doentes consegue sobreviver-lhe cinco anos. É provocado, esmagadoramente, pelo tabagismo.

O melanoma maligno, quanto a ele, é um cancro raro – representa apenas três por cento dos cancros da pele – mas é de longe o mais mortal: provoca três em cada quatro mortes por cancro da pele. Um dos principais agentes causadores de melanoma é a exposição aos raios do Sol.

Sabe-se que estes e os outros cancros surgem quando o ADN das células do organismo humano sofre mutações – no caso do cancro do pulmão, trata-se de mutações induzidas pelas substâncias tóxicas do fumo de cigarro; no do melanoma, pelas radiações ultravioletas. Mas o que é que se passa exactamente ao nível do genoma? Qual é a história de cada cancro, como é que se desenvolve em cada pessoa?

Na edição online de hoje da revista Nature, uma grande equipa anglo-americana de cientistas revela, em dois artigos separados, dois trabalhos pioneiros de autêntica arqueologia genética que permitem começar a responder a estas perguntas e que, no futuro, poderão conduzir a uma forma radicalmente diferente – e personalizada – de tratar estes cancros e o cancro em geral.

Peter Campbell e Mark Stratton, do Wellcome Trust Sanger Institute no Reino Unido, e os seus colegas, sequenciaram na íntegra, com uma precisão sem precedentes, o ADN de células cancerosas desses dois tipos de cancros (diga-se de passagem que, para além de utilizarem as mais potentes e modernas técnicas de sequenciação genética, no caso do melanoma, em particular, tiveram de repetir a leitura mais de 70 vezes para ter a certeza de estar a ler correctamente cada “letra” de ADN).

A seguir, compararam cada uma dessas sequências genéticas com o respectivo ADN de células normais, não cancerosas, vindo do mesmo doente, à procura das mutações associadas a cada um dos cancros.

“Estes são os dois principais cancros do mundo desenvolvido cujas causas primárias são conhecidas”, explica Stratton num comunicado da sua instituição. “Para o do pulmão é o fumo de cigarro e para o melanoma maligno é a exposição solar. Com estas sequências genéticas, fomos capazes de explorar em profundidade o passado de cada tumor, revelando com notável clareza as marcas deixadas no ADN por esses agentes mutagénicos ambientais anos antes de o tumor se tornar aparente.”

O genoma do cancro do pulmão continha mais de 23 mil mutações e o do melanoma mais de 33 mil. “Com base em estimativas médias, podemos dizer que surge uma mutação ao fim de cada 15 cigarros”, diz Campbell no mesmo documento. Ou seja, uma mutação por dia para um fumador típico!

Também vislumbraram a batalha travada pelo genoma contra essas alterações nefastas, batalha que o cancro acabou obviamente por vencer nestes dois casos. “Foi possível ver as tentativas desesperadas do nosso genoma para se defender dos estragos provocados pelos químicos do fumo de cigarro e da radiação ultravioleta”, acrescenta Stratton. No caso do cancro do pulmão, a equipa identificou ainda um misterioso sistema natural de reparação do ADN, até agora desconhecido, que sugere que o genoma tende a defender mais intensamente as suas regiões que contêm genes muito activos – e a descurar outras, menos importantes.

Agora, vai ser preciso identificar as mutações causadoras destes cancros – o que, pela primeira vez, parece ser possível. “Mas ainda temos muito a fazer para perceber estas devastadas paisagens genéticas do cancro”, frisa Campbell.

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