Lisboa-Cascais não se faz sobre rodasBicicleta

Fazer o percurso entre Lisboa e Cascais montado numa bicicleta é, mais o que um passeio, uma aventura. Desde obstáculos como túneis e passagens de nível até à necessidade de cruzar as quatro faixas da marginal e à disputa do asfalto com automóveis, o exercício de ciclismo torna-se num caso de resistência. No fim, percebe-se que esta não é, pelo menos ainda, uma alternativa viável aos outros meios de transporte Luís Villalobos (texto) Joaquim Guerreiro (infografia)

aTirar o pó à bicicleta, encher-lhe os pneus e colocar óleo na corrente foram os três primeiros passos antes da concretização de uma ideia: é possível fazer um percurso alternativo ao automóvel e ao comboio entre Lisboa e Cascais? Afinal, o presidente de Lisboa, António Costa, é um conhecido adepto das duas rodas sem motor e António Capucho prepara-se para voltar a permitir a circulação de bicicletas no paredão de Cascais. E, tendo em conta a beleza da linha do Estoril e o seu clima, tudo faria pensar que sim.

O teste, físico e geográfico, começou às 11 horas de 4 de Dezembro, uma sexta-feira em que a meteorologia prometia um céu com sol. Não obstante termos sido enganados pelas previsões, já que foi a chuva miudinha que apareceu junto à estação dos comboios do Cais do Sodré, nem por isso se perdeu o alento e impulsionámos as bicicletas com as primeiras pedaladas. À nossa frente estavam perto de 30 quilómetros até à estação de Cascais, e todo um percurso para desbravar.

Interrogações da ciclovia

A primeira parte faz-se na companhia dos automóveis que preferem a estreita Avenida de Brasília à 24 de Julho, balizados entre a linha de caminho-de-ferro e os barracões junto ao rio. Um pouco mais à frente, na zona de Santos, mesmo junto ao rio Tejo e em linha com o Museu Nacional de Arte Antiga, surge uma ciclovia. Curiosamente, ou talvez não, as marcas do início do percurso são enormes pontos de interrogação, acompanhados de um pequeno símbolo de uma bicicleta. Sinal de que ainda não se sabe muito o que fazer com as bicicletas nesta cidade.

O piso macio, com os barcos à esquerda, permite um passeio agradável, embora partilhado por peões. A verdade é que não se percebe se a partilha é obrigatória ou tácita, mas o certo é que obriga a cuidados extra e a variações de ritmo. Estas últimas, aliás, serão uma constante ao longo de todo o percurso. Logo a partir da zona da Rocha do Conde de Óbidos, em Alcântara, há sinais confusos, não se percebendo muito bem para onde é que devemos ir, o que acaba por ser resolvido de forma pragmática: segue-se em frente, em direcção às docas. O momento seguinte é de pausa, já que uma enorme sinalética avisa que é preciso desmontar, algo que fazemos prontamente durante os cerca de 300 metros de esplanadas.

Agora, de novo sobre duas rodas, começamos a perceber melhor os pontos de interrogação sobre o que será este percurso, já que o piso passa a alternar entre o passeio que já lá estava há décadas, composto por marcações no chão, e um tipo de piso que faz de nós verdadeiras batedeiras humanas. Apesar do cérebro em modo de vibração involuntária, surge o pensamento de que a medida, apesar de louvável, não passou de um mero acto isolado, algo inconsequente.

Depois, embora beneficiando de nova melhoria do piso e do prazer de passar debaixo da ponte 25 de Abril, que nos dá uma perspectiva fora do normal, há sempre que ter a mão no travão e ter em conta o constante fluxo de peões, a passo de corrida ou de passeio, ou até mesmo as portas dos automóveis abertas para cima da via. Acaba-se por ficar com a ideia de que há momentos em que os outsiders ali somos nós, os ciclistas.

Desafiar a sorte

O trajecto da ciclovia, ou da via ciclável, para ser mais exacto, termina na Torre de Belém, após mais um ou dois ziguezagues pela doca e por um hotel. E há que perceber novamente por onde é que se vai. A rota é simples, pelo que a solução é continuar em frente. Passando o monumento aos combatentes do ultramar, volta-se à Avenida de Brasília e à trepidação e partilha do espaço com os automóveis que, felizmente neste caso, nem eram assim tantos. Pouco mais à frente, surge toda uma outra realidade, que permite relaxar os sentidos e andar um pouco mais depressa. Uns blocos de cimento impedem a circulação de carros no passeio de Algés, fornecendo largas faixas de piso macio para peões em passo de corrida e para bicicletas. Aqui, mesmo sem sinais de trânsito, há, sem dúvida, espaço para todos. Só que o que é bom acaba depressa e, na recta do Dafundo, entramos numa zona de todo-o-terreno, enveredando por um trilho que deve existir ali pelo menos desde o início do século XX.

A maresia, vinda da esquerda, ocupa o sentido do olfacto, enquanto a visão é preenchida pelos últimos vestígios dos pescadores que ainda perduram. Sem ninguém por perto, os seus barcos com remos caídos e redes encostadas dão a ideia de que parámos no tempo, porque este não parece ter passado por ali.

A Cruz Quebrada obriga a outra paragem, desta vez para passar debaixo da ponte dos comboios, subir à estação e passar para o lado da linha junto ao mar. Uma movimentação indispensável para entrar numa nova zona marítima, na qual a ausência de sinalizações proibitivas de circulação é tranquilizadora, embora nada especifique que podemos estar ali. Esta acaba perto da curva do Mónaco, um dos locais mais mortíferos da marginal. E o mais bizarro é que termina sem qualquer tipo de passagem, como uma ponte, seja para peões ou ciclistas.

Para todos os efeitos, quem veio por aqui só pode inverter a marcha e seguir para o local de onde veio. Não foi, no entanto, isso que fizemos, optando por uma estratégia com algo de suicidário: levar a bicicleta à mão para o outro lado da marginal em Caxias, passando quatro faixas e o separador central. De repente, sentimo-nos como personagens de um célebre jogo de computador dos primórdios do Zx Spectrum, Horácio Vai Esquiar, cujo objectivo, nem sempre com sucesso, era andar para trás e para a frente cruzando uma estrada com automóveis e evitando ser atropelado até reunir o equipamento necessário. É verdade que não aconteceu nada de mal, mas é algo que não se aconselha repetir muitas vezes porque a sorte não gosta que abusem dela.

Hegemonia automóvel

Aqui começou uma das fases menos agradáveis, porque até esta etapa, apesar das quebras de ritmo, dos diferentes pisos, de alguma confusão, da partilha com os peões e dos ziguezagues, nunca a segurança pareceu estar em causa. E a disputa rodoviária com os carros, sem sequer ter o auxílio de um espelho retrovisor, é, no mínimo, stressante.

Pedro Alves Martins, um dos sócios fundadores da Terracotta Journeys, empresa de turismo activo que organiza tours de bicicleta, e que acompanhou o Cidades nesta pequena odisseia, diz que quanto mais pessoas andam de bicicleta, mais respeitam depois os ciclistas quando estão ao volante do seu automóvel. Uma vez que, segundo dados da Comissão Europeia referentes à Europa com quinze Estados-membros, Portugal está no grupo dos países com menos utilizadores das duas rodas, percebe-se que os automobilistas não se esforçam muito por facilitar a vida aos outros utilizadores do asfalto. À velocidade a que passam, torna-se difícil dizer-lhes pela janela que, segundo Bruxelas, em trajectos curtos, "a bicicleta pode substituir com vantagem o automóvel", contribuindo para a diminuição dos congestionamentos. Outra hipótese seria ter uma t-shirt com as palavras "73 por cento dos europeus consideram que a bicicleta deveria beneficiar de um tratamento preferencial face ao automóvel", mas teme-se que a frase seja demasiado longa e pouco eficaz.

A chegada ao Passeio Marítimo, em Santo Amaro de Oeiras, permite descontrair, principalmente depois de perceber que não somos transeuntes clandestinos. Aqui pode-se andar de bicicleta sem problemas, já que a sinalização indica que só é proibido circular, neste época do ano (mais concretamente entre Novembro e Março), entre as 10 e as 17 horas de sábados e domingos. Rapidamente chegamos ao fim deste pequeno paredão, e uma rampa conduz-nos à fronteira com o concelho de Cascais. A partir daqui, descendo para o paredão que acompanha a praia de Carcavelos e passando devagar por diversas esplanadas e bares que prometiam um bom descanso, sabemos que estamos a desobedecer aos sinais de trânsito. A utilização de bicicletas é proibida, mas o panorama vai mudar dentro em breve, já que o presidente da câmara, António Capucho, vai apresentar uma proposta que permitirá o regresso dos ciclistas aos paredões do concelho, seja o de Carcavelos, seja o que vai de S. João do Estoril até Cascais. Esperava-se que o processo estivesse terminado até ao final deste ano, mas, segundo comunicou António Capucho ao Cidades, as tramitações legais necessárias, como o debate público da proposta de regulamento, só deverão estar concluídas no início de 2010.

Bicicletas de volta

O regresso das bicicletas ao paredão, como constata António Capucho, é "uma discussão antiga". O consenso, diz o autarca, surgiu após um "debate profícuo" com a associação dos amigos do paredão e com os representantes dos cidadãos defensores da abertura do paredão à circulação de bicicletas. Assim, se tudo correr como previsto, haverá circulação de bicicletas mas de forma condicionada, à semelhança do que se verifica em Oeiras. Ou seja, transpondo-nos para daqui a três meses, deixaríamos de estar ilegais, e é com esse pensamento consolador em mente que percorremos toda a praia de Carcavelos até à ponta final, no início da Parede. Agora, há que pegar na bicicleta à mão, passar um pequeno túnel e voltar a disputar o asfalto da marginal.

O pior é que, nesta altura, as pernas já se ressentem um pouco do exercício, ou da falta dele. O percurso desde Lisboa é quase plano, mas mesmo uma pequena subida, nesta fase, tem um impacto multiplicador. Chegando a S. João do Estoril, há que encostar ao passeio junto aos semáforos perto da estação dos comboios, passar a estrada e descer as escadas até à praia da Zarujinha. De novo ilegais, mas sem peso na consciência, sentimento reforçado com o facto de o paredão estar quase vazio, pedalámos de olhos postos na meta e de forma tranquila até ao fim da etapa.

A chegada à estação de Cascais, cerca de duas horas e um quarto após a partida de Lisboa, a uma média de 15 quilómetros por hora, faz-se com um sentimento de conquista e de satisfação, nem que seja por termos chegado incólumes, pelo prazer que deu percorrer alguns dos troços e por termos resistido fisicamente (como se percebeu pelo início do texto, a bicicleta não tem tido aquilo que se pode chamar utilização assídua). Há, no entanto, uma conclusão final: este percurso não é, actualmente, uma alternativa nem ao comboio nem ao automóvel, e muito menos se recomenda para passeio em família. Pode ser uma manhã diferente para algumas pessoas, como foi para nós, mas basta pensar na travessia junto à curva do Mónaco e aos quilómetros da marginal para perceber que é pouco recomendável. Decisões estratégicas

A mesma ideia tem Pedro Alves Martins. Para o responsável da Terracotta Journeys, de 44 anos, "as partes na marginal são desagradáveis e com reduzida segurança", destacando que "até os vários troços terem uma ligação entre si, sem necessitar de se andar na marginal e em troços de BTT, não é uma alternativa confortável nem viável aos outros meios de transporte, mesmo para utilizadores regulares da bicicleta". A estes factos acrescenta ainda obstáculos como subir escadas e as restrições sazonais e de horários. Para Pedro Alves Martins, "algumas partes do percurso revelam o início de algum interesse de alguns decisores em desenvolver a utilização da bicicleta como meio de mobilidade urbana, mas ainda numa fase extremamente latente e pouco coordenada", seja entre câmaras ou entre diferentes instituições. Assim, diz, a ideia que fica é que são iniciativas pontuais e focadas localmente com um âmbito regional muito restrito. "Penso que há ainda falta de conhecimentos técnicos de como deve funcionar uma ciclovia segura, bem feita e atraente", acrescenta, defendendo que "é de todo insensato pensar-se que um volume significativo e regular de bicicletas possa partilhar uma via com peões (alguns a passear o cão), patins em linha, carros e outros obstáculos físicos". Para todos os efeitos, defende Pedro Alves Martins, este percurso tem o potencial necessário para ser "das mais belas ciclovias para commuting da Europa, numa das cidades com o melhor clima", ou seja, para ser utilizada no quotidiano por quem vai para o trabalho. "É um diamante em bruto", sublinha. Será. Mas até estar lapidado há ainda um enorme caminho a percorrer.

luis.villalobos@publico.pt

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