Ao princípio, pensamos ter aterrado numa reinvenção do "peplum"; não, afinal desviamo-nos para os épicos cristãos de bons sentimentos à la "Túnica" e outros "Quo Vadis"; quando damos por nós, entrámos numa história de amor impossível e acabamos numa crítica feroz dos fundamentalismos religiosos, num hino à tolerância e à razão, num ensaio sobre a ignorância e o conhecimento. E o melhor de tudo é que só no final das duas horas de projecção é que temos o quadro todo à frente - explica-se porque é que filmes como "Ágora" não se encontram ali à esquina nem enquanto o diabo esfrega o olho, filmes que resistem teimosamente a explicar ao que vêm nos primeiros dez minutos e que se vão revelando aos poucos, como quem não quer a coisa. Calha bem, a figura central do filme de Alejandro Amenábar (cinco anos depois de "Mar Adentro") é a elipse - a elipse que define a órbita da Terra em volta do Sol que a filósofa Hipátia busca durante todo o filme, numa sede insaciável de conhecimento, mas que está lá desde o primeiro diálogo com os alunos na sua sala de aulas na biblioteca de Alexandria, onde se fala dos temas que norteiam "Ágora" sem realmente falar deles.
Estamos em 391 depois de Cristo, quando o cristianismo se começa a espalhar pela Europa, e Amenábar centra a história no saque da lendária biblioteca de Alexandria e na imparável ascensão ao poder dos cristãos do Médio-Oriente, impondo um intolerante "diktat" que nos faz pensar ora nos talibãs (e outros fundamentalistas religiosos, quaisquer que sejam) ora no Nazismo (e outras crenças de extrema-direita, quaisquer que sejam). Não é por acaso que Amenábar ilustra graficamente o apedrejamento da população judia de Alexandria nem é forçosamente casual que identifiquemos o saque e destruição da biblioteca com a destruição dos budas de Bamyan, no Afeganistão - e é um tanto ou quanto perturbante para aqueles que esqueceram a sua história clássica perceber que já na Antiguidade a intolerância e o preconceito existiam e procuravam derrotar as forças da razão e do conhecimento.
Mas tudo isto é contado através de um improvável triângulo romântico: Hipátia, a filósofa e cientista que abdicou da sua vida e das suas emoções em nome da ciência; Davus, o escravo fascinado pelo conhecimento que, uma vez libertado num novo mundo onde a ciência já não tem o mesmo lugar, se dedica à violência em nome da religião para preencher o vazio; Orestes, o romântico incurável que sempre procurou o compromisso impossível entre a ciência e a religião.E de repente percebemos que, por trás destes amores nunca consumados encontra-se um filme muito mais ardiloso do que parece, que usa a estrutura e a forma do género para criar um épico onde a cabeça e não a acção comanda, e, ao mesmo tempo, para criticar a sua própria estrutura. Um filme sobre a força e o poder e o perigo das ideias, mas sobre o perigo ainda maior de não deixar essas ideias contaminarem-se pela emoção e pela compaixão. Um filme que debate religião, ciência, conhecimento, intolerância pelo meio de uma abordagem clássica ao cinema de género e de grande espectáculo, que Amenábar encena com segurança e uma inteligência que já lhe conhecíamos dos filmes anteriores mas que atinge aqui uma maturidade insuspeita - mesmo que também aqui com uma frieza algo distante, ali com um peso demasiado demonstrativo, pontualmente mesmo com um certo anonimato de funcionário.
A maior fraqueza de "Ágora", aliás, acaba por ser, paradoxalmente, a sua força - o modo como a história parece navegar à vista sem destino nem forma durante a primeira metade do filme sugerem primeiro um cineasta à toa, perdido na sua ambição, mas revelam-se depois uma estratégia delineada que exige uma entrega e uma atenção inabituais nestes dias em que a oferta é descartável e pouco exigente: este é um filme que trata o seu espectador como alguém que pensa. É uma ambição que se saúda, reconhece e se agradece, mesmo que "Ágora" fique um par de furos aquém da obra-prima.
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