Está escuro e vê-se mesmo muito mal aqui, nesta sala em que há sempre gente a um canto - atrás do sofá, das cortinas, da parede - pronta a apertar-nos o pescoço e a fazer-nos gritar baixinho, porque esta ferida aberta enorme, cada vez maior, no meio das pernas, é para fazer de conta que não existe. É para ser um segredo, daqueles de família, que é melhor nunca ninguém saber porque ia de certeza ficar "muito triste".
É mesmo grande, a ferida - grande do tamanho de "Cratera", o primeiro texto que valter hugo mãe escreveu para o palco, a pedido do Teatro Bruto. A companhia decidiu passar o ano de 2009 a criar um monstro, projecto que previa duas criações originais, a partir de textos de Daniel Jonas, primeiro, e de valter hugo mãe, depois - e agora que o monstro tem vida própria, admite Ana Luena, o Teatro Bruto está assustado. "Quando li o texto pela primeira vez, fiquei até um bocado perturbada porque é um texto muito cruel, muito bruto. O mal aqui está onde menos queremos que ele esteja, dentro de casa, dentro de nós. Foi um choque - eu já tinha lido 'O Remorso de Baltazar Serapião', mas aí era uma violência mais rural, mais verbal. Aqui os diálogos são muito simples, mas muito repetitivos, o que torna tudo muito doentio. Acho que é um texto sem esperança nenhuma", explica a encenadora. É exactamente como se o Teatro Bruto tivesse aberto a caixa de Pandora: "Pedimos ao Daniel Jonas que abordasse a questão do Mal de um ponto de vista mais político, e depois ao valter que abordasse a questão da mulher como origem do Mal e ele escreveu o 'Cratera'. Saiu isto, que é uma coisa bem assustadora", continua Ana Luena.
Dentro desta casa onde vivem dois irmãos, Miguel (Carlos António) e Beatriz (Pedro Mendonça e Sílvia Silva), há demasiadas coisas escondidas, demasiadas coisas que nunca se revelam - a começar pela mãe, que não sabemos se está viva ou morta, no emprego ou no hospital -, mas também há demasiadas coisas que se revelam. Abusos, violações, violência física, violência verbal, de irmão para irmão, para ficar tudo em família - e desdobrar a personagem feminina em dois corpos, um de homem e outro de mulher, foi a solução que a companhia encontrou para evitar distribuir à partida os papéis da vítima e do carrasco. "O facto de a Beatriz às vezes ser o Pedro, que é um actor mais robusto, baralha a nossa tendência natural para formatar. O valter propunha que a Beatriz fosse interpretada por um homem mas que nunca deixasse de ser uma mulher, só que isso é muito difícil porque nunca conseguimos ultrapassar a barreira do corpo, do que ele significa. Fiz esta opção porque queria abrir o texto para outro tipo de leituras", salienta Ana Luena.
Ir atrás do monstro que eles próprios criaram foi "massacrante", diz: "Tens de ir buscar coisas íntimas para montar um texto destes, e são coisas más, coisas perversas. É terrível, porque uma coisa é falar disto com distanciamento e outra é ir esgravatar o Mal que está na nossa cabeça". A verdade é que era disso que eles andavam à procura quando se meteram nisto - mas isso é um segredo só nosso, não vamos fazer queixa à mamã.