Um menino negro anda de skate no terraço de um prédio em Luanda. Por trás dele há roupa colorida a secar e, mais atrás, um edifício coberto com uma grelha rendilhada.
Noutra imagem uma menina de bata branca, fita no cabelo, mala cor-de-rosa a tiracolo, pousa para a fotografia junto a uma abertura, como se fosse uma janela sem vidro numa parede também rendilhada do Liceu do Lobito.
Noutra ainda uma rapariga faz trancinhas no cabelo de uma amiga num dos corredores-galerias do Edifício da Universal, no Lobito.
"Moderno Tropical - Arquitectura em Angola e Moçambique em 1948-1975" não é (só) um livro sobre arquitectura. A arquitecta Ana Magalhães e a fotógrafa Inês Gonçalves viajaram por quatro cidades - Luanda e Lobito, em Angola, Maputo e Beira, em Moçambique - à procura do que resta dos edifícios construídos nas décadas de 50 e 60 por arquitectos portugueses ou que tinham estudado em Portugal, e que em África construíram, inspirados pelo Movimento Moderno, mas com uma liberdade que não podiam ter na metrópole.
Encontraram de tudo, desde edifícios em mau estado, a outros relativamente bem conservados (a estação de caminho-de-ferro da Beira, de Paulo Melo Sampaio, João Garizo do Carmo e Francisco Castro, está bem conservada, mas recebe um comboio por dia), edifícios semi-abandonados, outros cheios de vida. Quando convidou Inês Gonçalves para a acompanhar nesta viagem (ponto de partida para a tese de doutoramento em que trabalha), Ana Magalhães sabia o que queria: "Perceber como é que os edifícios sobrevivem ao tempo e como é que se relacionam com as pessoas", explica ao Ípsilon. A primeira reacção da fotógrafa foi de hesitação. "A fotografia de arquitectura é uma coisa muito específica. Tem uma especificidade técnica que tem a ver com as máquinas, as perspectivas", diz Inês Gonçalves. Mas percebeu que o que Ana queria era que "o livro fosse também documental, sobre como aqueles edifícios são vividos neste momento, às vezes até com uma função diferente daquela para a qual foram concebidos".
É o caso do Cine-Flamingo, no Lobito, obra de Francisco Castro Rodrigues, de 1963. A fotografia da capa do livro mostra um edifício em mau estado, o cimento quebrado, os ferros a aparecerem por baixo, tábuas de madeira partidas, as letras da palavra Flamingo enferrujadas. Mas à frente dele passa um grupo de meninas, também elas de batas brancas e mochilas às costas, cabelos cheios de trancinhas.
O Flamingo já não é cinema, é hoje uma escola. Ana e Inês foram encontrar uma turma da primária, sentada nas cadeiras, ouvindo uma lição. Ao lado o velho anfiteatro está vazio e o ecrã já só reflecte as sombras que o sol vai deslocando ao longo do dia. Mas Ana Magalhães não tem um olhar nostálgico sobre estes espaços. "Claro que associamos estes cinemas ao glamour dos anos 50 e 60, e gostamos de imaginar como seriam na altura. Mas a arquitectura e as cidades são coisas evolutivas e é, de certa forma, um privilégio para estes miúdos estarem aqui. É um recreio natural, entre os mangais e o mar. Não está abandonado. Está degradado mas tem vida".
Varandas, caixas, cores
Tal como têm vida muitos outros edifícios desta época e deste grupo de arquitectos. O Liceu do Lobito (1966), de Francisco Castro Rodrigues, continua a ser um liceu, a Rádio Nacional de Angola (1963), de Fernão Simões de Carvalho e José Pinto da Cunha, está em óptimo estado, o Edifício dos Coqueiros em Luanda (1969), de João Garcia de Castilho, está bastante bem conservado, o Cine-Miramar (1964, João e Luís Garcia de Castilho), e o Cine-Atlântico, ambos em Luanda, continuam a funcionar como grandes cinemas ao ar livre.
No edifício da Universal, outra obra de Francisco Castro Rodrigues no Lobito (1961), há crianças a brincar pelas escadas enquanto as mulheres lavam a roupa em tanques na lavandaria a céu aberto. "Há edifícios que têm lavandarias no último andar, foram projectados assim e continuam a ser usados assim", conta Inês Gonçalves. "Outros têm grandes varandas e as pessoas fazem imensa vida nessas varandas".
Inês tinha passado muitas vezes por várias destas obras, conhecia-as, já tinha reparado "naqueles edifícios tão particulares". São "presenças muito fortes nas cidades, tanto em Luanda como em Maputo". Mas confessa que até fazer este trabalho "não tinha a noção da qualidade e da inteligência desta arquitectura".
É sobre essa inteligência que Ana Magalhães escreve no livro: "Um dos traços da especificidade da arquitectura nestes territórios é a expressão de liberdade. O impulso de liberdade está presente na singularidade das obras construídas nestes países africanos desde o início da década de 50". É visível na criatividade de edifícios como a Padaria Saipal de Maputo (1954), ou outros de Pacho Guedes (embora este arquitecto, com o seu Stilo Guedes, seja um caso particular, sublinha a autora), na forma como são tratadas as fachadas, com varandas, caixas e outro tipo de saliências, e na decoração colorida.
"O mosaico de pastilha vidrada, na sua profusão cromática, alegra muitas fachadas das ruas de Luanda: o azul-turquesa do Cuca, ex-líbris de Luanda, as cores fortes dos blocos salientes que animavam a fachada do mercado do Kinaxixe, o desenho padronizado e geométrico do edifício do 'Livro'; há pastilhas cor-de-rosa, cor-de-laranja, brancas e todas as variações de azul", escreve.
Mas quem são, afinal, os arquitectos por trás destas obras? Ana Magalhães destaca oito nomes: Vasco Vieira da Costa (Aveiro, 1911-1982), Francisco Castro Rodrigues (Lisboa, 1920), Fernão Simões de Carvalho (Luanda, 1929), Pancho Miranda Guedes (Lisboa, 1925), João José Tinoco (Coimbra, 1924 -1983), João Garizo do Carmo (Beira, 1917-1974), Paulo Melo Sampaio (Cascais, 1926), Francisco Castro (Lisboa, 1923). É uma geração que, formada "nas Escolas de Belas Artes de Lisboa e do Porto, entre o final da década de 40 e o início da década de 50, parte para África, afirmando uma modernidade já distante dos modelos arquitectónicos oficiais veiculados pelo Estado Novo."
Têm idades diferentes, vão para África por razões diferentes, mas conhecem as premissas do Movimento Moderno, do trabalho de Le Corbusier, e também - facto relevante para o estudo que Ana Magalhães está a fazer - da forma como esse Movimento Moderno foi apropriado e de alguma maneira reinventado no Brasil.
A demolição do Kinaxixe
Vasco Vieira da Costa, por exemplo, estagiou com Le Corbusier em Paris; e Francisco Castro Rodrigues traduziu a versão integral da Carta de Atenas, o manifesto saído do IV Congresso Internacional de Arquitectura Moderna. A primeira obra de Vieira da Costa em Luanda data de 1950-52 e hoje já não existe. O Mercado do Kinaxixe foi dos primeiros edifícios que Ana e Inês visitaram e fotografaram.
"Já sabíamos que a demolição estava iminente", recorda Ana. "E os técnicos da empresa de demolição já lá estavam e tinham iniciado os trabalhos mais pequenos". Pediram autorização para entrar, e a câmara de Inês registou esses últimos momentos do velho mercado que foi um edifício emblemático da capital angolana, mas que, por se situar numa zona de alta especulação imobiliária, teve que dar lugar a um centro comercial.
"Ainda conseguimos ter a percepção de como o espaço funcionava", conta a arquitecta. "Havia dois pátios, os enormes espaços das bancas de venda, e as maravilhosas grelhas rendilhadas que davam para os pátios, enquanto para o exterior havia brise-solei verticais". Este era, segundo Ana Magalhães, um dos edifícios que cumpria as regras do Movimento Moderno, já adaptado às condições climáticas do país: "Levantado do chão, com uma galeria em continuidade com a rua, a cobertura em terraço, as grelhas que permitiam a ventilação natural.
Ainda houve resistência, da parte de arquitectos e de alguma elite intelectual de Luanda, mas o Kinaxixe veio abaixo. O escritor angolano José Eduardo Agualusa, que, juntamente com a arquitecta Ana Tostões, apresentou o livro "Moderno Tropical" numa sessão no Museu do Design e da Moda, em Lisboa, não se surpreende. "Existe uma grande ignorância em relação àqueles espaços, incluindo da parte dos responsáveis políticos. Só isso explica o abandono a que foram sujeitos". A crítica não visa só os responsáveis angolanos. "Ninguém ligou nunca. Não houve o menor esforço para proteger os edifícios. Portugal também tem responsabilidades, porque é um património comum. Mas os portugueses ficam com o complexo do colonizador e acabam por não fazer nada".
Apesar de tudo houve recentemente sinais positivos, embora em relação a edifícios de um período anterior. Agualusa recorda o caso do setecentista Palácio de Dona Ana Joaquina, que foi derrubado. "Houve alguns protestos e o Governo acabou por fazer uma cópia em betão que não tem nada a ver com o que era".
Noutros casos conseguiu-se manter o edifício original - como o do Palácio de Ferro, da escola de Gustave Eiffel, que foi restaurado por uma construtora brasileira, ou o Elinga Teatro. "Pela primeira vez um movimento cívico teve sucesso e terá impedido que o edifício fosse derrubado, o que é extraordinário porque a pressão imobiliária ali é muito grande". Agualusa está só moderadamente optimista: "Vamos esperar que seja possível salvar o que ainda resta e o que ainda possa ser salvo, que já não é muito".
Descobrir territórios novos
Ana Magalhães acredita que assistimos a um aumento do interesse de estudiosos portugueses sobre este período e o trabalho destes arquitectos. "O que é mais entusiasmante é estudar o século XX e em Portugal o trabalho já está praticamente todo feito. Há que descobrir territórios novos". Mas não é tarefa fácil.
Há trabalhos anteriores - nomeadamente "Geração Africana - Arquitectura e Cidades em Angola e Moçambique 1925-1975", do arquitecto José Manuel Fernandes, publicado em 2002 e que acaba de ser lançado numa segunda edição; a investigação de António Albuquerque sobre Moçambique; ou a tese de Margarida Quintã sobre a obra de Vasco Vieira da Costa - mas, diz Ana Magalhães, "levantam-se muitos problemas, até porque alguns dos arquitectos já morreram, os espólios não existem, muitos arquivos, sobretudo em Angola, terão sido destruídos ou estarão desorganizados". O livro inclui uma cronologia, um guia das obras fotografadas e pequenas biografias dos oito arquitectos, elementos que "podem funcionar como um guião" para quem queira aprofundar a investigação.
Longe de Lisboa, em cidades que precisavam de crescer e tinham espaço para isso, os arquitectos dessa "geração africana" construíram muito. Usaram os ensinamentos de Le Corbusier, namoraram o modernismo tropical brasileiro - veja-se a Igreja do Alto da Manga (1955) de João Garizo do Carmo, com as suas formas curvas e ondulantes (o "Diário de Moçambique" em 1956 chega a interpelar o arquitecto sobre a "semelhança com a Igreja da Pampulha, do [arquitecto brasileiro] Oscar Niemeyer", ao que Garizo do Carmo responde que "já muito antes de Niemeyer a forma parabólica foi imensamente empregada").
E tentaram que os edifícios fossem obras completas, integrando a arquitectura e a arte - painéis de azulejos, murais em pastilha vidrada, painéis cerâmicos, murais em mármore gravado, murais de seixos embutidos, desenhos figurativos e abstractos, formas geométricas, cores. Em pleno Estado Novo, fizeram uma arquitectura livre. Moderna e tropical.