Os Pasdaran são agora um Estado dentro do Estado
Os Guardas da Revolução estarão amanhã de novo nas ruas de Teerão a esmagar protestos populares. Serão uma força invencível?
Que força é esta que amanhã, Dia do Estudante, estará de novo nas ruas do Irão a reprimir os protestos populares contra o regime? Disse Mohsen Sazegara, um fundador que se tornou dissidente: "Não conheço nenhuma organização como os Guardas da Revolução - é algo como um partido comunista, o KGB, um complexo de negócios e a máfia."
O Sepah-e Pasdaran-e Enghelab-e Islami ou Exército dos Guardas da Revolução Islâmica foi criado por um decreto do ayatollah Khomeini a 5 de Maio de 1979, para substituir a tropa imperial do deposto Xá Mohammad Reza Pahlavi. A sua missão tinha dois objectivos primordiais: 1) dizimar a oposição interna - os activistas de esquerda do pró-soviético Tudeh e dos Mujahedin-e Khalq, os insurrectos entre as minorias étnicas e os monárquicos; 2) exportar a nova ideologia que, pela primeira vez, dava aos religiosos xiitas o poder temporal.
Hoje, 30 anos depois, os Pasdaran são o pilar de uma república que, segundo o académico iraniano Rasool Nafisi, deixou de envergar túnica e turbante para ser "um Estado islâmico que usa botas e desfila em uniforme militar". Esta transformação começou logo após a morte de Khomeini, em 1989. "Os Guardas da Revolução conseguiram impor-se porque o [Supremo] Líder Ali Khamenei dependia totalmente das forças de segurança, devido à sua fraca legitimidade", disse ao PÚBLICO, por e-mail, o autor de The Rising of the Pasdaran (Rand Corp.), aludindo à falta de credenciais teológicas do sucessor de Khomeini.
Khamenei era apenas hojatoleslam, grau abaixo de ayatollah, o que gerou desconfiança nas elites religiosas. Hoje, sublinha o professor de Artes e Ciências da Universidade de Strayer, em Washington, " Khamenei é, acima de tudo, um líder da segurança militar, mais do que o vali-e faqhi ou jurista qualificado", o posto que herdou do imã que derrubou o Xá.
Ao analisar o levantamento popular que se seguiu à reeleição de Mahmoud Ahmadinejad nas presidenciais de Junho, Nafisi descreve-o como "o início de um longo e árduo processo para reformar ou mudar a ditadura dos Guardas da Revolução e dos mullahs". Os iranianos confiavam que, "através de processos eleitorais regulares, pudessem introduzir mudanças, mas a aliança Khamenei-Ahmadinejad e a inequívoca fraude que organizaram mudaram essa percepção".
"A sublevação", acrescentou, "é a prova clara de que a classe urbana está desiludida com o regime islâmico. Esta é uma sublevação contra uma prolongada desilusão, e confronta uma mentira descarada. É tanto um protesto moral quanto um movimento político. Por enquanto, este movimento popular não tem uma organização nem uma liderança efectiva, mas, se conseguir manter-se activo, creio que ambas emergirão, embora não sem derramamento de sangue e um longo sofrimento."
Nafisi pensa que a República Islâmica "nunca foi, de facto, puramente clerical", e a guerra com o Iraque (1980-88) acentuou a perda desse carácter. "É simbólico que os líderes religiosos pós-revolução apareçam armados nas orações de sexta-feira", observou o académico. "A fusão dos militares e dos religiosos intensificou-se quando estes foram enviados para a frente de batalha e se tornaram comissários ideológicos do novo regime. Eles inspiraram soldados com recitações da dor e do sofrimento dos imãs martirizados, ao mesmo tempo que espiavam oficiais e os tentavam converter a um novo islão politizado. O que aconteceu, na realidade, foi a conversão do clero num ethos militar-securitário, e não o contrário."
Um grande impérioInicialmente, os Guardas não tinham ascendência sobre outras forças também encarregues de eliminar "ameaças existenciais, reais ou imaginárias", lê-se em The Rising of the Pasdaran. Operavam em paralelo com os komitehs (vigilantes que faziam "justiça" nos seus bairros); os tribunais revolucionários (que executavam sumariamente milhares de suspeitos de "crimes contra-revolucionários") e o Partido Revolucionário Islâmico/PRI (que tinha os seus próprios paramilitares).Três décadas depois, o Irão está sob o domínio total dos Pasdaran que, desde 2008, integra também a milícia Sazman-e Moghavemat-e Bassij ou Mobilização da Resistência Nacional. O Presidente Ahmadinejad é um antigo oficial pasdar, tal como a maior parte dos membros do Governo e do Parlamento, numerosos governadores e outros responsáveis administrativos. Os Guardas controlam vários órgãos de comunicação, da televisão estatal a websites, gerem escolas e universidades onde deram mais peso às aulas de religião e de onde afastaram os professores liberais; dirigem milionárias bonyads (fundações) que concedem empréstimos a famílias desfavorecidas; oferecem bolsas de estudo e empregos a jovens ao mesmo tempo que os treinam para mártires da "república da virtude"; mobilizam socorristas em situações de catástrofe, projectando uma imagem de generosidade, sobretudo nas áreas rurais, que contrabalança a má fama de repressores implacáveis nas áreas urbanas.
Apesar do seu esmagador domínio na vida política, social e cultural do Irão, é no mundo dos negócios que os Guardas ganham uma "natureza multidimensional", constatou Nafisi. "Da cirurgia oftalmológica a laser ao fabrico de automóveis e imobiliário, os Guardas alargaram a sua influência a todos os sectores do mercado iraniano", com monopólios que afastam qualquer concorrente, nacional ou estrangeiro. A mais recente aquisição foi a do maior operador de telemóveis iraniano, privatizado no âmbito de um esquema obscuro.
A principal companhia dos Pasdaran é a firma de engenharia Khatam al-Anbia, que "ganhou" mais de 750 contratos, "70 por cento dos quais relacionados com a indústria militar", mas também com as do petróleo e do gás. Além destas empresas "oficiais", os Guardas estarão ainda envolvidos em redes de contrabando de tabaco e bebidas alcoólicas (produtos que posteriormente hão-de confiscar nas suas rusgas), graças ao controlo de vários portos.
Divisões internasApesar do enriquecimento ilícito de muitos Guardas, com "villas no mar Cáspio e contas bancárias na Suíça", a população em geral parece ainda não ter tomado consciência da crescente corrupção, estimam diplomatas com passagem por Teerão. Nafisi admite, porém, que o controlo absoluto da economia poderá agravar a "fraccionalização interna" na instituição.Os pasdaran "não são um corpo monolítico", avisa o académico. "Eles têm os seus próprios reformistas e, nas fileiras médias, há numerosos dissidentes que podem até simpatizar com o povo." Exemplos de divisões: nas eleições de 2005, grande parte dos Guardas votou no "pragmático" ex-comandante Mohammad Baqer Qalibaf, actual presidente da Câmara de Teerão, e não no ultraconservador Ahmadinejad. Em 1994, durante distúrbios étnicos na cidade de Qazvin, os pasdaran locais recusaram disparar sobre amotinados desarmados, obrigando ao envio de unidades exteriores para neutralizar a rebelião.
"É importante notar que os Guardas emergiram das forças rasas que defenderam o Irão contra a invasão de Saddam Hussein", realçou Nafisi. "Ainda há um grande sentimento de patriotismo entre alguns membros dos Pasdaran, o que, com o tempo, poderá revelar-se essencial para uma mudança no Irão. Se os protestos continuarem, o que parece ser bastante provável, os Guardas poderão colocar-se ao lado deste crescente movimento de iranianos desiludidos, e mudar o rumo dos acontecimentos."
Inquirido sobre se foram os Pasdaran que, este ano, impediram um acordo em Genebra sobre o programa nuclear, Nafisi respondeu: "Sim, pode ter sido o caso, porque [Saeed] Jalili, o chefe do Conselho de Segurança Nacional [e principal negociador] era favorável" à proposta da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), que previa o enriquecimento do urânio iraniano pela Rússia e França, para dissipar os receios de que a República Islâmica planeia fabricar a bomba.
"Jalili é um homem de confiança de Khamenei e de Ahmadinejad", acentuou o professor. "Os Guardas têm interesse no desenvolvimento nuclear do Irão e são contra uma aproximação ao Ocidente, porque estando eles por detrás de um governo sombra e de uma economia paralela não beneficiarão, se houver transparência e abertura. Ora, relações com o Ocidente e sobretudo a adesão à Organização Mundial do Comércio exigem um certo nível de transparência."