O Natal nunca foi igualA consoada tornou-se mais "nacional"

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Crianças na noite de Natal numa reportagem de Portugal Século xx, joaquim vieira,Círculo de leitores

"Pela primeira vez um Natal outro - há quantos anos? Por quantos anos?", escrevia Vergílio Ferreira no Diário de Notícias na véspera do Natal de 1974. Mas não foi só a revolução que mudou o Natal dos portugueses. Embora pareça uma instituição imutável, o Natal foi sempre reflectindo as diferentes épocas. Fizemos uma viagem pelos jornais de Dezembro dos anos 40, 50, 60, 70 do século passado - décadas suficientemente próximas para algumas coisas ainda nos soarem familiares mas suficientemente distantes para nos surpreendermos com o que éramos. E éramos sempre (um pouco) diferentes a cada Natal. Antigamente havia tantas mesas de Natal quantas as zonas do país - no Alentejo comia-se carne de porco ou até cação de coentrada, no Norte o bacalhau. Depois com o tempo - e a influência da televisão -, conta Maria de Lourdes Modesto, a ceia de Natal dos portugueses foi ficando cada vez mais parecida.

Anos 40, o mundo está em guerra

Não eram tempos alegres, os do Natal de 1940. Com a Europa mergulhada na guerra, o ambiente em Portugal não podia ser de grande animação - mesmo sem o país estar directamente envolvido no conflito. Eram tempos de escassez, era preciso poupar, e qualquer sinal de ostentação no Natal só podia ser visto como de mau gosto.

Havia, apesar de tudo, uma feira de brinquedos na Praça Luís de Camões que era, na descrição do Século Ilustrado, "a grande atracção das crianças de Lisboa, das crianças pobres sobretudo". E esse espectáculo das crianças a ver "aquele mundo inverosímil dos bonecos que querem tanto como a um tesouro", todos a dez tostões, lançou o repórter numa prosa inspirada: "Os olhos dos pequenitos! São eles que nós vamos ver nas feiras de brinquedos para que uma vez por ano possamos vislumbrar a Felicidade nos olhos de alguém." E o culminar dramático: "Felicidade... aquela boneca que nos partiram..."

Dois anos antes, em 1938, o mesmo Século Ilustrado era ainda mais parco em reportagens natalícias, limitando-se o número de 24 de Dezembro a trazer um artigo, profusamente ilustrado, sobre os presépios de Portugal nos quais, nota o autor, nunca há neve. "O calor da estrela dos Magos derrete-a decerto, visto que os vegetais são feitos de frocos (sic) de seda verde com pontos cor de rosa arremedando urzes floridas."

A nota mais festiva é um anúncio de página inteira com aquele que se há-de tornar no grande concorrente desses presépios portugueses - um Pai Natal com sorriso de velhinho bondoso e uma gigantesca barba branca polvilhada de electrodomésticos, de torradeiras a radiadores, de secadores a fogões, com um conselho: "Pense no conforto do seu lar. Ele é o vosso Paraíso na Terra!..."

A década, já o dissemos, não permitia grandes euforias e o Natal era sobretudo ocasião de, à boa maneira do Estado Novo, mostrar caridade para com "os pobrezinhos". Havia, por exemplo, a Campanha de Camaradagem do Natal dos rapazes da Mocidade Portuguesa. "Merecem particular atenção os filiados mais necessitados", refere o Diário de Lisboa de 19 de Dezembro de 1943, "para o que têm sido recrutados todos os rapazes pobres da rua, como ardinas, engraxadores, etc. Estes rapazes, para além de bens materiais que lhes são concedidos, como refeição diária e fardamento, recebem uma acção educativa, pois são vigiados e acompanhados por dirigentes da Mocidade Portuguesa".

As notícias da guerra enchem os jornais. Churchill está um pouco melhor das suspeitas de pneumonia e preparam-se ataques aéreos mais violentos aos objectivos na Alemanha, mas os lisboetas distraem-se vendo no Tivoli Tyrone Power e Maureen O"Hara em O Pirata Negro (em Tecnicolor, claro), e os armazéns Lanalgo aproveitam a quadra festiva para fazer publicidade, lembrando que são o sítio onde fazem as compras "as senhoras de bom gosto e económicas".

A revista Eva de Natal faz o seu sorteio anual de vários prémios de valor, iniciativa que a transformou numa verdadeira instituição nacional. Havia 200 premiados, com brindes que iam de compras à escolha do contemplado no valor de 25 contos mais um bilhete inteiro da Lotaria do Natal até, para os últimos lugares, um romance de Stefan Zweig, passando por um casaco de peles, um vestido de malha de lã, caixas com seis pares de meias de seda ou um romance da Biblioteca da Mulher Moderna.

Os jornalistas - numa tendência que se há-de repetir ao longo das décadas - vão fazer reportagens para os sítios menos natalícios que consigam lembrar-se. Artur Portela, por exemplo, relata no Diário de Lisboa o tristíssimo Natal na "cidade dos ex-homens", a Penitenciária de Lisboa. Mas para compensar, nas páginas de publicidade, o Restaurante Miami promete um "Jantar à Americana" por 30 escudos e o Cristal "Bar-Dancing da moda" organiza às 23h de dia 24 uma "grande festa de Natal com o quinteto musical Murillo" e no dia 25 às 17h um "chá-elegante".

Na noite de Natal de 1943, não há ataques à Alemanha nem ataques alemães aos aliados.

Em 1945, os portugueses - e o mundo - festejam finalmente o primeiro Natal sem guerra. Os anunciantes descontraem. "Quer agradar à sua esposa? Ofereça-lhe um Electrolux. Aspiradores de pó, enceradoras, frigoríficos." E tornam-se mais ousados: "Quer dar uma prenda que nunca seja esquecida? Seja criança ou adulto, se ela gostar de Desenho, é porque tem habilidade. Oferece-lhe um curso de Desenho (método americano de estudo em casa). Será um alegre passatempo que poderá trazer uma bem paga profissão." As ourivesarias e relojoarias de Lisboa abrem as portas fora de horas - das 21h às 24h - e convidam o público a apreciar as suas montras com "as maiores novidades para a época de Natal".

As crianças pobres continuam no centro das atenções, seja com a "esposa do chefe de Estado, D. Maria do Carmo Fragoso Carmona", com um grande chapéu na cabeça, a distribuir vestuário recolhido pela secção feminina da Liga dos Combatentes, seja com as mais variadas instituições a fazerem donativos. E se Madrid, noticiava o Diário de Notícias, estava sem luz eléctrica por causa da seca, Portugal não parecia padecer do mesmo problema, e o Teatro Variedades enchia-se de "um grande contingente de pessoal de palmo e meio" que marcava a sua presença "com uma chilreada encantadora" para assistir a uma festa com "sessão de variedades com elementos das emissões recreativas do Rádio Clube Português sob a animada e proficiente direcção de José de Oliveira Cosme".

Havia vontade de celebrar. Lisboa entusiasmava-se com o combate de boxe que na noite de Natal na praça de Algés iria pôr frente a frente Marcel Cerdan, marido da cantora Edith Piaf, e "o vigoroso campeão da Catalunha, Jose Ferrer". E, no Coliseu, o público emocionava-se com o "número sensacional de arrojo" em que o Homem-Pássaro saltava "da cúpula para a pista". Sinal do regresso do optimismo é o anúncio que a Casa da Sorte faz aos seus agentes e revendedores na província de que "já não é possível fornecer-lhes qualquer lotaria para a extracção de Natal porque já não tem em quantidade suficiente".

Um acontecimento, surgido pela primeira vez em 1944, começava já a revelar-se como a grande instituição que viria a ser. A iniciativa era do Diário de Notícias, e este não deixava os créditos por mãos alheias. "Dentro de sete dias", anunciava a 18 de Dezembro de 45, "o Natal dos Hospitais". E prosseguia: "São 5000 doentes! Cinco mil enfermos agarrados à infelicidade de pertinaz doença, desprotegidos, vivendo - quantos deles? - horas de cruciante amargura que mais se acentua e avulta nesta quadra festiva do Natal [...]. Mas o Diário de Notícias pensou neles, e com o Diário de Notícias, os artistas portugueses de coração." E, ao lado, a já longa lista do "quadro de honra" dos artistas que aceitaram participar, para "alegremente levar à cabeceira de cada enfermo um pouco da sua arte". Subitamente, no dia 18, abate-se sobre Lisboa um violento temporal, precisamente na véspera do início do concurso das montras de Natal promovido pelo Secretariado Nacional da Informação. Dois dias depois, o mau tempo obriga a adiar a exposição nocturna das ourivesarias e relojoarias, prejudicando o negócios num dos sectores com mais procura nesta época.

Mas nada disto afasta as pessoas das festas de Natal. A União dos Grémios da Indústria Hoteleira informa que a Intendência Geral dos Abastecimentos autorizou o serviço de refeições nas noites de 24 para 25 e de 1 para 2 de Janeiro, assim como de ceias na noite de 31 para 1 - a autorização abrange sobremesas com doces "salvo doce de ovos e chantilly".

O Natal dos Hospitais realiza-se com sucesso, mas no dia 25 o Diário de Notícias lembra em editorial que a realidade é mais dura: "Este é o primeiro Natal depois da guerra. [...] Na fornalha dos ódios crepitam ainda as paixões. Magoado e inquieto, o Pai Natal despejou nas nossas chaminés a sua saca de brinquedos. [...] Mas parecia receoso, como se ouvisse ainda, por entre os tiros que arrasam cidades, os gritos das crianças vítimas da guerra."

Anos 50, o mundo está mais optimista

Não é só na América que a década de 50 é a das famílias felizes. No seu número de Natal de 1950 o Século Ilustrado mostra, numa fotorreportagem, "o Natal de um operário português". Ficamos a saber que Alfredo Albino Domingues "no trabalho mantém sempre este aspecto sorridente" com que o vemos a pintar uma porta. Descobrimos que ao domingo a família sobe a um dos miradouros da cidade e que "D. Dores Domingues compra flores para alegrar a casa de jantar", enquanto os filhos "Carmen e Carlos Alberto diante da montra pensam numa prenda para os paizinhos" e Alfredo compra um bom vinho do Porto para beber depois do "rico peru" que vão comer à ceia.

O Natal era a altura em que os perus desciam à cidade - e isto aconteceu até aos anos 70. Os vendedores traziam-nos em grupos, fazendo-os avançar por cenários improváveis como os prédios modernos das Avenidas Novas de Lisboa. ""Merca o casal de perus!" Foi-se o pregão mas não morreu de todo o velho uso da venda nas ruas dos inditosos bichos", comentava o Século Ilustrado numa fotorreportagem, em 1949, sobre as transformações na cidade nas vésperas de Natal: um Pai Natal magrinho junto a uma menina sorridente; os "diligentes funcionários camarários que nos livram a casa do que é inútil" e que, tal como os limpa-chaminés, iam nesta época bater à porta das pessoas a pedir uma lembrança; a venda de pinheiros, e o muito concorrido mercado de brinquedos do Camões.

A situação económica melhora. Aparecem nos jornais anúncios a voos das grandes companhias aéreas internacionais para a Suíça e Alemanha, ou até América do Sul e Próximo Oriente. Faz-se publicidade às máquinas fotográficas Kodak, a aspiradores, rádios, electrodomésticos. O jornal Mundo Desportivo promove um concurso que tem como primeiro prémio uma Lambretta. E o regime decide eleger a "rapariga modelo". Noticia o DN: "O aspecto inteiramente inédito, a objectividade e o elevado sentido moral do questionário relativo ao Concurso Internacional da Rapariga Modelo e ainda a circunstância de proporcionar singular oportunidade de exteriorização de opiniões, gostos e formas de ser e sentir despertaram excepcional interesse entre as raparigas portuguesas."

Os bodos aos pobres continuam, as meninas nas escolas competem para fazer o berço mais bonito para oferecer a uma família pobre que esteja à espera de mais um filho. E as grande empresas - a General Motors, a Kodak, a Shell, a Sacor, a Mobil Oil - oferecem festas de Natal aos filhos dos seus funcionários, todas elas com direito a notícia (e em muitos casos fotografia) nos jornais diários. Nas principais cidades do país, o Automóvel Clube de Portugal promove O Natal do Sinaleiro, em que os automobilistas deixam junto aos polícias sinaleiros prendas "traduzindo o reconhecimento pela meritória acção" daqueles.

A revista para rapazes O Cavaleiro Andante promove em grande o seu número especial de Natal com 100 páginas, por dez escudos, e com três prémios, entre os quais uma bicicleta motorizada. No cinema São Jorge, a tradicional árvore de Natal - outra das instituições natalícias de Lisboa - enche-se de brinquedos, alguns dos quais oferecidos por "quatro artistas de cinema de grande nomeada, Maureen o"Hara, Ray Milland, Ivonne Fourneau e Francis Lederer". Na árvore há já, enumera o DN, "uma grande e garrida tábua de baloiço, um carrossel que até parecia um pião a dar voltas, cavalos com rodas para fazer corridas; bicicletas e até uma delas igualzinha, em ponto pequeno, às Lambrettas que esfogueteiam por aí por toda a cidade".

Sinal do novo clima de desanuviamento na Europa, os jornais referem a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, "mais um passo para a União Europeia tão falada nos últimos tempos", e até a hipótese de ligações telefónicas directas entre as capitais. E a pintora portuguesa Maria Helena Vieira da Silva é eleita pelas francesas como uma das mulheres que mais se distinguiram em 1955.

Em 50, o Século Ilustrado traz um texto de Ramalho Ortigão sobre os presépios da sua infância, alguns com corda interior "fazendo piar passarinhos que voavam de um lado para o outro, mexiam as asas e davam bicadas nas fontes de vidro em que caía uma água também de vidro, fingida com um cilindro que andava à roda por efeito de misterioso mecanismo".

Publicando uma foto de um Pai Natal com uma criança ao colo, o jornal lembra que "o Pai Natal não é das tradições portuguesas", até porque "o nosso Natal envolve um sentido de religiosidade diferente". Mas, logo em seguida, rende-se à evidência de que "as crianças vão adorando o Pai Natal em todo o Mundo, porque é ele, afinal, quem traz os presentes do Menino Jesus e os depõe no sapatinho na chaminé".

Anos 60, o mundo acelerou

O nível de vida dos portugueses ia subindo gradualmente, mas nos anos 60 muitas famílias ainda podiam ser descritas como "remediadas". O dinheiro "ia dando", mas para um dia "um bocadinho melhor" era preciso fazer algumas economias. Não é por acaso que em 1960 surge o Cabaz do Natal, uma iniciativa do Clube das Donas de Casa, que se torna um enorme sucesso.

Nos primeiros meses do ano começava a aparecer nas revistas o anúncio ao cabaz, com o respectivo boletim de inscrição. Uma família sorridente - pai, mãe, avó e neta - olha encantada para o que vai receber no Natal por um custo de 650 escudos (pouco mais de três euros), pago em prestações mensais de 65 escudos: latas de Atum Toneca, Nesquik, tomate Guloso, Nescafé, Puré de Batata Maggi, bolachas Triunfo, vinho do Porto, brandy, espumante, vinho de mesa, uma "maravilhosa boneca", um "brinde para o marido" (será o saco de água quente que se vê na imagem?), brinquedos, leite creme, fruta líquida, chocolates, caramelos e drops, e muitas outras coisas.

O mundo começava a mudar e um dos factores dessa mudança era a televisão, que chegou a Portugal em 1957. O Natal dos Hospitais já conta com a colaboração da Radiotelevisão e da Philips portuguesa. Portugal parece mais aberto a esse mundo que lhe chega agora pela televisão. Em 65, o DN manda um enviado especial a Berlim para relatar, junto do "Muro da Vergonha", o Natal na cidade dividida. Do lado ocidental há repórteres da Europa ocidental, do outro lado há russos, jugoslavos, chineses. No dia de Natal, o jornal noticia, optimista, que "desde o Rio até Saigão a humanidade celebra o espírito de fraternidade e Amor".

A TAP paga um anúncio de página inteira na imprensa para noticiar a "chegada do primeiro quadri-reactor Boeing 707-320B depois de um voo sem escala de mais de 900 quilómetros entre Seattle e Lisboa". Começam a aparecer crianças na publicidade - "O pai vai gostar, é uma Philishave", e o Restaurante Macau, na Rua Barata Salgueiro em Lisboa, anuncia "autêntica cozinha chinesa", com vaca com legumes a 22 (11 cêntimos) escudos e chao min a 25.

Fala-se de astronautas e da morte de Marilyn (em 1962), Mary Poppins estreia-se no cinema - e o Diário de Lisboa escreve "Mary Poppins exige que sejamos dignos dela" - e Clif Richard e os Shadows regressam a Lisboa para um concerto no Império. A Valentim de Carvalho sugere às pessoas que ofereçam cheques-disco (o que salva muita gente das tradicionais caixinhas de lenços oferecidas pelas tias-avós), os bancos começam a fazer publicidade nos jornais e aconselham a que se pague as compras de Natal com cheques. A TAP propõe que se envie por via aérea as encomendas de Natal num anúncio com o Pai Natal a fazer de avião. A Mobil também põe o Pai Natal a voar, desta vez agarrado a uma bilha de gás - "rápido como um foguete com o maravilhoso sistema click".

O mundo parece girar mais depressa.

E, no entanto, Portugal continua a ser um país pobre e de emigrantes, que no Natal regressam para estar com as famílias. O ano de 1965 ficou marcado por uma enorme tragédia: perto de três dezenas de mortos e mais de uma centena de feridos no descarrilamento do Sud-Express. Os relatos na imprensa são carregados de drama: "Dos destroços impressionantes de uma das locomotivas esmagadas pelo espantoso choque, mãos piedosas e ensanguentadas descem o cadáver desfigurado de um dos ferroviários."

Perto do dia de Natal, os repórteres regressam a um dos seus temas favoritos: "A noite da Consoada dos que não a têm junto das famílias." O Diário de Lisboa vai ouvir o "avôzinho da noite", Luís da Silva Cardoso, guarda-nocturno com 82 anos (a trabalhar desde 1916) e com memórias de natais mais antigos nas ruas de Lisboa. "Às vezes era até uma noite divertida. Lembro-me dos bons tempos do restaurante Ramos e Silva, onde os Mascarenhas e outros boémios de um raio abriam tantas garrafas que os vinhos chegavam a correr no passeio."

E, sinal dos tempos, o jornal entrevista também uma senhora que trabalha na bilheteira do metropolitano e o marido, que é "chefe de segunda do metropolitano na Estação da Avenida", e que vão passar a noite de Natal a trabalhar.

Os tradicionalistas continuam, nos anos 60, a lutar contra o inevitável. "Os motivos tradicionais do Natal sofrem a competição dos símbolos nórdicos e a expansão do sentido utilitário", lamenta-se no Diário de Lisboa. Um dedo acusatório é apontado à árvore de Natal, "um dos motivos simbólicos que se espalham por toda a parte ofuscando velhas tradições populares". E tudo isto por culpa "do hábil e insinuante sentido utilitarista", que está a fazer esquecer "o presépio, uma das mais aliciantes sugestões do Natal português".

O debate ressurge todos os natais mas vem de longe - a historiadora Helena Matos recorda que já em 1936, quando o então ministro da Educação decide criar o Livro Único para a primeira classe, os autores de um dos livros mais populares, Romeu Pimenta e Domingos Evangelista, fazem alterações no seu livro e um dos textos que substituem é o relativo ao Natal. E se na primeira versão, do tempo da República, um menino manifestava a sua alegria porque no Natal tinha férias, o pai dava-lhe dinheiro para ele comprar o que quisesse, estreava roupa nova, comia doces e tinha uma árvore de Natal, na versão para o Estado Novo, a árvore de Natal desaparece e volta o presépio, não se fala em dinheiro nem em prendas, mas no Menino Jesus e no perdão e lembra-se que "ser humilde é a maior das virtudes".

Em 1969, o homem vai à Lua

Anos 70, o (nosso) mundo mudou. Se abrirmos os jornais de Dezembro de 1974, não temos dúvidas de que alguma coisa mudou em Portugal. Há circo, como em todos os natais, mas desta vez é o Circo do Povo, em frente à Fonte Luminosa, em Lisboa, e oferecido pelas Forças Armadas.

Também o Circo Mariano faz publicar um comunicado em que agradece "a todas as entidades civis e militares e ao público em geral" a simpatia com que foi recebido na capital. E o Casino do Estoril promete para a noite de réveillon "Lili Ivanova, grande vedeta da canção da Bulgária".

O tom das notícias é claramente diferente. Num dia próximo do Natal, o DN noticia, por exemplo, um comunicado do Ministério da Educação garantindo que "o Governo impedirá a sabotagem pedagógica", ou o início em Moscovo "da fase final das negociações para o acordo de comércio entre Portugal e a União Soviética".

E no meio destas notícias surge um texto que parece vir de outro tempo: "Está a despertar grande expectativa a nossa iniciativa O Natal dos Hospitais, que este ano conta com muitos motivos de interesse." Mas mesmo nessa velha instituição o ar dos tempos consegue penetrar: "O espectáculo terá como um dos seus apresentadores alguém que [...] se tornou, a partir da madrugada do 25 de Abril, uma espécie de "voz da revolução", como já foi chamado: Luís Filipe Costa. Por isso não quisemos deixar de o ter, pela primeira vez, neste Natal dos Hospitais que em múltiplos aspectos é, de facto, como se fosse a primeira vez que se organizasse."

A Philips portuguesa já andava atarefada a distribuir 800 televisores por todos os hospitais e prisões, e garantia que durante a transmissão do espectáculo, a partir do Hospital de S. José, manteria equipas de técnicos nos centros mais importantes, "prontos a acorrerem a fim de repararem qualquer deficiência de recepção".

Durante o espectáculo, o director do DN, José Ribeiro dos Santos, faz uma confissão. "Mas uma dúvida nos assaltou: no nosso actual momento justificar-se-ia ou não prolongar esta nossa tradição de trinta anos?" A dúvida não durou muito. Sim, o Natal dos Hospitais iria continuar, "apenas com a correcção de que, estando o país diferente, a apontar febre de novidade em todos os sectores, diferente também o DN, mais livre e atento a todas as realidades e nelas procurando intervir, se pretendeu que a festa do Natal dos Hospitais reflectisse igualmente, na sua alegria renovada, alguma coisa desse esforço geral da transformação".

A árvore de Natal do São Jorge continua a existir e a ser um sucesso, tendo, a 18 de Dezembro, recolhido já mais de 32 contos e 392 brinquedos que se destinam às crianças do antigo Albergue das Crianças Abandonadas, muito apropriadamente rebaptizado como Centro de Promoção Juvenil.

A revolução era ainda recente e os novos tempos coexistiam com os antigos. Se por um lado o Monumental anunciava o seu International Sexy Festival, com um "grandioso elenco de vedetas do strip mundial", como um espectáculo "totalmente inédito em Portugal", e se era lançado o "primeiro disco feminista português", por outro o DN continuava a ter a secção Da Mulher e do Lar, sugerindo aos maridos que no Natal oferecessem jóias às mulheres.

E se a Câmara de Lisboa oferecia "às mães atarefadas" a possibilidade de, quando fossem fazer compras na Baixa, deixarem "os seus petizes ao cuidado de jovens senhoras para o efeito contratadas" e que se encontravam "na passagem subterrânea do metro dos Restauradores" (a iniciativa, pelo seu "carácter inédito", não teve grande adesão), por outro lado os anúncios continuavam a promover "prendas para a dona de casa moderna", perguntando "o Marido e os Filhos chegam tarde? As refeições ficam frias?" e sugerindo um tabuleiro aquecido para resolver o problema.

Começam a surgir notícias sobre mais empresas que decidem pagar o subsídio de Natal - uma diferença substancial na qualidade de vida dos portugueses. Há mais dinheiro para brinquedos cada vez melhores, como a "Sindy, the doll you love to dress" com o seu "inacabável guarda-roupa, mobiliário, casa de banho com reservatório de água, noivo, automóvel, cavalo, amigas", ou a grande novidade das bonecas que mexem a boca para falar e dos bebés chorões que mamam.

A Eva de Natal continua a sair, mas tudo é mais feio, da capa aos anúncios, com a estética dos anos 70 a ganhar terreno. No número de 1977, aparecem jovens vedetas como Herman José e Rita Ribeiro, e os livros desaparecem da lista de prémios da revista. A directora Laura Martins Barros escreve no editorial que na noite de Natal não vai esquecer os que "não têm o Natal que deixaram em Angola, Moçambique ou Timor" e "os infelizes que talvez ainda se amontoem nas salas e corredores do aeroporto de Lisboa". E termina com uma nota de pessimismo: "Natal de 1977... Cada vez com mais amargura e incerteza!"

Mas os anos 80, mais despreocupados e optimistas, vinham a caminho, e o Natal seria diferente - outra vez. a

apc@publico.ptNaquele tempo "não havia Pai Natal, havia Menino Jesus". E Maria de Lourdes, no Alentejo dos anos 30, sonhava receber do Menino Jesus uma boneca de celulóide. Eram mais caras, ela sabia disso, mas pelo menos não se iam desfazer como a boneca de papelão à qual decidira um dia dar banho...

Maria de Lourdes cresceu e tornou-se conhecida de todos os portugueses como Maria de Lourdes Modesto, uma das maiores divulgadoras da cozinha tradicional portuguesa logo a partir dos primeiros anos em que a televisão começou a chegar à casa das pessoas, no final dos anos 50.

"O presépio era a coisa mais importante do Natal e os presentes, em qualquer classe social, não tinham nada a ver com o que existe agora", recorda Maria de Lourdes Modesto numa conversa com a Pública na sua casa na linha do Estoril. "Nós púnhamos um sapatinho na chaminé e recebíamos um pacote de rebuçados. Lembro-me de receber uma combinação, que antigamente as raparigas usavam e em que a minha mãe tinha amorosamente feito o picot. Regra geral estreava-se aquilo que havia para vestir durante o Inverno, casaquinhos de malha, tudo muito modesto."

Não era só o Pai Natal que não existia. Outra coisa estava completamente ausente do Natal alentejano nos anos 30 e 40: o bacalhau. "Lembro-me de a véspera de Natal ser de jejum, íamos à Missa do Galo e depois comia-se qualquer coisa doce. Havia carne de porco, porque no Alentejo matava-se o porco para haver carne no Natal." E - hesita um momento - talvez já houvesse nessa altura, "um ameaço de árvore de Natal", um pinheiro verdadeiro no qual se penduravam figuras de chocolate e anjinhos feitos com estampas que as meninas usavam também para decorar os cadernos.

Na manhã do dia 25 "era um alvoroço". As crianças acordavam e precipitavam-se para a chaminé para ver o que o Menino Jesus tinha deixado no sapatinho - podia ser aquele brinquedo com que tinham sonhado durante meses ou podia ser uma grande desilusão. "Fazia-se uma peça de teatro, as crianças cantavam. Houve um ano em que a peça ficou tão bonita que fomos mostrá-la ao bispo."

A memória que tem é a de que na sua infância o Natal era uma festa relativamente modesta, sobretudo se comparada com o Carnaval, altura em que as mulheres se juntavam para fazer "alguidares de fritos". Foi com o tempo que o Natal ganhou importância. Maria de Lourdes veio estudar para Lisboa e instalou-se num lar onde tinha como companheiras muitas raparigas minhotas. E descobriu um mundo que ignorava completamente, e que depois, já adulta, viria a estudar e a divulgar nos livros e programas de culinária.

Percebeu que o verdadeiro Natal tradicionalista era - já o dizia Ramalho Ortigão - o do Norte, o Natal minhoto. "Não há dúvida de que o grande Natal é do Porto para cima. Aí o bacalhau é rei, aparece cozido, aparece em bolinhos. E também o polvo guisado." Descobriu a palavra "consoada", que no seu Natal alentejano não se usava.

Hoje, diz, essa consoada minhota "influencia os hábitos alimentares do país inteiro". Por todo o Portugal começou a comer-se bacalhau, couves, rabanadas (mesmo que em muitos sítios se chame a estas "fatias douradas"). "Nós que tínhamos 20 ou 30 consoadas passámos a ter quase só uma."

Maria de Lourdes Modesto sente alguma responsabilidade nisso. Quando casou e passou a ter a sua casa, adoptou logo a consoada minhota e passou a divulgá-la, entusiasticamente, nos seus programas de televisão. "Quando chegava o Natal, eu fazia sempre o programa sobre isso, as mesas de Natal, e inspirava-me nessa consoada porque tem, de facto, um significado tão grande na cultura daquele povo que não há resistência possível."

No seu livro Festas e Comeres do Povo Português, lá vem a descrição dessa consoada "exuberante": bacalhau cozido com batatas, cenouras e couves tronchas cozidas, regadas com azeite e vinagre. E, para sobremesa, aletria, leite creme, mexidos, rabanadas e codornos (pêros muito duros) mergulhados em vinho americano ou verde tinto. Come-se na cozinha, mesmo nas casas com grandes salas de jantar.

O bacalhau conseguiu penetrar até em tradições profundamente arreigadas como a do Natal de Castelo de Vide, onde o rei era o cação de coentrada, diz Maria de Lourdes Modesto. Dia 25 é dia de peru, primeiro a canja, depois o peru assado no forno e, finalmente os doces, as farófias, a lampreia de ovos, os morgados, os sonhos.

Lisboa parece ter contribuído para esta mesa de Natal cada vez mais comum a todo o país com o... bolo-rei. Este chegou à capital em 1869, através da Confeitaria Nacional, na Rua da Betesga. Terá sido, escreve Maria de Lourdes Modesto no seu livro, Baltasar Rodrigues Castanheiro Júnior, o filho do fundador, que trouxe de Paris a receita do bolo-rei que "era feito por um mestre confeiteiro, o Gregório, que também veio de Paris".

O bolo terá sido momentaneamente vítima da política, quando, depois do fim da monarquia e com a instauração da República, alguns defenderam que ele teria de acabar. "Em face disto, o que fizeram os industriais de confeitara? Partindo do princípio de que negócio é negócio e política é política, seguiram naturalmente a segunda via, ou seja, continuaram a fabricar o bolo-rei mas sob outra designação."

Houve quem lhe chamasse "ex-bolo-rei", ou quem lhe chamasse "bolo de Natal" e "bolo de Ano Novo". O que sabemos hoje é que o bolo sobreviveu a esta crise e recuperou o seu nome. Maria de Lourdes Modesto não é uma grande entusiasta, mas reconhece-lhe a vitória. "Não lhe posso negar a importância que tem no Natal. Já faz parte das nossas tradições."

O bolo-rei espalhou-se pelo país - tal como o bacalhau. E o Natal dos portugueses é, à mesa, cada vez mais parecido. "A televisão teve uma importância muito grande nisso, como em todos os nossos hábitos", diz Maria de Lourdes Modesto. "E relativamente à alteração das tradições alimentares também faço um mea culpa porque, afinal, todos os anos me socorria da consoada minhota." a

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