Duas crises, o mesmo
Não há duas crises iguais. Mas todas acabam por ser medidas com um único número - o da taxa de desemprego. Desde o início do ano, os portugueses têm sido acordados com notícias de fecho de empresas e de sucessivos recordes de um problema que atinge agora quase 700 mil pessoas. Mas já houve uma crise quase tão séria como a actual. Foi há 25 anos e pouco se fala dela
A previsão era esperada. O Eurostat apenas se antecipou, esta semana, ao Instituto Nacional de Estatística (INE) e estimou que a taxa de desemprego em Portugal se situou nos 10,2 por cento em Outubro passado. Um dos valores mais elevados de sempre. Mas não inédito.
Em 1983-85, Portugal viveu uma crise grave que obrigou a um pedido de ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI). A "factura" foi pesada. Segundo os números do INE, atingiu-se em 1985 uma taxa de desemprego em sentido lato de 10,4 por cento (valor que corresponderia actualmente a 11,7). Mais de 373 mil famílias afectadas, um sétimo delas com dois desocupados no agregado. Um milhão de pessoas entre desempregados ou trabalhadores com salários em atraso, alertava então a CGTP. Cerca de 125 milhões de contos de dívidas das empresas à Segurança Social, uma quantia que hoje representaria 2100 milhões de euros. Como foi possível chegar aí?
A década de 70 não começara bem. Em 1973, surgiu o primeiro choque petrolífero, um aumento vertiginoso dos preços do petróleo provocado pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) em protesto pelo apoio dos Estados Unidos à vitória israelita na guerra de Yom Kippur. Em Portugal, a subida da inflação somou-se aos efeitos da explosão social após o 25 de Abril. Tudo se traduziu num desequilíbrio das contas externas que obrigou ao primeiro acordo com o FMI, em Maio de 1978. Mas não sem um custo social: cortes nos salários reais, agravamento do desemprego, quebra do investimento e do consumo privado.
Apesar de tudo, o PIB cresceu (3,4 por cento em 1978), graças à desvalorização do escudo, que impulsionou as exportações. Em 1979, contudo, verificou-se um segundo choque petrolífero, após a revolução islâmica no Irão que depôs o Xá Reza Pahlavi. Os países mais industrializados travaram a economia para atenuar a inflação. Resultado: o PIB na OCDE pouco cresceu e as exportações portuguesas caíram.
Mas, como lembra o economista e ex-governador do Banco de Portugal José Silva Lopes, no seu livro A Economia Portuguesa desde 1960, em Portugal "a política económica foi oposta à que seria de esperar". Ao contrário dos restantes países da OCDE, Portugal lançou-se em 1980 em políticas "claramente expansionistas": subiram os salários, as pensões, aumentou-se o investimento público, controlou-se a subida dos preços e até se revalorizou o escudo, para a inflação importada, mas reduzindo a competitividade das exportações.
Tudo, defende Silva Lopes, porque "1980 foi um ano de eleições" e "o objectivo dominante do programa posto em prática pelo então ministro das Finanças, Cavaco Silva, foi o de promover a vitória eleitoral do PSD/CDS (Aliança Democrática) que então estava no poder". Cavaco Silva, no seu livro de memórias políticas, afirmaria décadas mais tarde que foram Sá Carneiro e Morais Leitão (do CDS) a obrigá-lo a aplicar essas medidas eleitoralistas.
A AD ganhou as eleições, mas o reequilíbrio económico tardou. Mais gastos orçamentais, nova valorização do escudo, redução das exportações e a subida das importações levaram as contas externas ao vermelho. O défice das transacções correntes subiu aos 11,5 por cento do PIB e a dívida externa pulou dos 30 por cento do PIB em 1979 para 90 por cento em 1984. Os mercados financeiros internacionais torciam o nariz e Portugal teve de vender ouro.
Face aos problemas, o Governo AD caiu. E em Junho de 1983 nasceu o Governo do bloco central (PS/PSD), de Mário Soares e Mota Pinto, com Ernâni Lopes nas Finanças. Coube-lhe enviar a 9 de Setembro de 1983 a famosa carta de intenções ao FMI que, após as reportadas visitas da representante do Fundo, Teresa Ter-Minassian, desbloqueou os apoios necessários. A receita foi bruta.
Efeitos sociaisAntes mesmo do acordo com o FMI, o escudo já desvalorizara 12 por cento e estava a desvalorizar-se mais um por cento ao mês (para apoiar as exportações). Aumentaram-se os preços de bens essenciais - pão, óleos, rações, leite, açúcar, adubos e produtos petrolíferos. Cortou-se no investimento público, criou-se o imposto extraordinário (2,6 por cento sobre o 13.º mês, o "imposto sobre o subsídio de Natal"). Mais tarde, veio o congelamento de aumentos salariais dos funcionários públicos, em 1984, a contenção orçamental nas autarquias, mais apertos no investimento público, a subida das taxas de juro. E essa política prosseguiu ainda em 1984 e 1985.O aperto foi de tal ordem que teve efeitos sociais dramáticos. Os dados dos centros de emprego revelam que a entrada de novos desempregados se prolongou até 1984. Os fluxos mensais variaram entre 15 mil e 20 mil novos desempregados. A absorção do desemprego só se sentiu em 1986.
Segundo o INE, verificou-se entre 1983 e 1986 uma perda de 93 mil postos de trabalho. Mas nesse período, de acordo com a CGTP, apenas 13 a 16 por cento dos desempregados recebiam subsídio de desemprego. Em 1985, novas leis reduziram o universo das pessoas apoiadas e baixou-se o valor do próprio subsídio.
Se empresas fecharam, outras aproveitaram-se da crise. Num levantamento não exaustivo da CGTP, de Janeiro de 1985, em 11 distritos do país cem mil trabalhadores de 704 empresas tinham salários em atraso, numa dívida estimada de 15 milhões de contos (250 milhões de euros actuais). A dívida à Previdência elevou-se aos 125 milhões de contos. Os preços de bens essenciais subiram substancialmente, os passes sociais duplicaram, os bilhetes pré-comprados triplicaram, o preço da água triplicou, o do gás duplicou, a gasolina subiu 50 por cento e o gasóleo quase duplicou. Foram reduzidas as comparticipações em medicamentos. Os salários e as pensões perderam poder de compra. Foi o tempo em que apareceram nas manifestações as famosas bandeiras negras da fome.
"Há dias em que o meu marido chega a casa e não tem que comer", contava aos jornalistas a mulher de um operário dos estaleiros da Parry & Son, em Almada, que recebia há oito meses menos de um terço do ordenado de 27,2 contos. "Quem mais sofre são as crianças. Não lhe posso comprar leite e o menino, que tem anemia, vai para a escola com uma pinga de chá."
Mário Soares nunca perdoou a Cavaco Silva o que se seguiu. Quando os primeiros sinais da melhoria económica se pressentiram, Cavaco Silvaganhou o PSD no Congresso da Figueira da Foz, em Maio de 1985, e rompeu o Bloco Central, provocando eleições. O PS perdeu quase um milhão de votos (de 2 milhões em 1983 para 1,2 milhões em 1985). E o PSD ganhou as eleições com 1,7 milhões de votos. Os anos seguintes foram um período dourado da conjuntura internacional. Folheando os jornais da época, não se tem a percepção do que passou pelo país. A crise aparece em curtas notícias. Era uma época em que havia dois canais públicos de televisão, as rádios não tinham sido abanadas pelo "estilo TSF". A informação económica era escassa. O ritmo da informação era mais lento e menos competitivo.
O outro lado do euroA crise económica actual explode hoje nos noticiários e parte da crise vem, também, do conhecimento que se tem dela. Desde a crise do sistema financeiro internacional desregulado, patente na ruptura dos empréstimos bancários subprime nos Estados Unidos (Fevereiro de 2007), tem sido um longo caminho. Ferido pelos subprime, o banco de investimento Lehmon Brothers faliu (Setembro de 2008) e exportou para a Europa a crise financeira, que contagiou a economia real europeia ao restringir as condições de crédito bancário. A crise instalou-se. Era uma questão de tempo até atingir Portugal.O Governo começou por negar essa realidade. Permitiram esse gesto o aparente controlo do défice orçamental - ainda que camuflado numa subida da dívida pública - e o "chapéu-de-chuva" que representa a moeda única europeia face à subida do défice da balança de transacções correntes com o exterior (ao nível já próximo do da crise de 1983-85).
Sem euro, a moeda nacional estaria em queda e Portugal em dificuldades para gerir a dívida externa. Tal como em 1983. Mas o euro pode ter tido igualmente um lado perverso. Segundo economistas como João Ferreira do Amaral, o Governo Guterres aceitou - aquando da criação do euro em 1999 - um valor muito elevado do escudo em proporção às outras moedas. E isso, aliado a uma agressiva globalização, pode estar na base da quebra de competitividade externa de Portugal e, desde aí, do magro crescimento económico nacional, abaixo do europeu.
Em 2008, a situação agravou-se com a quebra de encomendas internacionais. As exportações começaram a cair e contagiaram a produção nacional. A partir da segunda metade de 2008 e sobretudo desde o início de 2009, os centros de emprego começam a encher-se, a um ritmo mensal entre 60 mil e 70 mil pessoas (quase quatro vezes o fluxo de 1983-85). Os fechos de empresas sucedem-se e as reportagens mostram a cara do problema. Cada português começou a sentir o "cerco" ao conhecer à sua volta cada vez mais pessoas "tocadas" pela falta de trabalho. Espera-se que o INE confirme uma taxa oficial de desemprego superior a dez por cento já no final do ano, mas a absorção será mais lenta do que a verificada na crise de 1983-85.
Duas crises, o mesmo desemprego. Na sua base, uma fragilidade externa de um pequeno país que não resolveu os seus problemas estruturais em 25 anos. Fila para lugar em boutique de roupa, em Lisboa, em 1985; foto do livro Portugal Século XXI (1980-1990), Círculo de LeitoresAssembleia de credores da Qimonda, em Junho deste ano, numa altura em que tinham sido despedidas 600 pessoas e colocadas 800 no regime de lay-off
Assembleia de credores da Quimonda, em Junho deste ano