O Evangelho segundo Samuelvis

Foto
Em “Não Lhe Tocava” Samuel faz de Elvis, Variações, Tom Waits, Prince e o que mais lhe dá na cabeça; é um vaqueiro urbano que gosta de ser parolo e “cool”

Samuel Úria marca o encontro para domingo às nove da manhã, não por ser um hiperprofissional com uma multinacional por trás e um dia completo de entrevistas pela frente, mas porque é a essa hora que o seu domingo começa. No entanto, tem mesmo disco para promover, "Nem Lhe Tocava", o seu primeiro oficial depois de uma série de CD-R e concertos que o tornaram o segredo mais guardado da canção portuguesa.

Por tudo o que se tinha visto dele, esperava-se um disco de baladeiro, de vaqueiro urbano. Mas "Nem Lhe Tocava" é tudo mais isso, com realce em "tudo": Úria faz de Elvis, Tom Waits, Prince, Variações, Vitorino, muda de pele mantendo sempre a cara. Não é mais Samuel Úria: é Samuelvis. E como Samuelvis não esqueceu o pecado, o motor da música pop. Acorda cedo aos domingos para estudar o pecado e é por isso que, a ter de fazer uma entrevista para promover o disco, a faz a estas horas, neste dia: porque é baptista e o seu domingo é consagrado à Igreja e à família.

Já se referiu a palavra "baptista" em relação aos membros da editora Flor Caveira inúmeras vezes, mas ninguém de fora se deu ao trabalho de ir verificar como é que a fé se reflecte na música e personalidade destes músicos. Por isso, em vez de o acompanharmos numa noite de pecado, acompanhámo-lo numa manhã de redenção e numa tarde de família, para descobrir como estas o levaram a escrever aquele que é, ao lado do disco de João Coração, o melhor disco português do ano.

Trabalhos de casa

Às 9h30 da manhã de domingo, Úria estava dentro de uma sala da Igreja Baptista na Graça, para uma sessão aproximada daquilo que "para os miúdos católicos se chama catequese".

Estava de botas Doc Martens baixas, "jeans" estreitos com dobra para cima, "blazer" cinzento, camisa azul, patilhas, bigode aparado, cabelo curto com popa entre a de Joe Strummer e a de Elvis e perfume.

Parecia um funcionário público resignado a rebelar-se aos fins-de-semana graças a um visual "proto-rockabilly", distante do tipo de botas americanas, camisola de cavas e cabelo comprido que conhecemos dos concertos. "Eu gosto de usar camisola de cavas", disse-nos mais tarde, "por causa da cultura de comer caracóis e usar palito." É um lado "piroso barra ‘cool'", que diz também ter: "Sou um gajo do interior, não posso ser ‘cool' a 100 por cento."

Há umas dez pessoas na sala e é nítido que se conhecem bem. Chamam a si próprios alunos, mas alguns não fizeram os trabalhos de casa: deveriam ter lido os pontos 3, 4 e 5, que andam a relacionar com o Salmo 103. "Este é um texto difícil de digerir", diz a professora liceal que lidera os trabalhos.

Os baptistas não se limitam a ler. A dada altura, como forma empírica de pensar as palavras de Calvino, fazem um jogo: têm de imaginar que acabaram de conhecer um desconhecido com quem iniciaram longa conversa. Nessa conversa contam dez coisas acerca de si próprios, dez coisas que sejam verdade. Têm de escrever essas dez coisas numa lista.

Os itens de Úria, reparamos, são muito pequenos e precisos, como a sua escrita. É notório que pondera bem cada palavra.

A professora diz com o seu sorriso matreiro: "Desculpem se isto é indigesto ao domingo da manhã." Passam a fazer uma espécie de estatística do que os membros do grupo de estudo colocaram na sua lista: os homens puseram pormenores políticos; ninguém pôs económicos; sociais, todos puseram; quase ninguém pôs nada religioso.

Discutem os seus itens aos olhos de Calvino. Uma senhora diz: "O Calvino tem razão, mas acho que não precisamos de viver com essa culpa permanente sobre nós." Úria intervém para lembrar que a separação de Calvino entre homens e animais é uma visão do homem enquanto receptáculo moral. Ele tem a Bíblia no telemóvel e um lado de exegeta: vai constantemente ao telemóvel Bíblia à procura da citação exacta e para retirar as devidas ilações calvinistas.

Depois entra-se na parte pesada: a professora lembra que "as putas, para Cristo, estavam acima dos fariseus". Alerta para os pecados da omissão, do orgulho. E atira: "Se estivéssemos mais próximos do coração, provavelmente estávamos de joelhos." Não se passa por isto impune.

No fim dos trabalhos alguém diz: "Depois disto merecemos um café."

A resposta vem pronta, e em tom de brincadeira: "Não sei se merecemos." Talvez seja este humor que distingue baptistas de católicos - toda a "aula" decorreu num ambiente informal.

Sobem para o andar de cima, onde começa a "sessão de culto". Está longe de ser aquilo a que os católicos chamam igreja: o chão é de corticite, o tecto é falso com luz de néon, o vidro fosco que separa a igreja da rua mantém a primeira na penumbra. O palanque dos instrumentos, à esquerda do púlpito, está revestido a dourado em relevo, como se de ali viesse a luz. Há painéis de madeira a revestir a igreja, e todo o compartimento tem um certo ar de caserna. Não há uma única cruz. Não há vitrais. Colunatas. Nada.

Úria dirige os trabalhos porque "o pastor tem gripe A". Pode presumir-se que o hábito de subir ao púlpito lhe tenha dado à vontade no palco.

Fazem pedidos de comida para cabazes de Natal, para dar a famílias necessitadas. Pedem a Deus que os ilumine a responder às perguntas dos pequenos, que na escola encontram muitas dúvidas face ao que aprendem na Bíblia e o que os colegas lhes dizem.

Cantam o hino "Santo, santo, santo". É aqui que vem a música de Úria, deste Portugal fincado na América: esta versão de "Santo, santo, santo" é um R&B com laivos de gospel, entrecortado pelo choro dos bebés dos "irmãos". E é belíssimo. Estão todos no tom. Batem palmas para marcar o tempo. Uma mãe canta com um bebé ao colo: "Ele é exaltado, o Rei é exaltado para sempre." É a irmã de Úria.

No fim ninguém faz o sinal da cruz. Ninguém se ajoelha. O "pós-lúdio" é arrepiante, como uma balada gospel que Tom Waits escrevesse para Cash e acabasse por ficar instrumental, porque entretanto Cash morrera.

Influência americana

Estamos no restaurante do Monumental, onde aos domingos o casal Úria - Raquel é a mulher - almoça sempre, o que faz sentido, se pensarmos que são fanáticos de cinema.

Nascido em 1979, Samuel tem uma memória impressionante de infância. "Sou fixado no ano de 1986. Fui operado a uma apendicite, concluí a escola primária, começou a dar na TV os ‘Jovens Heróis de Shaolin', deu o México de 86." Sabe que teve a primeira TV a cores em 1983, uma Grundig vermelha, que 1983 foi o ano de O Tal Canal, lembra-se que teve o primeiro vídeo em 1984.

Neto do sapateiro Armelindo, cresceu numa zona rural, mas admite que tem o hábito de "tornar um bocado fábula as raízes rurais", porque na prática "não [foi] privado de nada". Em miúdo "via mesmo muita TV", pelo que quando começou a vir a Lisboa "com 14, 15 anos não havia desfasamento cultural por causa da TV".

Em seguida os Úrias levam-nos para sua casa, servem-nos um magnífico sumo de limão e ainda nos oferecem a receita.

Na pequena casa dos Úrias, Samuel tem um pequeno escritório só para si, que, imaginamos, seria do agrado de Tom Waits, o primeiro músico cuja discografia completou: uma panóplia de instrumentos musicais mistura-se com roupas atiradas para um canto, livros, discos, tralha sem ordem aparente.

Numa estante estão centenas de BD, de Frank Miller a Joe Sacco, passando por Jack Cole Sam Keith, Windson McKay. "Cresci com os ‘comics' americanos por uma questão de acessibilidade, porque eram formatos mais pequenos e mais baratos", conta. "Quando era puto, o meu sonho era fazer BD. Pelo menos até aos 16, 17 anos."

"A BD pôs-me em contacto com as traduções brasileiras, que põem menos barreiras à língua que os portugueses." Começamos a perceber como foi compondo o seu quadro lírico mental, quando nos diz que "a canção portuguesa dos anos 40, 50, 60 era mais pensada em termos de musicalidade portuguesa, do som da sílaba, o que depois se perdeu com a adaptação à força da língua ao pop-rock".

A influência americana estende-se a tudo. No cinema diz estar "há muitos anos ‘in awe' com John Ford: "Tem uma linguagem embrutecida, mas em termos estéticos aquilo é trabalhadíssimo." Gosta de Roselini, De Sica, Visconti, mas quando olhamos em volta os filmes que vemos são clássicos americanos: "Rio Bravo" (Hawks), "Relíquia Macabra" (Houston), "Young Mr. Lincoln" e "A Taberna do Irlandês" (Ford).

Toca guitarra durante uns instantes, numa dobro lindíssima: sai-lhe um blues em "slide" magnífico, mas recusa ser visto como virtuoso. "Tive uma banda jazz. Quando ouço as cassetes do que fazíamos, pergunto-me como é que conseguia tocar aquilo." Foi aí que decidiu que não seria o Steve Vai de Gouveia e resolveu fazer canções.

Quando se sentou a tocar libertou-se e quando nos pusemos a ouvir o disco ainda mais. Tínhamos ouvido em estúdio, antes das misturas e ele estava ansioso. Mas agora está calmo, apesar do peso que "Não Lhe Tocava" acarreta: a ideia de Úria "é com o disco conseguir pela primeira vez viver da música".

Úria é professor de Educação Visual em Santa Iria da Azóia, mas dá só 12 horas de aulas por semana, "o que deu tempo para acabar finalmente o disco". Uma das razões por que levou tanto tempo a editar: em seis anos teve seis casas e só há um conseguiu assentar em Lisboa. "Neste disco apeteceu-me aligeirar um pouco. Quis borrifar-me para o estilo."

Soa a "boutade", mas pensamos que é verdade quando escutamos "No cover". Ele atira: "É um bocado a ‘Leitaria Garrett' do Vitorino com um solo à Demmis Roussos." É a mais inóspita definição musical alguma vez proposta. Mas torna-se tudo mais "nonsense" quando diz: "Quero ver isto cantado pelo Clemente." Depois pelo meio descreve o seu canto como "Prince com catarro", diz que aqui imitou Variações, ali Dean Martin, e escangalha-se a rir com a sua imitação de Elvis.

A dada altura lembramo-nos que de manhã ele tinha lembrado a tarefa de Jesus: "Veio para trazer vida, fazer viver o que se tinha perdido."

"Não Lhe Tocava" é isso: fazer viver a música que tínhamos esquecido. Quando lhe pedimos uma definição do que faz, encolhe os ombros e diz: "Quero fazer músicas que se possam assobiar." 

Samuel Úria
Hotel Tivoli - Terraço. Hoje, às 21h15

Sugerir correcção
Comentar