Das certezas de Abril aos mistérios de Novembro

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A guerra colonial estava perdida. Isso era evidente para todos os militares portugueses que combatiam em África em 1974, nas vésperas do 25 de Abril. Mas parece não o ser para muita gente, ainda hoje. No seu livro, "Capitão de Abril, Capitão de Novembro", acabado de lançar pela Guerra e Paz, Rodrigo Sousa e Castro começa por aí. Ele, que foi um dos capitães de Abril, percebeu que Portugal estava a perder o combate contra os movimentos de libertação, e por isso começou a participar nas reuniões conspirativas contra o Governo. O mesmo aconteceu com os outros capitães. O problema dos decretos (que equiparavam os oficiais milicianos aos do quadro permanente) foi a causa imediata do movimento, derrubar o regime foi a consequência inevitável.

As "condições psicológicas dos capitães" é um conceito fundamental para Sousa e Castro. Quem não o entendeu nunca conseguiu ter uma palavra a dizer no processo revolucionário. Foi, por exemplo, o caso de António de Spínola, que teve a veleidade de tentar dominar os capitães. À primeira tentativa séria, foi obrigado a fugir para Espanha. As "condições psicológicas dos capitães" foram formadas na guerra colonial e consolidadas na "consciência de que tinham aberto as portas à liberdade".

Nos últimos anos, a guerra sofrera uma reviravolta dramática. "Tinha-se chegado a um impasse absolutamente determinante. A situação em alguns teatros de operações estava a assumir foros de grande gravidade", explica Sousa e Castro ao Ípsilon. "Só para falar do meu caso pessoal: eu tinha acabado de fazer 30 anos e já tinha duas comissões, em Angola e em Moçambique. E estava afecto a um grupo de oficiais que estava a apetrechar-se, com conhecimentos técnicos e até de língua francesa, para ir a França buscar sistemas de mísseis terra-ar. Mísseis, portanto, para combater eventuais agressões aéreas".

Este era o nível de ameaça, tanto em Angola como em Moçambique e na Guiné. "Tínhamos uma ameaça aérea sobre Bissau, depois de eles [PAIGC] terem anulado o poder aéreo português, através da utilização de mísseis anti-aéreos. Os guerrilheiros abateram uma série de aviões, e restringiram imenso o poder de manobra aérea português no teatro de operações da Guiné. Isto é uma coisa que as pessoas não sabem e nunca ninguém quis analisar".

A própria relação de forças no terreno tinha-se invertido. "A guerrilha tinha melhor armamento do que nós. Isto é um contra-senso. Segundo a doutrina militar, o exército clássico está mais bem equipado, mais bem armado e organizado do que a guerrilha. Quando se dá a inversão disto, passa-se a uma nova fase, em que passa a haver confrontações de tipo guerra regular. Na Guiné, havia zonas aonde as tropas portuguesas já não iam. A situação era dramática. Em Moçambique, agravava-se de forma espantosa. Portanto havia já, entre os oficiais do quadro permanente, uma consciência de que a guerra se estava a perder inexoravelmente. E depois havia um antecedente grave..."

Outro facto pouco reconhecido, ou pouco recordado: muitos militares da guerra de África já tinham combatido na Índia. Para Sousa e Castro, isso foi determinante para o eclodir do movimento dos capitães. "Tínhamos camaradas nossos no activo, tenentes-coronéis e coronéis, que tinham estado na guerra da Índia, tinham sido feitos prisioneiros, abandonados pelo Salazar e tratados como cobardes quando chegaram cá fora. Havia um conjunto de oficiais que nunca perdoou isto ao Salazar. Tinham um ódio surdo ao regime, apesar de serem, muitas vezes, de direita. É por isso que aquela frase que o Marcelo disse ao Spínola foi mortal: ‘É preferível uma derrota militar na Guiné do que conversações ou o reconhecimento do PAIGC'. Quando Spínola transmite isto ao Movimento dos Capitães, a obra estava feita".

Depois da tomada dos territórios de Goa, Damão e Diu pelas forças da União Indiana, Salazar abandonou os militares portugueses à sua sorte. Não os apoiou nem os deixou recuar, para depois fazer das Forças Armadas o bode expiatório. Para os capitães, tornava-se evidente que Marcelo Caetano se preparava para fazer o mesmo em África. Deixar que os militares perdessem a guerra, para depois os culpar. Daqui à determinação de fazer cair o regime foi um passo natural. Na maior parte dos casos, a consciência política dos protagonistas do golpe só nasceria mais tarde.

"Depois do 25 de Abril é que descobrimos muita coisa", admite Sousa e Castro. "Depois de o regime ter caído, tornou-se óbvio que tínhamos de descolonizar, democratizar o país e fazê-lo entrar na Europa". No entanto, meses depois da revolução, o projecto já se tinha tornado confuso em muitas cabeças. Não na de Sousa e Castro.

Questões em aberto

Os valores que o fizeram ter uma participação activa no planeamento e na concretização do golpe de 25 de Abril não se alteraram durante o PREC (Período Revolucionário Em Curso) e o Verão Quente de 1975. Sempre recusou o caos e a deriva esquerdista. Foi por essa razão que participou também no 25 de Novembro. Os contornos deste, porém, não são tão claros como os do 25 de Abril. Ainda hoje há mistérios por resolver na história da revolução dos moderados, planeada por Vasco Lourenço (no plano militar) e Melo Antunes (no plano político) e levada à prática por Ramalho Eanes.

Há várias questões em aberto. Em primeiro lugar, o papel do PCP. Terão os comunistas provocado a saída dos pára-quedistas que ocuparam as bases aéreas do país? Em segundo lugar, a origem da ordem concreta para a saída dos "páras". Otelo Saraiva de Carvalho? Alguém em nome dele? Depois, a participação da extrema-direita no golpe. Teriam sido levados à prática outros planos militares mais radicais, com a consequente reinstalação de uma ditadura de direita, caso o pretexto dos "páras" não tivesse levado ao contra-golpe do dia 25, com o beneplácito do Presidente da República? Por fim, e principalmente desde a publicação, há um ano, de um livro de Pires Veloso ("Vice-rei do Norte", ed. Âncora), que era, em 1975, comandante da Região Militar do Norte, permanecem dúvidas sobre o papel do Norte no 25 de Novembro e também sobre o papel do próprio Ramalho Eanes. Segundo Veloso, Eanes não terá tido participação alguma nas operações, tendo apenas sabido aproveitar-se posteriormente do êxito daquelas.

Sousa e Castro garante que esta teoria é um erro, e dedica várias páginas do seu livro a explicá-lo. "Nos últimos tempos, várias pessoas se têm reivindicado como protagonistas. O caso mais flagrante é o de Pires Veloso. Tem a ilusão de que é determinante na conduta militar do 25 de Novembro. Nada mais errado. Não o é a partir do momento em que a opção é a de ficar em Lisboa", diz-nos. De facto, nos meses anteriores, tinha-se discutido entre os moderados reunidos em torno do chamado "Documento dos Nove", redigido por Melo Antunes, a possibilidade de fugir para o Norte para, a partir daí, travar a luta contra os esquerdistas que constituíam a maioria das forças militares na capital. Prevendo essa estratégia, os líderes do PS, PSD e CDS chegaram a ir para o Porto. Mas a ideia foi recusada, principalmente por Vasco Lourenço, que viu nela o início de uma guerra civil. E a partir desse momento as forças de Pires Veloso perderam toda a importância. "As tropas que ele mandou para Lisboa tiveram um papel irrisório. Limitaram-se a vir render alguns homens que estavam em actividade há 40 ou 72 horas, mas numa altura em que a situação já estava totalmente controlada".

Dentro do 25 de Novembro

O papel determinante coube aos Comandos, chefiados por Jaime Neves, que por sua vez obedeceu a Ramalho Eanes, incumbido por Vasco Lourenço de elaborar o plano do contra-golpe. "Quando se ‘desmonta a feira' é o Ramalho Eanes que surge como herói, porque foi ele que comandou as operações. Isto apesar de estar abaixo, na cadeia de comando, do Vasco Lourenço, que era o comandante da Região Militar de Lisboa".

Para Sousa e Castro, estes factos são claros, não obstante todas as questões levantadas por Vasco Lourenço no livro que editou em Abril deste ano ("Do Interior da Revolução", ed. Âncora). Lourenço sublinha que Eanes era seu subordinado, e que lhe terá usurpado o protagonismo para se impor no plano político. No ano seguinte, com efeito, ganhava as eleições presidenciais.

Outro facto indesmentível é que foi Eanes quem travou Jaime Neves quando este quis "explorar o êxito" da operação, atacando as unidades tidas como afectas à esquerda. "Jaime Neves tentou fazer o que Schwarzkopf queria, na primeira guerra do Iraque: continuar até Bagdad. Disse ao Presidente da República, Costa Gomes, que os comandos não estavam satisfeitos. Havia nos comandos elementos de direita e até de extrema-direita. Muitos deles nunca viram com bons olhos a entrega das colónias ao inimigo. Tem a ver com a idiossincrasia das forças especiais. Claro que, depois do golpe, as tendências mais à direita tentaram tomar as suas posições". Posições que implicariam, no mínimo, a ilegalização do Partido Comunista, sob o pretexto de que teria sido ele a organizar o golpe militar esquerdista.

Segundo as informações recolhidas por Sousa e Castro, o PCP terá de facto estado na origem da saída dos "páras", ainda que o objectivo não tenha sido "fazer a revolução popular, ao estilo leninista". A ideia era repor o equilíbrio que desaparecera no Governo e no Conselho da Revolução desde a queda de Vasco Gonçalves. "Tinham a ilusão de que, exercendo uma pressão militar, conseguiriam recuperar algum do poder que tinham perdido".

Se era este o objectivo dos comunistas, a verdade é que no último momento recuaram. Talvez porque percebessem que iam perder, ou, segundo Sousa e Castro, para deixarem queimar os activistas da extrema esquerda, que não controlavam e que tinham assumido o controlo de todas as unidades militares afectas à esquerda. "Resolveram o problema dos elementos da chamada esquerda revolucionária. Algumas dessas pessoas, aliás, são hoje muito bem comportadas e andam por aí no Governo e nas empresas públicas".

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