ROTEIRO DE DISCOS

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Tiago Sousa: música de respiração interior, mas que não se fecha na sua redoma Vera Marmelo
Pop

No interior do piano de Tiago Sousa

O piano de Tiago Sousa e subtis apontamentos de percussão de João Correia em peças impressionistas que respiram liberdade.

Vítor Belanciano

Tiago Sousa & João Correia

Insónia

Ed. e distri. Humming Conch

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Ao longo do seu percurso Tiago Sousa tem dado mostras de não se reger por convenções estilísticas. À frente da editora Merzbau impulsionou projectos portugueses tão diferentes como Noiserv, B Fachada, Lobster ou Frango, oriundos de facções como a pop, o rock ruidoso ou o experimentalismo. Mas mesmo sabendo-se isso, "Insónia", o seu terceiro álbum, lançado na editora alemã Humming Conch, acaba por surpreender.

Possui o tipo de espontaneidade que encontramos nas primeiras obras, apesar de já ser o seu terceiro disco. Não é álbum facilmente categorizável. São sete peças instrumentais impressionistas, construídas maioritariamente por Tiago Sousa a partir do piano (toca também guitarra acústica e órgão), rodeado ocasionalmente pelos discretos, mas influentes, apontamentos percussivos de João Correia e pelo clarinete de Ricardo Ribeiro.

Há alusões à música clássica contemporânea, ao jazz ou, mais remotamente, a formatos pop mais livres, mas o que sobressai no conjunto, independentemente das escolas onde se inspira é o apuro formal na construção dos ambientes nocturnos e o libertar de melodias emocionantes tocadas com enorme simplicidade.

É música de respiração interior, mas que não se fecha na sua redoma, procurando o espaço de partilha. Às vezes parece que Tiago acaricia as notas, espaçadamente, aspirando o silêncio, desenhando-o plasticamente como em "Movimento", "Pêndulo" ou "Insónia".

Em "Folha caduca", "Passos" ou "Surrealismo impressionista" há mais laboratório, desejo de experiência, sem nunca serem abandonadas as sequências harmónicas, os contrapontos melódicos, um rasto de formas fluidas e de sons crepitando e projectando uma geografia intima onde apetece permanecer.A ode a Nova Iorque de Sufjan Stevens

Sufjan Stevens

The BQE

Ashmatic Kitty; distri. Popstock

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Sufjan Stevens / Osso

Run Rabbit Run

Ashmatic Kitty; distri. Popstock

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Há um mês, Sufjan Stevens confessou-se desmotivado. Que não valia a pena, que tinha a cabeça sempre cheia de grandes projectos conceptuais de valor futuro discutível. Mais: disse que a ideia de criar um álbum por estado americano, obra que, julgávamos, se iniciara com "Michigan" e com o famoso "Illinoise", não passava de piada que ultrapassara o "comediante". Torna-se portanto apropriado que, enquanto o homem orquestra-pop se debate com uma crise existencial, nos cheguem às mãos dois projectos conceptuais de sua própria autoria - enquanto não serena quanto ao que se seguirá, olhamos para o que estava a ser a mente criativa de Sufjan antes de ceder à dúvida.

Pois bem, estava a ser "The BQE", filme musical comissariado pela Brooklyn Academy Of Music e estreado em 2007 para coincidir com o 25º aniversário do Next Wave Festival. Curiosamente, podia ser o terceiro passo da tal viagem pelos 52 estados americanos. Filmado em película de 8 e 16 milímetros, atravessa a Brooklyn-Queens Expressway, autoestrada construída entre as décadas de 30 e 60 que esventra e revela os bairros que liga entre si.

A edição em CD e DVD leva-nos a pressupor que a música sobrevive independente da imagem, contudo "The BQE" apenas existe verdadeiramente enquanto obra de som e imagem.

No ecrã tripartido, sucedem-se os arranha-céus e as casas vitorianas. Vemos Jay-Z em painéis publicitários e o logótipo do McDonalds. O trânsito corre incessante, o graffiti decora a paisagem e a música, cuja dinâmica casa admiravelmente com o ritmo da montagem, voga entre a inocência desencantada e uma qualidade celestial contaminada de fantasmagorias.

Aquilo que surge a início como documento realista transforma-se numa outra coisa: há coloridas dançarinas de hula-hoop a imiscuir-se entre a imponente e ferrugenta decadência da arquitectura, há electrónica divagante que explode quanto a noite chega e os faróis e candeeiros se transformam em néons luzindo sem cessar - e depois, quando regressa esta música que alude a Phillip Glass ou aos Penguin Cafe Orchestra, que requebra em dissonâncias de Stockhausen antes de arriscar um swing disforme, já outra coisa aquilo que vemos: o ecrã tripartido torna-se um só em colagens caleidoscópicas, torna-se um e as vias rodoviárias ganham direcções impossíveis, qual invenção de M.S. Escher.

Sufjan Stevens, no texto que acompanha a edição CD/DVD de "The BQE" - também há um livro de BD disponível a quem o quiser encomendar -, não esconde o seu desdém pela ideia de progresso que a decrépita via representa. Talvez por isso tenha preferido fazer do filme uma (apesar da ferrugem, ou por ela) romântica ode a Nova Iorque.

Paralelamente a "The BQE" é editado "Run Rabbit Run", regravação de "Enjoy Your Rabbit", o seu segundo álbum a solo (Stevens em modo electrónico), pelo quarteto de cordas Osso, responsável pelas orquestrações de, entre outros, "Illinoise". Digamos que é a ode dos Osso à música de Sufjan Stevens.

Nele, o convulsivo tricotar electrónico transforma-se num jogo de forças entre melodia e dissonância, entre zumbidos tétricos e pizzicatos delicados. Com arranjos a cargo de Nico Muhly, Michael Atkinson, Rob Moose ou Maxim Moston, "Run Rabbit Run" caminha entre drones minimalistas de elevado teor zen e uma tensão militante.

Sem deslumbrar, é uma releitura interessante da obra de 2001 de um homem que, em 2009, não sabe o que há-de fazer da vida. ?Mário Lopes

Mestiçagem e moder-nidade

Música judia e flamenco. E irreverência.

Luís Maio

Yasmin Levy

Sentir

Ed. e distri. Harmonia Mundi

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Yasmin Levy é fotogénica, tem voz radiosa e é hoje (aos 34 anos) a cantora mais irreverente da música judia de raiz tradicional. Nasceu no seio de uma família turca fixada em Israel por ocasião da criação do estado judeu. O pai, que morreu quando ela tinha um ano, era etnólogo e o maior especialista em cultura ladina, própria à comunidade sefardita expulsa de Espanha em 1492. Ela aprendeu a cantar em casa como a mãe (que, estranhamente, o pai proibira de cantar em público, desde o dia do casamento) e ao longo de três álbuns empenhou-se em renovar a música ladina, secularmente cantada a capella, fornecendo-lhe instrumentação e conexões inéditas com o jazz e a música oriental. Fez o que era preciso para dar vida a uma tradição moribunda (o ladino só é hoje falado por 150 mil almas, quase todas com mais de 60 anos), mesmo assim foi duramente criticada pelos tradicionalistas.

O tom das censuras só poderá crescer, agora que lança um álbum de fusão do ladino com o flamenco. Trata-se de restabelecer um elo perdido há mais de 500 anos, mas "Sentir" está longe de se reduzir a reconstituição histórica. A modernidade que domina o registo tem muito a ver com a escolha de parceiros musicais, a começar por Javier Limón, o produtor sensação do flamenco actual, o mesmo que se associa aos recentes sucessos de Buika e Diego El Cigala. A sua opção foi casar Yasmin com um estilo de flamenco intimista e depurado, centrado em guitarras delicadas e num piano jazzístico (a lembrar o fraseado redondo de Chick Corea), aqui e ali modulado por sopros e percussões orientais.

É o terreno ideal para o exercício de mestiçagem protagonizado pela cantora, que tema após tema se debate entre a matriz cerebral das suas raízes e a paixão sensual do flamenco, até "romper a voz" e assumir plenamente a chama do cante jondo. A versão de "Hallelujah" de Leonard Cohen sob a forma de lamento com cantos litúrgicos ao fundo é a imagem de marca da sofisticação eclética que preside a "Sentir".

Pop "italian style"

Clássicos do pós-guerra inspiram nova colecção de postais turísticos de Itália. Vem acompanhada com uma receita de penne "al brucio". Luís Maio

Vários

Itália

Putumayo, distri. Leve Music

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A Putumayo é uma editora norte-americana especializada na edição de compilações de world music, imediatamente reconhecíveis pelas sedutoras ilustrações que lhes servem de capa. Um dos seus maiores sucessos foi "Italian Café", retrospectiva talhada segundo um certo figurino de canção italiana, ligeira, jazzística e boémia. Um estilo de canção que começou por fazer época na Itália optimista dos anos 50, mas que tem vindo a ser retomado por novas gerações, ao mesmo tempo que se tornou no cliché musical de excelência de Itália além fronteiras. Daí o êxito da colectânea editada em 2005, daí também esta sequela, que não duplica mas prolonga a selecção anterior, colocando um maior acento nos actuais herdeiros da pop italiana.

A quintessência do género é ilustrada na sua vertente mais romântica/jazzy pelo ébrio "Balla com me" de Giorgio, irmão do famoso Paulo Conte, enquanto o lado mais castiço é exemplificado pelo clássico brincalhão "L"Americano", aqui na voz do rockeiro arrependido Marco Calliari. Conte já estava na compilação anterior, "L"Americano" também, mas noutra versão. O que é novo nesta colecção são os temas que denotam clara inflexão para o trovadorismo e as linguagens de fusão. Ou, o que vai dar ao mesmo, que testemunham um regresso da pop clássica à italiana através desses idiomas mais híbridos e contemporâneos.

De uma maneira ou de outra é toda uma nova rede de cruzamentos que produz resultados raramente brilhantes, mas quase sempre sedutores, incluindo a incursão na jazz cigano dos Rossomalpelo, a inflexão para o tango de Alessandro Pitoni, ou o retro falsamente popularucho de Lu Colombo e Maurizio Geri Swingtet. Mais para o final há uma canção de amigo por Lino Straulino e uma peça ambiental de Rocco Calliari que têm pouco ou nada a ver com pop "italian style". Constituem, porém, variações que refrescam o ramalhete, antes do exuberante final com o felliniano "Me so" mbriacato" de Alessandro Mannarino. Será o tipo de compilação que não serve os especialistas em pop italiana, mas nada soará tão bem aos ouvidos dos turistas musicais. A não ser, claro, a receita de penne "al brucio", oferecida em jeito de acompanhamento pelo chefe do restaurante Felidia de Nova Iorque.

Times New Viking

Born Again Revisited

Matador; distri. Popstock

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Até "Rip It Off", o seu penúltimo disco, os álbuns dos Times New Viking eram manifestos entusiasmantes, mas falhavam no estabelecer de uma empatia permanente. Com "Born Again Revisited", sem ceder um milímetro, essa barreira é destruída. Questão de pormenor: um afinar de agulhas que, mantendo a corrosão sónica e o lo-fi como ética de combate, nos acolhe como parceiros "conspirativos". Dizem eles, preciosismo técnico disparado com ironia, que, neste disco, o som foi melhorado em 25 por cento. Digamos então, sem ironia, que é o suficiente. Nos Times New Viking, as tentações pop dos Guided By Voices são aplicadas a hinos de desencanto ("No time, no hope"), as lições do kraut-rock são estilhaçadas em feed-back ("Little world"), os Sonic Youth tornam-se ícones de romantismo feroz e flashes de luz branca ganham os tons garridos de uma utopia de 1960 que se sabe inatingível - mas dançamos, apesar de tudo, e "Move to California", canção maior, é, por dois minutos e quarenta e dois segundos, tudo o que precisamos de ouvir este ano. Em "Born Again Revisited", os Times New Viking, banda marginal, são um ruído subterrâneo a assomar à superfície. Eram uma das bandas mais interessantes da vaga rock"n"roll lo-fi que vimos surgir no último par de anos. Agora são importantes. Definitivamente. M.L. Moritz Von Oswald Trio

Vertical Ascent

Honest Jons, distri. Flur

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Já o ouvimos inúmeras vezes, mesmo sem o sabermos. Figura da sombra, discreto, o alemão Moritz Von Oswald é um dos músicos de electrónica mais influentes do nosso tempo. De Herbert a Burial todos lhe devem um pouco. Através dos inúmeros projectos (editora Basic Channel e todas as suas ramificações e uma das entidades portrás de denominações como Maurizio ou Rhythm & Sound), ao longo das últimas duas décadas tem marcado as electrónicas, do tecno mais abstracto e afluentes passando pelas linguagens digitais em confluência com o dub jamaicano. Agora formou um trio, na companhia do finlandês Sasu Ripatti (ou seja Vladislav Delay, Uusitalo ou Luomo) e de Max Loderbauer dos Sun Electric. Estiveram esta semana em Portugal apresentado "Vertical Ascent", álbum constituído por cinco longas peças instrumentais, nem tecno, nem dub, nem jazz, nem ambientalismo, mas tudo isso também, de forma minuciosa, absorvente, hipnótica. Há espaço, ecos, estruturas rítmicas electrónicas a velocidade variável, atmosferas opacas, baixas frequências, misto de propulsões mecânicas e variantes orgânicas que nos conduzem por entre uma galáxia inteira de cores, texturas e volumes. Na capa, um protótipo de foguetão, como se o trio quisesse mostrar que a sua missão é alcançar o espaço. E de alguma forma é isso. Som expansivo, em construção, desfazendo-se e restaurando-se à nossa frente, atravessando vários idiomas, isolando partículas de cada um, transformando-as em instantes onde a electrónica contempla o infinito. V.B. Maria Bethânia

Tua

mmmnn??

Encanteria

mmmmnJBJ & Viceversa??

Pela segunda vez na sua carreira, Maria Bethânia lança dois discos em simultâneo. A primeira foi em 2006, com os excelentes e intemporais "Pirata" e "Mar de Sophia". Agora, surgem "Tua" e "Encanteria", amor e fé, água e fogo, o Brasil em duas faces serenas mas interiormente tumultuosas. "Tua", abordando o amor, fá-lo de forma diferente do habitual: o amor não é veículo, é personagem. Musicalmente é o menos rico do par, embora os temas de, entre outros, Dori Caymmi, Adriana Calcanhotto, Chico César (em parceria com Moska), Roque Ferreira ou Aldir Blanc mereçam nota alta. Já "Encanteria", tirando um maior partido das modulações (agora mais graves) da voz da cantora, mergulha fundo nas raízes da Bahia e do samba e dos simbolismos ancestrais de um Brasil sem tempo, expressivamente rico e cativante a cada nota. Da praieira "Coroa do mar", de Roque Ferreira, ao trem sertanejo da "Estrela" de Vander Lee, passando pelo forte lirismo tribal de "Linha de caboclo", de Paulo César Pinheiro, o disco entranha-se na pele e instala-se comodamente na primeira fila das nossas memórias. E há um original de Vanessa da Mata, recordando que para além do êxito banal que hoje a ofusca, a compositora mato-grossense ainda tem raízes profundas na terra. E há Caetano e Gil, vozes presentes no embalo de "Saudade dela", homenagem a Dona Edith do Prato, velha cantora baiana que morreu este ano com 94 anos. Disco de festa, memória e exaltação da vida, ficará com um dos grandes registos (e já são tantos) da carreira de Bethânia. Que ela já cuidou, aliás, de verter em palco sob o nome "Amor Festa e Devoção", com 37 canções, onde ela canta a "Balada de Gisberta", de Pedro Abrunhosa. Mas essa é outra história, a que Portugal só terá acesso em 2010. Nuno PachecoArnaldo Antunes

Iê Iê Iê

Leve Music

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Depois do conceptual e aplaudido "Ao Vivo no Estúdio" (que soou, e bem, nos jardins da Gulbenkian, em Julho de 2008), Arnaldo Antunes aventurou-se num território que já não lhe assenta bem: a pop-adolescente. E levou-a à letra. Em lugar de explorar essa via pelos caminhos que lhe são mais reconhecíveis, cedeu na música, na poesia e na provocação. "Iê Iê Iê" é Jovem Guarda tardia, com os mesmo tiques, sopros de órgão e devaneios pueris. Há parcerias tribalistas (com Brown e Marisa) e outras com Marcelo Jeneci, Liminha, Branco Mello ou Ortinho, mas tudo se afunda num "retro" irredimível que chega a ser irritante. Arnaldo invoca, em defesa do projecto, um regresso aos Titãs, mas os Titãs estavam a anos-luz disto. Salvam-se escassas canções, como "Longe". E há uma francamente boa, inspirada e visceralmente antuniana: "A casa é sua". Só por ela vale a pena ouvir o disco. O resto é só para fãs ou coleccionadores impenitentes. Nuno Pacheco

Nurses

Apple"s Acre

Dead Oceans, distri. Popstock

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No disco anterior chegaram a fazer lembrar os Muse, misturando isso com um tom circense e psicadélico - a mistela não sabia bem e poucos falaram deles. Chegados ao segundo disco, os Nurses deixaram o rock e parecem encantados com o que os Animal Collective fizeram nesta década. Os Nurses de 2009 são outra banda, mais interessante, mas nem por isso dona de uma identidade. Se nos anos 1990 se pilhava os Nirvana ou os Radiohead, nesta década os Animal Collective são dos alvos mais preferidos dos copistas. Não é que o disco não tenha bons momen-tos: arrancam sorrisos com o assobio de saltimbanco despreocupado em "Caterpillar Playground", com o pia-no circense de "Apple"s Acre", com a percussão mínima de "Technicolor". Contudo, "Apple"s Acre" soa demasia-das vezes a uma manta de retalhos de boas intenções, com muitas piscade-las de olho às tendências do cancio-neiro indie (o apego à pop psicadélica dos anos 60 à cabeça). Pedro Rios

Pissed Jeans

King of Jeans

Sub Pop, distri. Popstock

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Lembram-se do caldo de hardcore, rock arrastado e bizarrias rock que originou os Nirvana? Os americanos Pissed Jeans ficam-se pelo caldo, ou seja, recuperam a tensão dos Jesus Lizard, a demência punk dos Stickmen With Rayguns e o peso dos Melvins numa música tão simples quanto eficaz. Logo no tema inaugural, "False Jesii Part 2", em que Matt Korvette repete "but I don"t bother" e grita no refrão como um animal enjaulado, percebemos ao que vamos: "King of Jeans", o terceiro álbum, é um disco de rock niilista e autodestrutivo, com letras sobre o tédio quotidiano, apoiado na fórmula clássica guitarra-baixo-bateria-voz. "Dream Smotherer" faz-se de sucessivos contorcionismos, sob o comando do infatigável baterista. Em "Pleasure Race" Korvette, alucinado, deixa-se levar na sova do "riff" de guitarra e da bateria marcial. "Human Upskirt" acelera as coisas e o refrão lembra os Nirvana mais punk (referência que também surge em "Lip Ring", que não ficaria mal em "Bleach"). No seu monolitismo, "King of Jeans" peca apenas por alguma monotonia - apesar de durar apenas 40 minutos, com menos canções o seu impacte seria maior. Pedro RiosJazz

Na fronteira do jazz

Três improvisadores, formados no jazz e na clássica contemporânea, numa intensa viagem de exploração musical.

Rodrigo Amado

Vincent Courtois / Sylvie Courvoisier / Ellery Eskelin

As Soon as Possible

Cam Jazz, dist. Mbari

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Lançado entre nós no início deste ano, "As Soon as Possible" reúne três incríveis improvisadores - Vincent Courtois no violoncelo, Sylvie Courvoisier no piano e Ellery Eskelin no saxofone - numa estratégia informal de exploração das fronteiras que separam a clássica contemporânea do jazz.

Gravado em Nova Iorque em 2007, trata-se de um registo improvisado em que os músicos comunicam de forma invulgarmente livre, abandonando qualquer pré-formatação da música, não cedendo a convenções ou estereótipos musicais. O resultado, denso e exigente, é aquilo que poderíamos esperar da combinação destas três personalidades e dos seus percursos; Courtois e Courvoisier são improvisadores, com sólida formação clássica, cujos percursos se cruzam frequentemente com áreas não só do jazz mas também da música erudita; Eskelin é um dos mais originais e orgânicos saxofonistas no jazz.

No primeiro tema, "Sotto voce", somos de imediato confrontados com um som impressionista, delicado, feito de pequenas notas, por vezes apenas sons, uma música mais próxima de Ligeti que de um qualquer jazz. Courvoisier é uma das grandes mestres da insinuação musical e as suas intervenções envolvem as improvisações numa energia intemporal, característica da grande música. Courtois é simultâneamente lírico e abstracto, um verdadeiro "gentleman". No meio de uma música em que os pontos de referência são raros e sempre subtis, surge pontualmente um groove, uma pulsação um pouco mais jazz, permitindo a Eskelin a construção de um dos seus poderosos solos, regressando-se depois aos territórios de abstracção que conferem a "As soon as Possible" os contornos de uma verdadeira exploração musical. Rodrigo Amado

Clássica

A magia da música da Bach

Luminosas interpretações das Sonatas para Flauta de J. S. Bach por Hugo Reyne e Pierre Hantaï.

Cristina Fernandes

Johann Sebastian Bach

Sonatas para Flauta

Hugo Reyne (flauta)

Pierre Hantaï (cravo)

Emmanuelle Guiges (viola da gamba)

Mirare MIR 038

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Foi há mais de 30 anos, em 1976, que o mítico duo formado por Frans Brüggen e Gustav Leonhradt gravou as Sonatas que J. S. Bach dedicou à flauta transversal num belo álbum reeditado pela Sony em 1998. O recente CD de Hugo Reyne e Pierre Hantaï presta homenagem a esse registo pioneiro e aos seus mestres, mas propõe uma nova versão, transpondo para flauta de bisel as obras que originalmente foram dedicadas à flauta transversal, um procedimento comum na época do compositor. Centra-se também numa selecção mais reduzida, uma vez que alguns editores do século XIX atribuíram erroneamente a Bach peças que não eram da sua autoria (por exemplo a Sonata BWV 1020 foi composta por Carl Ph. Emmanuel Bach e a Sonata BWV 1031 teria sido escrita por Quantz). Reyne e Hantaï optaram, assim, por se limitar às Sonatas para flauta e baixo contínuo de autoria comprovada (BWV 1033, 1034 e 1035), juntando-lhe uma obra raramente tocada (a Suite BWV 997, mais conhecida na sua versão para tecla ou alaúde) e a Sonata BWV 1030b, interpretada numa flauta tenor.

O timbre da flauta de bisel confere uma grande frescura a estas páginas herdeiras do estilo italiano, marcadas por uma sedutora inspiração melódica e repletas de passagens que exigem grande agilidade do intérprete. A magia da música de Bach é veiculada por Hugo Reyne com extremo bom gosto, uma sonoridade luminosa e uma articulação do discurso clara, fluída e elegante. Conhecido pela exuberância das suas interpretações a solo, o cravista Pierre Hantaï, fornece aqui uma excelente realização do baixo contínuo, que se mostra sempre atenta à respiração do solista, com quem é estabelecida uma perfeita sintonia. A captação sonora ficaria porém a ganhar com uma maior proximidade do cravo e da viola da gamba de Emmanuelle Guiges, dentro de um verdadeiro espírito de musica de câmara, em vez de remeter a sua intervenção a um segundo plano em relação ao flautista.

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