Tenho uma dor chamada Portugal

Breve Sumário da História de Deus

mmmmn

de Gil VicenteEncenação de Nuno CarinhasTeatro Nacional de São JoãoPORTO, TNSJ, 20 de Novembro, 21h30Casa cheia

"Tenho uma dor chamada Portugal" é um verso de Ruy Belo, o mesmo poeta de quem se ouvem, perto do final deste espectáculo, as palavras "Aqui - mulher terra mar / Aqui só pode ser a casa de deus". Belo é um dos "vencidos do catolicismo", como disse noutro poema (que termina com as palavras de Cristo, por sua vez repetindo um salmo de David: "Meu deus meu deus porque me abandonaste?"). As citações e referências cruzadas dariam para várias edições do PÚBLICO, tal é a riqueza da obra vicentina e da mitologia judaico-cristã. E deve haver inúmeras maneiras de falar deste espectáculo. Mas a ideia mais importante parece ser essa: deus e Portugal são duas fontes de mágoa. Será?

A sucessão de quadros bíblicos e de figuras alegóricas, na qual se propõe a inserção da história de Portugal, através das cores e armas portuguesas, é simultaneamente fiel ao espírito original da obra (também nas ironias) e adequada ao público e tempo presentes. Sujeitas à acção de Lúcifer, Belial e Satanás, as figuras vicentinas vão dizendo de sua justiça defronte de um tribunal que já está convertido. Trata-se de um teatro de comunhão, fiel aos princípios da época, que se compraz na dor. No final, fica tudo na mesma, e a esperança de protesto é escondida.

O grande interesse, a forte integridade, a beleza da forma e a função deste espectáculo (e de cada um dos seus elementos) podem ser sublinhados. O desenho de luz define a atmosfera e é impressionante; os figurinos contrastantes, ora discretos ora belos; o cenário forte e sugestivo; os sons evocativos; e tudo concorre para uma realização impecável e eficaz - no propósito de construir um rito teatral solene sobre a representação da mortalidade, da divindade e das penas da vida. A elocução e a dicção são esculpidas com cuidado para que tudo se entenda e ressoe bem, dando asas aos versos de Gil Vicente. Os actores representam com limpeza e brio. Afinal, o assunto é sério.

A solenidade geral do espectáculo leva o público a reproduzi-la, e é com certa devoção que se assiste a este espectáculo, desmontada numa ou outra cena dos diabos. Nas tentações de Cristo no deserto, por exemplo, a dramaturgia permite ao espectador saber mais que as personagens e, apropriando-se da acção, reagir a ela, rindo. No restante, tanto a peça como o espectáculo se assemelham a uma missa, reiterando a gravidade dos locutores. Este espectáculo da autoridade é de tal ordem que mesmo as máscaras de Lazarim são jogadas sem a anarquia requerida. Eu, que sou da facção mais chocarreira dos admiradores de Gil Vicente, e creio que a vitalidade da sua obra vem da fusão entre carnalidade e misticismo, julgo que tanta delicadeza, censurando os corpos, é de mais. Ainda assim, vê-se (das primeiras filas) alguma saliva escorrendo na boca de pelo menos um dos actores, e outros mais bravos dando o corpo ao manifesto com humildade circunstancial.

Como extrair significados destes aspectos formais? O cenário representa um albergue nocturno ou um campo de concentração nazi; Auschwitz, porventura, o campo a poucos quilómetros da católica Cracóvia. Num ano assombrado pelo desaparecimento de tantos artistas de teatro, Breve Sumário da História de Deus é o possível requiem. O holocausto somos nós.?

Jorge Louraço Figueira

Sugerir correcção