Eles não querem ser um enclave invisível
Depois de mais de três décadas de divisão da ilha, os cipriotas turcos recusam ser tratados como "minoria" e exigem direitos iguais aos dos cipriotas gregos
Se a estrondosa ovação, de pé, com que Rauf Denktash foi recebido, em Lefkosa/Nicósia, nas celebrações da república que há 26 anos ele proclamou no Norte de Chipre forem um barómetro do sentimento popular, então o actual presidente, Mehmet Ali Talat, aplaudido muito timidamente, tem razões para estar preocupado.
Enquanto o octogenário que os cipriotas gregos renegaram como "separatista" continua a ser carinhosamente tratado pelos cipriotas turcos como "Baba" (pai), Talat está em queda nas sondagens. Com dificuldades em mostrar progressos nas negociações para a reunificação da ilha dividida há 35 anos, o antigo engenheiro de 47 anos poderá não conseguir um segundo mandato nas presidenciais de Abril de 2010. O seu partido já perdeu, este ano, as legislativas.
Na manhã do passado dia 15, de frente para um cartaz gigante de Atatürk, o pai da moderna Turquia, o veterano Denktash não discursou. Ficou na primeira fila das bancadas onde se sentaram políticos, diplomatas, militares e outros convidados para as comemorações do aniversário da República Turca do Norte de Chipre (RTNC). As palmas que ele recebeu, de homens mulheres e crianças agitando bandeirinhas brancas e vermelhas com a estrela e o crescente, só podem ser comparadas às que marcaram a cadência do desfile de uma velha banda otomana e de centenas de soldados turcos, presentes no território desde 1974.
Talat, que em 1983 votou contra a criação desta entidade que só Ancara reconhece (oferecendo uma ajuda anual de 500 milhões de dólares), garantiu aos presentes que está empenhado numa "solução justa e duradoura do problema de Chipre" - até porque a UE fez desta solução uma condição para a adesão da Turquia à União.
A reunificação terá, porém, de ser acordada segundo "o princípio de igualdade política entre dois povos, estatuto igual de dois Estados constituintes e a continuação da Turquia como [potência] garante, plena e efectiva", como estabelece o tratado de independência de 1960, frisou Talat.
"O lado cipriota grego ainda nos tenta isolar do resto do mundo", queixou-se o sucessor de Denktash, apelando à comunidade internacional para um "tratamento mais justo e igual" para os cipriotas turcos. Afinal, foi ele que os incentivou, em 2004, a votar a favor (65 por cento) de um referendo da ONU, embora continuem sujeitos a um embargo, enquanto os cipriotas gregos, que votaram contra (75 por cento), estão já integrados na União Europeia.
Federação e identidade
Na Near East University (NEU), a segunda maior universidade da RTNC, quando inquirimos a professora de Relações Internacionais Zeliha Khashman sobre a viabilidade de uma federação de dois estados, ela não se mostra entusiasmada. "Ao contrário da Suíça, Bélgica ou Canadá, onde os federalismos nasceram da vontade dos seus povos, no caso de Chipre será uma criação de cima para baixo, resultando num acordo de líderes." Porque nesta ilha do Mediterrâneo, "persiste o medo e a desconfiança" entre duas comunidades com uma "distinta base cultural".
"A não ser que organizações da sociedade civil se envolvam num processo de construção da paz, será muito difícil garantir a sustentabilidade de um acordo baseado num sistema federal", admite Zeliha Khashman, doutorada em Federações e Confederações pela Universidade de Leicester (Reino Unido).
O pessimismo desta académica resulta também do que considera ser a insistência dos cipriotas gregos em tratar os cipriotas turcos como uma minoria: "No Norte, as pessoas enfatizam a sua identidade cipriota turca, mas, no Sul, a ênfase é colocada na identidade ortodoxa e helénica. Não há um compromisso que inclua o outro - nem sequer os arménios e os maronitas que, embora sejam cristãos, são excluídos, porque não pertencem à muito poderosa e influente Igreja Ortodoxa."
A alegada ausência de esforços para "humanizar o outro" está evidente, segundo Zeliha Khashman, na recusa de os cipriotas gregos em mudar os seus manuais escolares, como fizeram os cipriotas turcos, seguindo as recomendações da UE. Nos liceus do Norte, por exemplo, os livros de História não incluem o "trauma de 1963" (a vida forçada nos enclaves) e a "glória de 1974" (a intervenção militar turca). Há apenas uma foto de Atatürk e nenhuma de Denktash, o primeiro presidente da RTNC.
Na mesma universidade de Zeliha Khashman, a estudante de Nutricionismo Meliz Keyfiala, 19 anos, confessa que sonha com a "liberdade de poder viajar e quebrar o isolamento". O seu contacto com cipriotas gregos é mínimo. "Falo com umas miúdas, que nem considero amigas, para aí uma vez por mês, em chats na Net", diz a rapariga de piercings nos lábios e no nariz, corpo de modelo. Visitarem-se nas respectivas casas? "Nem pensar!"
Enquanto Meliz corre para um exame, Cagri Gurdere sai de uma aula do curso de Design Gráfico. T-shirt preta, grande tatuagem num dos braços, sorriso tímido, este jovem de 23 anos não hesita sobre o que quer: "Ter paz e entrar na UE." De vez em quando atravessa os checkpoints e vai ao Sul, "às compras e aos restaurantes". Amigos cipriotas gregos? "Não tenho."
Sem vontade de prosseguir os estudos de Literatura Inglesa depois de ter sido recusado pelo Exército, por ter "peso a mais", o corpulento Temucin Kunt, 24 anos, só pensa em acelerar o seu carro desportivo, seja no Norte ou no Sul. Perguntamos-lhe a identidade, ele responde, com ironia: "Sou cipriota." Os seus únicos "amigos gregos" são "o mecânico e o electricista" que lhe consertam o Nissan. Sendo um "viciado em póquer", talvez arranje outros nos casinos - a RTCN tem pelo menos 20, uma das suas maiores fontes de receita, e entre os principais clientes estão os cipriotas do Sul, onde é proibido o jogo.
O PÚBLICO viajou a convite
da RTNC