O poder moderador do Presidente da República

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Embora independentes, a acção dos três poderes não pode deixar de se caracterizar pela cooperação e pela harmonia

Lock e Montesquieu, autores da teoria da separação de poderes do Estado (legislativo, executivo e judicial), defendiam que para existir liberdade política é preciso que estes três poderes não estejam reunidos nas mesmas mãos e que se repartam por órgãos diferentes de maneira que, sem nenhum usurpar as funções dos outros, possa cada qual impedir que os restantes exorbitem da sua esfera própria de acção. É o célebre sistema dos "freios e contrapesos" (chechs and balances). Esta doutrina sofreu várias correcções por parte de alguns autores, como por exemplo a introdução do "poder moderador", segundo o qual, embora independentes, a acção dos três poderes não podem deixar de se caracterizar pela cooperação e pela harmonia. E tal só pode alcançar-se desde que exista uma força que previna e resolva os conflitos entre eles, harmonizando-os, quando desavindos. Diria que este poder/dever, num regime semipresidencialista, como é o nosso, caberá naturalmente ao Presidente da República. Vem isto a propósito das actuais relações entre magistraturas e Governo, entre políticos e a justiça, entre poder económico e a política, a respeito dos casos mediáticos pendentes na investigação criminal acerca dos quais o Presidente Cavaco Silva se tem limitado a dizer que está muito preocupado, negando-se, no entanto, a fazer mais comentários em nome do princípio da separação de poderes. Os ataques cruzados entre as aparentes "forças ocultas", com diferentes interesses a que se assiste quase diariamente, como se estivéssemos numa batalha campal, não é bom augúrio para o regime democrático.

Por vezes, assiste-se também a declarações dos sindicatos das magistraturas a pretenderem dar, a todo o custo, uma direcção diferente na feitura das leis, talvez para justificar perante a opinião pública que a ineficácia da acção da justiça não é da sua responsabilidade, mas sim de leis mal elaboradas e da falta de meios. Afigura-se ser este um caminho errado, pois futuramente irão ser responsabilizados também pela eventual má feitura dessas leis. Os tribunais, com a aplicação da justiça, não têm por missão modificar a sociedade, nem exprimir outra hierarquia de valores senão aquela que lhe é imposta pelo legislador. Desde Montesquieu é obrigação de todos não desconhecer que os juízes e MP não são e não devem ser os autores das leis que aplicam. Em rigor, "a obediência à lei não pode ser afastada sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo". Nem o poder político tem legitimidade para solicitar da justiça aquilo que não incumbe à justiça. Por sua vez, os sindicatos das magistraturas não podem servir-se das suas funções para fazer oposição a qualquer governo, uma vez que, sendo titulares de um órgão de soberania, estão também eles sujeitos à separação de poderes. Dos magistrados espera o povo português, além de homens bem formados, moral e intelectualmente, também celeridade no despacho, cumprimento de prazos processuais, ponderação, equilíbrio e justeza nas decisões.

O legislador constitucional de 1976 quis assegurar ao Ministério Público as condições necessárias ao exercício autêntico e livre das funções que lhe cometeu. Só uma completa e firme autonomia face ao executivo e a outros poderes do Estado livra o MP da possibilidade de eventuais ingerências abusivas tendentes a determinar-lhe um sentido de actuação contrário ao que a objectividade da lei constitucional impõe. Exercendo a acção penal, como constitucionalmente se lhe determina, não poderá o MP obedecer a outros comandos que não os que dimanam da própria lei e lhe sejam impostos pela sua consciência ética e profissional, sem receios de represálias ou de desfavores. Mas, as magistraturas não devem refugiar-se na sua autonomia e independência para escapar ao controlo democrático, efectuado - sem prejuízo da fiscalização jurisdicional - mediante uma adequada e ampla informação à sociedade através dos órgãos de comunicação social.

Os sindicatos das magistraturas devem preocupar-se, essencialmente, com a lentidão da justiça e exigir os meios necessários, já que tal constitui um dos maiores ingredientes causadores do crescente desencanto dos cidadãos relativamente aos tribunais. De outro modo, continuará a crescer a sedução pela arbitragem, que constitui uma justiça mais "terra a terra", mais propícia ao diálogo, mais directa e mais rápida. O ideal seria que a justiça jurisdicional comungasse destas virtudes.

A crise da justiça, da lei e do Estado, acompanhada da desordem que se estabeleceu em algumas das suas instituições, começa a reclamar do Presidente da República a sua intervenção "moderadora", pois, embora independentes, a acção dos três poderes não pode deixar de se caracterizar pela cooperação e pela harmonia. Só com instituições fortes e eficazes poderemos enfrentar os problemas que existem na sociedade portuguesa, tendo como objectivo principal a transparência da administração do Estado e das autarquias locais e o combate, sem tréguas, à corrupção. Juiz desembargador jubilado

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