"O livro de fotografia mais importante depois da segunda Grande Guerra"
Sarah Greenough, curadora da National Gallery of Art, Washington, no catálogo "Looking in: Robert Frank's The Americans"
"É preciso passar por isto. É o ‘texto' da fotografia moderna."
Jeff L. Rosenheim, curador do departamento de fotografia do Metropolitan Museum, Nova Iorque, ao Ípsilon
"Está decidido: vou voltar a fazer fotografia a preto e branco!"
Uma visitante da exposição, para uma amiga
A estrada
- O Truman Capote não tinha razão quando disse que o "On the Road" era batido à máquina, não era escrito. - Sim.
- O Kerouac sabia escrever.
- Sim.
- Ele não sabia era bater à máquina.
As duas mulheres afastam-se da vitrine onde está em exposição a primeira versão da introdução que Jack Kerouac escreveu para o livro de fotografia "The Americans". De facto, Kerouac não sabia bater à máquina:
"what a poem hthis is, what poems can bet weritten about his boo o of pictures some day by some some youn new writer"
É difícil dizer se haverá por aqui poetas, mas há de certeza fotógrafos, e há muitos jovens entre as dezenas de pessoas que visitam o Metropolitan Museum em Nova Iorque a um dia de semana para verem as 83 fotografias icónicas e outros materiais que contam a história do livro "The Americans".
No dia 4 de Setembro de 1957, a vida de Jack Kerouac mudou. Na noite anterior, Kerouac e a sua namorada, Joyce Johnson, esperaram na rua pela edição do dia seguinte do "The New York Times". A crítica a "On the Road" ("Pela Estrada Fora"), por Gillbert Millstein, que devoraram, o jornal ainda quente, proclamava o segundo romance de Kerouac como uma "ocasião histórica". Duas semanas depois, Kerouac era a pessoa mais procurada nos círculos literário, intelectual e boémio de Nova Iorque, quando numa festa um fotógrafo aborda-o e pede-lhe uma introdução para o seu livro de fotografia.
Encontraram-se pouco depois, o fotógrafo com duas caixas de fotografias, recorda Joyce Johson numa autobiografia. A primeira fotografia que Johnson viu foi a imagem de uma estrada "com uma risca branca no meio que continuava e continuava na direcção do horizonte escuro". Pensou: "A estrada de Jack!"
O fotógrafo tinha reconhecido em Jack Kerouac - e nos escritores Beat em geral - a qualidade das suas imagens: livres; e ainda que fotográficas, estavam em movimento.
Kerouac aceitou o convite de Robert Frank, e no seu característico jacto a tinta de máquina de escrever descreveu a estrada comum: "Estrada-louca conduzindo os homem em frente - a estrada louca, solitária, dirigindo depois da curva para os espaços abertos até ao horizonte (...)"
Dois anos depois, o mesmo crítico que tinha posto Kerouac na História comentava o novo livro de fotografia "The Americans", no mesmo "New York Times". As fotografias, escreveu, sugeriam uma "violência latente", "desconfiança dos seus sujeitos", e uma "fúria gélida".
Talvez seja mais fácil aceitar que um escritor não saiba bater à máquina do que um fotógrafo não saiba usar a sua máquina. Outros críticos foram ainda mais duros e descreveram as fotografias como "descuidadas", muitas vezes desfocadas ou "mal" enquadradas.
O escritor que batia furiosamente à máquina não sabia - nem queria saber - de técnica de fotografia. Intuitivamente, o julgamento dele estava feito desde o primeiro encontro com o fotógrafo: "Robert Frank, suíço, discreto, amável, com aquela pequena máquina fotográfica que ele levanta e dispara com uma mão, sacou um poema triste directamente da América para a película, entrando para a lista dos poetas trágicos do mundo."
De qualquer forma, quando "The Americans", datado de 1959, saiu nos EUA em Janeiro do ano 1960, publicado com a introdução de Kerouac e com cada uma das 83 fotografias separada por uma página em branco e uma legenda minimalista (tinha sido publicado em França antes numa versão que Frank não gostava, com longos textos sobre a América escolhidos por um francês), já Frank estava mais preocupado com outro projecto: o primeiro da sua carreira de cineasta - "Pull My Daisy", escrito por Jack Kerouac, e com a participação de Ginsberg, Corso e outros Beat.
A "estrada de Jack" é a estrada número 285 dos EUA, a fotografia número 36 de "The Americans". A estrada está vazia, apenas um carro se aproxima ao fundo. O alcatrão brilha como se o sol brilhasse, mas no horizonte o céu escureceu como se já tivesse feito noite.
Se olharmos para as provas de contacto, também na exposição "Looking In", ficamos a saber que nesse momento, o sol brilhava. Mas o que era mais verdade? Que era dia ou que era noite?
Determinadas verdades - como Frank, Kerouac também sabia isto - precisam de menos luz: "Onde vais América, no teu carro brilhante pela noite?"
O carro
A primeira coisa que Robert Frank fez, depois de receber o primeiro cheque da fundação Guggenheim, na Primavera de 1955, foi comprar um carro - um Ford Business Coupe em segunda mão.
Depois, partiu para a terra de Henry Ford. A capital da América não era Washington, D.C. dos políticos, não era Nova Iorque do "melting pot" cultural; a capital da América era Detroit das fábricas de produção de automóveis.
Como a estrada, o carro era a viagem em si a tomar conta da narrativa. Os carros aparecem solitários em estradas, mas também aparecem como enquadramentos de caras, e sobretudo aparecem parados como casas.
No final desse ano, a sua mulher e os seus dois filhos foram ter com ele. Mary com Pablo e Andrea a dormir, dentro do carro, é a última imagem de "The Americans".
O carro foi, durante um ano, a casa de Robert Frank.
O mapa
Detroit - Nova Iorque - Savannah - Miami Beach - St. Petersburg - Memphis - Rio Mississipi - Arkansas - Nova Orleães - Houston, Texas - Del Rio - Novo México - Santa Fé - Albuquerque - Arizona - barragem Hoover - Las Vegas - Los Angeles - Hollywood - São Francisco - Reno - Nevada - Salt Lake City - Butte, Montana - Wyoming - Omaha - Iowa - Chicago - Indianápolis - Ohio - Pensilvânia - Nova Iorque
Depois havia o trajecto em cada lugar: Woolworth's, para comprar uma coca-cola - cemitério - campo de golfe - parque - elevadores - estações dos correios - autocarros - estações de comboio.
Com ele, levava um mapa da Associação Automobilística, anotado por Walker Evans. Levava ainda o livro da autoria de Evans, "American Photographs". Evans tinha sugerido que Robert Frank fosse para Sul. Robert Frank seguiu as instrucções.
Começou por fotografar tabuletas, sinais de "branco" e de "negro" ou "de cor". Fotografou muitos "proibidos". Essas fotografias, nas provas de contacto, não chegaram à selecção final. Quanto mais tempo passava no Sul, mais queria fotografar não os sinais exteriores da segregação, mas os interiores: a forma como uma mulher negra pega num bebé branco.
Se há uma espécie de clímax da viagem, acontece em Nova Orleães. Se ia avançando para um "estado de graça" com a liberdade da viagem, esse estado manifestou-se particularmente num único dia em Nova Orleães. Num único dia, numa única folha de provas de contacto e numa única tira - o que "nunca, nunca acontece", confessou Frank recentemente numa entrevista- estão duas fotografias extraordinárias que se seguem uma à outra no livro.
Mas seguem-se por ordem inversa. A primeira foto tirada é a da multidão da rua, onde se distinguem negros a cruzarem-se com brancos numa rua densa. Depois de tirar essa foto, Frank voltou-se para trás, e por acaso, viu de repente um "trolley" a passar. Não sabia o que tinha fotografado.
Os passageiros olham pela janela. Nos primeiros lugares vão brancos; os lugares de trás estão ocupados por negros; e um deles, um homem afro-americano, procura compaixão na lente do fotógrafo.
Robert Frank não sabia o que tinha fotografado, mas três semanas depois, a afro-americana Rosa Parks, em Montgomery, Alabama, recusava-se a ceder o seu lugar a um passageiro branco.
As cartas
Que se saiba, Frank não mandou postais. Fotografou postais - em grande plano, sobre uma banca, com um carro em fundo, uma imagem que imprimiu, mas que, finalmente, decidiu não incluir no livro. Os postais ilustram mais do que o lugar onde o visitante está - um "canyon", a barragem Hoover; ilustram as obsessões americanas: vendem-se postais da nuvem em forma de cogumelo.
O medo era fotografável nos EUA. O medo de um negro se sentar no branco da frente quando Robert Frank lhe abre a porta para lhe dar boleia; mas também o medo de uma ameaça mais distante, e no entanto, concreta.
- Você é um "commie"?
- Não.
- Você sabe o que é um "commie"?
- Sim.
Isto é uma parte de um diálogo entre um polícia e Robert Frank em McGehee, Arkansas. Era a segunda vez, durante a viagem, que Frank era preso. Foi detido porque o seu carro tinha matrícula de Nova Iorque e ele era um estrangeiro. As cartas de apoio que trazia consigo não o ajudaram:
- Estou a viajar com o apoio de uma bolsa Guggenheim.
- Guggenheim, quem é esse?
Uma das cartas de recomendação, de Alexey Brodovitch, director de arte da revista "Harper's Bazaar", deu direito a mais algumas horas na prisão, porque Brodovitch soava russo.
Frank foi finalmente libertado depois de ter sido cadastrado. Foi, escreveu numa carta a Walker Evans, "a experiência mais humilhante que tive até agora."
O hotel
"Não houve mais prisões desde que viajo en famille", escreveu mais tarde para deixar Walker Evans descansado. A carta vinha escrita em papel de carta do Hotel Rosewell, Del Rio, Texas. Frank sabia que Evans ia gostar de receber os papéis de carta com publicidade e mapas e desenhos nas margens.
O fotógrafo de "Let Us Now Praise Famous Men" tinha ajudado o mais jovem Frank a conseguir a bolsa Guggenheim. Evans admirava o trabalho de Frank e chegou a escrever uma introdução para o projecto "The Americans". Frank preferiu não publicar o texto, que saiu entretanto na antologia "U.S. Camera Annual" de 58.
Evans continuou a apreciar o trabalho de Frank: "Tenho que admitir que, sejam qual forem os deuses que enviaram Robert Frank, assim tão armado, através deste país, fizeram-no com um certo sorriso."
Evans sabia que Robert Frank era outro tipo de fotógrafo. Viajar e fotografar o país não era nada de original, Evans tinha-o feito antes. Mas Evans tinha documentado os anos 30. E Frank viajava nos anos 50 e não era documentar a acção que mais o preocupava.
"Mon cher professeur", começa carinhosamente Frank num papel de carta do Hotel Finlen:
"A noite passada num bar em Butte vi este cartaz na parede: ‘A única posse que o governo não pode taxar é o teu pénis. 90% do tempo está fora de serviço. 10% do tempo está num buraco e tem dois dependentes (...)' Se não pudesse rir-me, estaria a chorar todo o tempo, boa sorte, Robert."
De Butte, Montana, há apenas uma fotografia em "The Americans", tirada da janela do quarto no hotel Finlen. Não há ninguém na rua ladeada de casas baixas, e vê-se a cidade a desembocar numa mina de cobre.
O americano
Antes de deixar a Europa, Robert Frank preparou um portfolio para mostrar a editores e tentar arranjar trabalho quando chegasse ao EUA. O portfolio chamava-se "40 fotos" e tinha 40 fotos, quase todas da Suíça.
A imagem que fecha o portfolio é um auto-retrato. O jovem Robert Frank no topo de uma montanha olha para trás, para a câmara, mas sem parar o movimento da escalada. As montanhas, para escalar ou esquiar, são as melhores recordações que tem da Suíça.
Robert Louis Frank nasceu em Zurique, Suíça, em 1924, mas só aos 21 anos é que se tornou cidadão suíço. A mãe era suíça, mas o pai era alemão, e quando, em 1939, os judeus alemães perderam o direito à nacionalidade, tanto Frank como os seus filhos deixaram de ter Estado.
Quando a guerra acabou e as fronteiras se abriram, Robert Frank partiu para ver mundo. Em Paris não arranjou trabalho e esperou pela oportunidade de imigrar para os EUA. Quando, em 1947, chegou a Nova Iorque, no S.S. James Bennett Moore, não pensava ficar para o resto da vida.
Quando se candidatou à bolsa da Fundação Guggenheim sete anos depois de chegar à América, escreveu - ou melhor, Walker Evans reescreveu - que o projecto seria o olhar de um "americano naturalizado" sobre o seu novo país. Mas Robert Frank não se tinha ainda naturalizado. Só em 1963 conseguiu a cidadania americana e a resposta dele foi: "Ich bin ein Amerikaner".
O comentário parodiava o Presidente John F. Kennedy em Berlim Ocidental - "Ich bin ein Berliner" -, alguns meses antes, não muito depois do Muro ter sido erguido.
Na candidatura à bolsa Guggenheim, é descrito o que é que este "naturalizado" queria ver na América: "O tipo de civilização que nasce aqui e se espalha por outros lugares".
A América tornava-se o país mais importante do século XX, e deixava de pertencer exclusivamente aos americanos. Éramos, em todas as línguas, americanos.
Os americanos
As pessoas que vieram para a "tour" do curador Jeff L. Rosenheim pela exposição no Met, quase não cabem na primeira sala.
"Isto é um recorde", comenta. "Vocês são pelo menos cinquenta." Rosenheim berra a sua introdução para se fazer ouvir: "Isto é mais um livro de poesia embora lhe chamem reportagem." Está quase encostado à parede onde estão as impressões de trabalho que Robert Frank juntou de propósito para esta exposição, para que os visitantes percebam o processo de reduzir 1000 impressões (escolhidas das mais de 27 mil fotografias que tirou ao longo de 10 mil milhas de viagem) para as 83 fotografias que se espalham, na exacta sequência do livro, pelas salas.
"Inicialmente ele dividiu o livro em quatro capítulos", continua Rosenheim, apontando para a maquete inicial de "The Americans", "mas depois decidiu que não queria criar esse tipo de estrutura. É uma só coisa, um sentimento."
Os cinquenta vão seguindo o curador como podem pelas salas: "negros e brancos"; "pobres e ricos"; "urbano e rural" - aponta Rosenheim.
Mais tarde, ao Ípsilon, Rosenheim descreveu estes contrastes como "rachas" que começavam aparecer no dia-a-dia impecável da América. Só uma câmara fotográfica, sugeriu Rosenheim, podia apanhar a subtileza com que a América se transformava.
Robert Frank concordou, ao fim de 50 anos, com uma exposição inteiramente dedicada à série "The Americans", mas Rosenheim não sabe porquê. Até aqui, Frank nunca quis contribuir para estatudo icónico de "The Americans".
Quando o livro foi feito, há precisamente 50 anos atrás, e precisamente como ele queria - simplesmente um conjunto de imagens -, o trabalho em "The Americans", para ele, acabou.
Frank seguiu viagem. Como disse num evento com a curadora Sarah Greenough quando a exposição inaugurou em Washington no início do ano, a "vida é muito mais interessante quando se move ou nós nos movemos."
A maior parte de nós continua a surpreender-se com as descobertas de Frank. De volta a uma das primeiras salas da exposição, um homem pára junto das provas de contacto e comenta para a mulher: "Nós ainda temos o terceiro mundo aqui, o problema é que não se vê de Park Avenue."
Porque a América é, 50 anos depois, tão dividida como em 59, ou simplesmente porque é demasiado vasta, a verdade é que os americanos nunca inteiramente conhecerão à América. E nunca poderão responder à questão: quem são?
Frank nunca tentou. As fotografias dele só levantam perguntas: quem é aquela mulher no elevador que Kerouac quis conhecer na sua introdução?
Porque é que aquele homem passa o dia em pé na rua a distribuir folhetos religiosos?
Por quem reza o negro que se ajoelha todo de branco no Mississipi?
Mais do que uma história colectiva, "The Americans" conta a história de cada um. Mesmo quando os americanos se sentam lado a lado num balcão de um típico café americano, no meio da estrada ou no centro da cidade, as histórias não se cruzam.
Como escreveu Kerouac sobre a fotografia do engraxador de sapatos e o seu cliente numa casa de banho pública, algumas destas imagens são possivelmente as imagens "mais solitárias algumas vez feitas".
As fotografias
Podia-se dizer das fotografias de Robert Frank o que ele disse sobre as fotografias do amigo suíço Gotthard Schuh numa carta que lhe enviou:
"They are - Not words - " Não são palavras.