Alguém escureceu as principais salas do Museu do Chiado. Pelo chão arrastam-se cabos e ferramentas e ao fundo dois técnicos põem a funcionar um projector. Não há qualquer azáfama ou pressa. Apenas o ritmo habitual da montagem de uma exposição. A luz - ou grande parte dela - vem das imagens e permite identificar um vulto que as observa desinteressado. É David Claerbout, o responsável por esta transformação, o artista, que espera alguém.
Quem viu no ano passado, no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, a colectiva "Ida e Volta: Ficção e Realidade", com obras de vários autores que trabalham com a imagem em movimento, lembrar-se-á provavelmente de "Sections of a Happy Moment". Era, digamos assim, uma das propostas mais "acessíveis": descrevia um momento de lazer de uma família oriental a partir de múltiplas perspectivas. Um momento apanhado na sua tridimensionalidade.
Situada nas zonas cinzentas da fotografia e do filme, a produção artística de David Claerbout (que já expôs no Centre Pompidou, em Paris, e no Museum Boijmans Van Beuningen, em Roterdão, entre outras instituições de arte) revela-se, de facto, num primeiro momento, "acessível", isto é, familiar. Mas a impressão é traiçoeira. O que as suas imagens fazem é sobretudo deter o espectador.
Pintura, fotografia, vídeo
A exposição no Museu do Chiado - realizado no âmbito do Festival Temps d'Images - reúne videoprojecções e uma instalação e percorre vários momentos do percurso deste artista flamengo que, curiosamente, começou por estudar pintura: "Faço parte de uma das últimas gerações de artistas belgas vindas de um contexto muito conservador e dominado por uma forte tradição académica. Foi uma situação frustrante, passávamos a maior parte do tempo a desenhar nus, mas deu-me uma base saudável para a pesquisa e o confronto".
Claerbout chegou, inclusive, a formar-se em litografia, mas rapidamente se apaixonou pela fotografia, embora na condição de um amador, de um não especialista. "Quando comecei a trabalhar com o medium, limitava-me a recolher material para usar na pintura e no desenho. Não me interessa a fotografia em si mesma. Mais tarde, então, desenvolvi um trabalho de autodidacta, entre o coleccionador de fotografia e o artista que trabalhava com a fotografia".
A mesma abordagem intuitiva seria utilizada na composição e edição de imagens em movimento enquanto para trás ficava o fazer artesanal herdado das disciplinas tradicionais. Com poucos conhecimentos técnicos, "mas com muitas ideias e um interesse apaixonado", Claerbout abraçava definitivamente os novos media (deste período "iniciático" podemos ver no museu "Kindegarten Antonio Sant'Elia 1932", de 1998).
A decisão funcionou a seu favor: "Criei o meu próprio estúdio e adquiri um conhecimento mais profundo dos processos da imagem fotográfica e do filme, mas fi-lo de forma muito pessoal", nota. Acrescenta: "Talvez por isso tendo a pensar imagem como um desenho, uma arquitectura. Se não tiver autoridade, em termos de composição, não sobrevive. Talvez haja uma influência do pictórico no meu conceito de composição".
Na verdade, a pintura não desapareceu totalmente da obra de Claerbout. Basta reparar na presença da paisagem, no uso da luz em "Riverside", de 2009, ou em "Vietnam, 1967, near Duc Pho (reconstruction after Hiromichi Mine)", de 2001. "Forma, com certeza, parte de um triângulo na minha obra, ao lado da fotografia e do filme", admite. "O meu trabalho tem, aliás, essas três dimensões: é pictórico, porque não tenho comigo a experiência da pintura e do desenho, é fotográfico e até certo ponto narrativo".
Homenagem ao modernismo
Tempo então para confrontar o artista com o cinema. Afinal, até onde vai a sua relação com o universo cinematográfico? "Sempre tive uma relação de ódio/amor", lamenta, num tom lacónico. "Na minha opinião, a liberdade artística no cinema tem diminuído e as formas convencionais de produção dão origem a cada vez menos obras de arte. Claro que continuam a existir grandes autores, mas vivem sob a pressão do lucro e da distribuição".
Pedimos-lhe para citar um ou dois e aponta o nome do realizador iraniano Abbas Kiarostami. É, porém, sobre Robert Bresson, um cineasta já desaparecido, que prefere conversar: "Adoro o cinema dele. Mostra como a artificialidade pode ter um enorme poder. De alguma forma ecoa no meu trabalho, pelo seu lado arcaico, a sua rigidez e construção. Dou-me conta dessas semelhanças, pela importância que dou à composição, à coreografia entre os lugares e as figuras humanas. É um cinema que parece hoje muito antiquado, mas tem uma força muito comovente".
No campo da fotografia, elege Jeff Wall e Steven Shore embora a sua fotografia procure outros motivos. A arquitectura modernista, por exemplo, que vemos em "Bordeaux Piece" (2004) ou em "Shadow Piece" (2005).
"A arquitectura no meu trabalho apareceu de forma natural, quando coleccionava fotografia", esclarece. "O que de facto me interessa é a fotografia da arquitectura, a forma como novos ambientes e contextos são apresentados nas suas fases iniciais. Basicamente, a fotografia da arquitectura é um pouco como a fotografia do casamento. Quando as olhamos trinta anos depois parecem menos atraentes, mas não menos tocantes".
Não esconde o fascínio pela posição "exemplar, quase utópica" da figura humana diante dos edifícios e dos ambientes urbanos do modernismo; pela relação da figura humana com o espaço e a vida. "Faço uma homenagem, uma homenagem com um comentário: quando uso fotografias antigas que representam o modernismo, é porque este está velho, abandonado e esquecido. Já não é a situação dominante".
Imagens e luz
É no âmbito desta posição que pode ser entendido o modo crítico como olha a produção de imagens na contemporaneidade. "Uma das coisas que me entristece quando colocamos uma câmara de filmar diante de uma paisagem, é que rapidamente transformamos esta numa coisa plana. Criamos uma memória fraca de uma imagem forte. Gosto de contrariar isso. Não que considere os meus vídeos esculturas, mas através da luz, do tempo, do som, da coreografia que acontece entre as figuras e os edifícios, procuro proporcionar experiências mais sensoriais, concretas".
A fotografia é muitas vezes o meio para chegar a estas imagens, não só através dos conceitos e das ideias, mas de um minucioso trabalho de composição sobre o espaço. Por exemplo, "Arena", sucessão de cenas de um instante de um jogo de basquetebol: "Fiz 500 imagens diferentes de um só momento, o que à partida parece impossível. Mas através de um longo e complexo processo de composição, criei um espaço tridimensional que a visão fotográfica não consegue apreender. Um espaço que, como certos momentos importantes da nossa vida, não conseguimos determinar, fixar. É esse espaço procuro ‘esculpir'".
E a manipulação vai mais longe quando sugere o movimento na fotografia e a suspensão do movimento no filme. "Tem a ver com a forma como olhamos para as coisas. Mas ao mesmo tempo", sublinha, "também não é nada de original. Remete para um prática que pertence às origens do cinema não enquanto narrativa, mas enquanto animação. Traz a animação de volta".
Nestas deslocações entre a fotografia o filme, é provável que o espectador se desoriente. Ou que não se queira deter. "Quando faço um trabalho, tenho sempre em conta a experiência do espectador na galeria ou no museu. Claro que certa obra pode passar despercebida ou esquecida. Pode até excluir o espectador, mas se este se abrir à imagem pode descobrir o que encontramos nos filmes do Bresson: uma sensação de espaço, duração e de desconexão, uma imagem que é impossível esquecer".
A luz é fundamental para este encontro e torna-se mais presente à medida que os videoprojectores vão iluminado a escuridão, deixando entrever, através de uma porta envidraçada, ao fundo, uma imagem em movimento. É então que David Clarbou aproveita para comentar: "[Os videoprojectores] existem para mim a um nível existencial, representam o sol. Num espaço escuro, se existir um raio de luz é este que permite às pessoas moverem-se. Traz vida ao espaço como o sol. E em algumas obras desta exposição esse é um fenómeno muito importante".