Rever e desculpabilizar o Gulag
Processos de revisionismo histórico da experiência do Gulag tendem a requalificá-la como opção politicamente válida
Tal como tem acontecido com a tentativa de reexame do Holocausto, decorrem processos de revisionismo histórico da experiência do Gulag que tendem a reduzir o seu papel na edificação da sociedade soviética ou a requalificá-la como opção politicamente válida. Emergem em parte da historiografia e do actual sistema educativo do Estado russo, determinados a justificar perante as novas gerações o uso da violência na construção de uma política centralista e imperial "eficaz". Em The Future of Nostalgia, Svetlana Boym fala de incentivos a uma "megalomania da imaginação" que na Rússia actual se tem servido das dificuldades diárias vividas pelas pessoas comuns para estimular uma revisão heróica e gratificante do passado. Mas estas releituras provêem também dos sectores políticos, próximos ainda da matriz leninista, que conservam uma atracção reverente pelo antigo "país do futuro radioso". Há cerca de uma década, o debate público em torno do controverso Livro Negro do Comunismo terá contribuído para estimular esta via branqueadora e justificativa da violência totalitária.
Entre nós, muito mais relevantes do que o caso recente da jovem deputada do PCP que declarou não ter ideias sobre o assunto, ou das afirmações de militantes que dizem ou escrevem aquilo que o instinto gregário e a ignorância determinam, são as declarações de pessoas com reais responsabilidades políticas que se esforçam por limpar da memória ou por desculpabilizar os horrores praticados no sistema concentracionário do "socialismo real". O texto de opinião de António Vilarigues que saiu no Público de 30 de Outubro serve de indicador. Ele contesta os números excessivos apresentados por muitos historiadores para contabilizarem as vítimas do Gulag, o que merece alguma atenção. Mas toca o inaceitável quando se permite comparar o número das pessoas "reprimidas" na antiga União Soviética (as significativas aspas são da sua responsabilidade) com o volume de detidos de delito comum actualmente nas prisões americanas, comparando aquilo que não pode ser comparado e criminalizando quem foi deportado e perseguido apenas por motivos políticos ou étnicos.
O artigo parte das dificuldades que experimentamos para chegar a cifras completas - Anne Applebaum lembra que "calcular os números era uma questão de suposição enquanto a URSS existiu e continua ainda hoje a ser um exercício de especulação" - para escolher, de entre todas as estimativas construídas com um mínimo de credibilidade, justamente uma das que adiantam um volume menor de vítimas, minimizando assim o papel intensamente trágico cumprido pela Administração Geral dos Campos de Trabalho Correctivo. Trata-se da proposta avançada pelo historiador Víktor Zemskov e que quantifica um número global de 4 milhões de pessoas perseguidas entre 1921 e 1953, 800 mil das quais fuziladas. Um volume sem dúvida muito inferior ao apresentado em estimativas, pouco credíveis por jogarem acentuadamente com suposições, como a de Lazar e Courtois, que aponta para entre 8,5 e 17 milhões só em 1939, a de Conquest, que indica 7 milhões nos anos de 1937-1938, ou a de Getty, assumidamente revisionista, que inversamente fala de apenas alguns milhares no mesmo biénio. A verdade é que para o período que vai de 1918, o ano de abertura do primeiro campo, até 1954, quando após a morte do "pai dos povos" a repressão abrandou significativamente, apenas dispomos de contas parciais com as quais podemos lidar com segurança. Mas elas são suficientes para comprovar a dimensão residual dos números "científicos" de Zemskov. Recorrendo apenas a fontes produzidas pelo próprio sistema: um relatório de Beria já de 1954 referia que nesse ano existiam 1.241.919 prisioneiros com "penas excepcionalmente longas" derivadas de conflitos menores; Bogdan Kobulov, um subordinado seu, apontara antes um total de 11 milhões de detidos apenas para o início da década de 1950; e Kruchtchev falará de 17 milhões de presos que passaram pelos campos apenas entre 1937 e 1953. A todos estes sentenciados deveriam ainda ser somados os milhões de indivíduos, cidadãos soviéticos e outros, enviados para os campos ao abrigo dos "povoamentos especiais", o eufemismo utilizado para referir as deslocações colectivas forçadas, bem como um grande volume de prisioneiros sem culpa formada e não registados, e os inúmeros mortos não contabilizados provocados pelos longos trajectos de transporte em condições infra-humanas.
Todas estas pessoas eram genericamente classificadas como representantes do "inimigo de classe", sobreviventes incómodos de um tempo a transpor, constituindo um embaraço para a caminhada triunfal do "homem novo". Por tal motivo, o essencial do esforço carcerário era aplicado na sua erradicação do convívio social normal, numa desumanização destinada a apagar-lhes o rastro, ou, nos casos reputados como menos graves, a "reeducá-las" pela disciplina e pelo trabalho. Servindo este também, ocasionalmente, para ajudar a manter o equilíbrio endemicamente periclitante da economia soviética. A verdade dos números, porém, é complexa e jamais será decifrada na sua totalidade. O que não significa a anulação de um dever de memória para com os milhões de seres humanos, "marcados todos como traidores" como escreveu o prisioneiro-poeta Alexander Tvardovsky, que não se compadece com leituras negacionistas ou manipuladoras. Sabemos de que maneira, do lado dos complexos doutrinários que procuram moldar artificialmente a História, quando a realidade não cabe no argumento se distorce a realidade. É isto que tem procurado aplicadamente fazer o actual esforço revisionista e desculpabilizador dos métodos e das metas do Gulag. Historiador, professor universitário e investigador do Centro de Estudos Sociais