Crooner branco, coração negro

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Doug Combe

Uma vez por ano um tipo de quem nunca ninguém tinha ouvido falar resolve sair da toca, mostra as coisinhas que andou a fazer enquanto era um simpático anónimo e de repente o nome dele está na boca de toda a gente.

Nove em dez vezes é fogo de vista. Uma em dez vezes vale a pena.
Mayer Hawthorne, americano de Detroit cujo disco de estreia, "A Strange Arrangement", nos viciou os ouvidos, é esse um em dez - ou por outra, é quase um dez em dez: o tipo que vindo do nada faz um disco quase perfeito.

Feito de cima a baixo de soul tão clássica que podia muito bem ter sido editado nos anos 60, "A Strange Arrangement" respira saber, classe e pose. Tendo como tema o mais importante assunto (i.e., as mais variadas possibilidades de empernanço com o belo sexo), é daqueles discos em que tudo bate tão certo que pensamos que ou o homem é iluminado ou é um esperto que teve sorte.

A revista "Esquire" não hesitou em nomear Hawthorne "a melhor nova voz soul do ano", o que assim de repente faz pensar numa Amy Winehouse de calças. (Imagem errada.)

O "Village Voice" diz que Mayer Hawthorne e as suas canções têm "um charme inegável".

Os franceses dizem que é "la nouvelle perle de la soul américaine".

E como a pele é a pele e a América é a América, não faltou a questão da raça. Na "Dusted" escreveu-se, como se estivéssemos em 1966, que "todo o cantor soul de olhos azuis (...) se questiona se é um imitador de outros tempos e da cultura de outras pessoas".

Porque Hawthorne, pormenor (ir)relevante, é branco.

Além de branco é o único tipo que não percebe o seu rápido sucesso. Em conversa com o Ípsilon, dizia, em tom aparentemente honesto: "Ainda não percebi como é que tudo isto aconteceu". Mais: não só confessou que "só há um ano [começou] a perceber quem era Mayer Hawtorne" como diz que "nunca [imaginou] vir a ser Mayer Hawthorne".

Isto ou é uma perturbante demonstração de problemas identitários ou é truque pop dos bons. Ou então, se quisermos a versão filme-de-domingo, é a simples e comovente história de um rapazinho branco que desconhecia o potencial que tinha mas tinha um sonho e um dia conseguiu.

Tudo pelas garotas

A primeira vez que vimos o nome de Mayer Hawthorne foi na página oficial da editora Stones Throw, num anúncio ao seu primeiro single, cujo vídeo a editora disponibilizava: a canção era um assombro de soul clássica desviada para pop, cheia de ganchos e refrão em falsete. O vídeo, esse, era uma delícia: todo a preto e branco, apresentava um tipo (Hawthorne) entre o totó e o bonito, vestido de fato e gravata, a rejeitar mulheres em série (um prodígio de "casting" este vídeo) enquanto lhes oferecia corações, únicos objectos no vídeo que estavam a cor (no caso, vermelha). Na realidade, os corações são cópias do single (que tem o formato de um coração).

Havia ali o humor auto-depreciativo de um Jarvis Cocker, a medida exacta de nostalgia, algo de Woody Allen, se Allen tivesse trinta anos e não fosse judeu. É como se Hawthorne fosse o oposto de Michael Jackson: o tipo que nasceu branco e queria ser preto e que em vez de ser um génio prematuro violentado é um magnífico artesão tardio com ar de quem mamou até tarde.

Pensámos: num mundo justo este caixa de óculos copinho de leite devia receber uma estátua.

Aparentemente a única pessoa que ao ouvir as canções de Hawthorne nunca imaginou que tudo isto pudesse acontecer é Andrew Cohen, um moço esguio, com óculos de massa e cara de totó bonitinho - Cohen é o tipo que em disco e em palco dá pelo nome Mayer Hawthorne. Apanhámo-lo ao telefone há dias, estava ele "a passear por Paris antes de apanhar o comboio para mais um concerto".

Neste momento Hawthorne tem pela frente "30 dias de concertos consecutivos na Europa". Acabou de "tocar em 30 cidades nos EUA" e depois da Europa vai "voltar aos EUA para uma festa de Ano Novo em Las Vegas", o que, segundo ele, "é perfeito". E depois ainda vai para a Austrália.

Para nosso espanto, uma das primeiras coisas que diz é que "quando tudo isto começou a acontecer [ele] estava concentrado no hip-hop". E como quem está a falar alto consigo mesmo, atira: "Depois as coisas explodiram - coisa que ninguém conseguiu antecipar".

Na realidade, não é bem assim: houve quem antecipasse o que podia acontecer. Alex Robinson, da Stones Throw, conta ao Ípsilon que na editora "se percebeu imediatamente" que Hawthorne tinha algo de especial, porque "a Stones Throw tem um público muito masculino" e "Just ain't gonna work out", coisa inédita, "chamou muito mais a atenção das raparigas". Conta Alex: "Ele é o primeiro artista que temos de que mais raparigas gostam que rapazes".

E como não haviam de gostar? Tal como "Just ain't gonna work out", o resto do disco é um festival de cordas luxuosas, metais insinuantes, linhas de baixo para pôr a anca a jeito, melodias melosas, tudo que Deus botou de negro no mundo para fazer palpitar o coração e deixar o corpo experimentar complexas leis da física, assim permitindo a gloriosa propagação da espécie.

Aliás, o disco tem um só tema: as mulheres.

Em duas palavras, Alex explica as razões do êxito de Hawthorne: "É muito atraente e sabe mesmo escrever canções clássicas".

Quem é ele?

Mayer Hawthorne/Andrew Cohen tem as suas razões para nunca ter esperado conseguir um êxito pop com canções soul à antiga.

É verdade que cresceu nos arrebaldes de Detroit, e viveu lá "a maior parte da vida", pelo que no que toca a música teve sorte: não só Detroit "é uma cidade com uma grande história na soul", como ainda por cima o pai "era um grande músico" - acrescenta: "Não era como eu".

O seu primeiro instrumento "foi o baixo, que era o instrumento do [meu] pai". O branco mais preto deste ano ainda hoje usa o baixo para compor. Às vezes também usa o piano, por razões práticas mas também sentimentais: "A minha mãe também adorava música e pagou-me aulas de piano, mas eu era demasiado novo e resolvi desistir. Agora estou um bocado arrependido".

Com um pai baixista e uma mãe melómana, nascido em Detroit, podia pensar-se que o branquela Cohen tinha crescido a ouvir pérolas obscuras do jazz e da soul. "E ouvi", corrobora, antes de voltar a surpreender-nos. "Mas também cresci a ouvir outras coisas". O quê? "Bem, passei uma fase em que ouvia metal - quem me ouve hoje não acredita. Adorava os Police. E houve uma altura em que gostava muito de Smashing Pumpkins".

No entanto, desde a adolescência que o grande amor de Cohen é outro: "A maior parte da minha vida foi passada à volta do hip-hop". De facto, até há bem pouco tempo ganhava a vida como DJ e produzia malta do hip-hop.

Há quatro anos mudou-se para Los Angeles com a "ideia de tentar viver a sério do hip-hop". Numa festa conheceu Peanut Butter Wolf [PBW] chefe da Stones Throw. Ficaram à conversa e combinaram que Cohen lhe mandaria a música que fazia. No meio das cassetes (Cohen tem um lado nostálgico) havia um par de canções que intrigaram PBW.

"Ele ligou-me de volta a perguntar: ‘Que canções eram aquelas?'. Eu não percebi o que ele estava a dizer. ‘Quais canções?'.‘Aqueles clássicos soul'. Quer dizer, ele pensava que as minhas canções soul não eram minhas, pensava que eram canções perdidas de algum tipo desconhecido que eu tinha descoberto algures, ou remisturado ou assim... Ele não queria acreditar quando lhe disse que eram mesmo minhas".

Entre essas duas canções estava "Just ain't gonna work out", que, diz-nos Alex Robinson, "foi a primeira canção soul que Mayer escreveu. Impressionante, não é?".

Impressionante, sim. Mas Peanut Butter Wolf, por mais impressionado que tenha ficado com o que ouviu, continuava a não acreditar que Cohen tivesse mesmo feito aquelas canções. "A segunda vez que o encontrei ele ainda acreditou menos. Demorei um bocado a convencê-lo que eram mesmo minhas", ri-se Maywer...

Quando Peanut Butter Wolf finalmente acreditou, exigiu ao autor das canções que "fizesse um disco soul-qualquer-coisa" - algo em que Cohen "nunca tinha pensado na vida". Por uma razão: "Eu fazia os meus próprios clássicos soul só por diversão. Era só para tocar com os amigos e para mostrar à família. Mas era uma brincadeira - nunca tive esperança que alguém as levasse a sério".

Um "connaisseur"

Tinha a seu favor desvantagens e vantagens. Por um lado não é senhor de tremenda voz, ao contrário dos homens que admira, como Smokey Robinson ou Curtis Mayfield. Por outro, não tem vergonha nenhuma em afirmar-se um "connaisseur" da soul: "Na soul consigo distinguir tudo numa canção: quem escreveu, quem arranjou, quem canta, que instrumento faz o quê". Diz que é "um estudante sério da soul": "Ouço muito e com muita atenção".

O problema que, portanto, se punha ao anti-Michael Jackson era só um: "Quem era o Mayer Hawtorne?". "Tive de perceber muito rapidamente quem era o Mayer Hawthorne. De construir depressa a personagem". Faz questão de dizer que Hawtorne é apenas "uma parte" de si, o seu "lado de mulherengo cavalheiro", mas que pretende fazer outras coisas musicalmente.

Mayer Hawthorne é uma personagem bem montada, mas Cohen ressalva que "não houve um grande exagero de construção de personagem". As roupas, por exemplo, não sofreram grande mudança: "Sempre me vesti bem, sempre usei gravatas mesmo quando era DJ de hip-hop". Faz uma pausa e atira: "Bem, sempre fui um pouco estranho".

O disco foi todo escrito por si (à excepção de uma versão), sem ajudas da editora. Os músicos são seus amigos. No entanto, houve um óbvio cuidado na forma como a imagem foi sendo publicitada, algo entre o "geek" trapalhão e o "loverman" vivido. Exemplo disso era a sua "coluna" na página da "Stones Throw", em que respondia aos problemas dos fãs, como uma espécie de Dra Ruth no masculino. (Era hilariante.)

Última grande declaração de Andrew Cohen, Mayer Hawthorne para o mundo: "Queria criar um disco intemporal e clássico, mas ao mesmo tempo novo. Não queria criar um disco retro. Isto é música nova para uma nova geração. Quero que os putos sintam que esta é música deles e não música dos pais".

Façamos-lhe a vontade: façam favor de sentir que esta é a vossa música, não a dos vossos pais. Entretanto, fiquem a saber: Snoop Dog acabou (há dias) de pedir uns beats a Hawthorne.

E isto, logo a seguir a Giselle Bünchen, é o topo do topo.

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