Os feitiços da lua

Fernando Lopes permanece como um dos nomes de referência do Cinema Novo, apesar de as suas duas últimas longas-metragens, "98 Octanas" (2006) e "Lá Fora" (2004), terem evidenciado algum esgotamento de soluções narrativas, de certo modo encerradas numa excessiva rarefacção, em que apenas o gosto de filmar e a capacidade de referenciar a memória cinematográfica davam a medida certa do seu talento para efabular a partir de indícios mínimos, da noção profunda de uma portugalidade ferida de morte - como acontecia nas adaptações de "O Delfim" (2002) ou de "Uma Abelha na Chuva" (1972), até hoje a sua obra maior.


"Os Sorrisos do Destino", a partir de um argumento bem arquitectado de Paulo Filipe Monteiro, embora em registo de comédia de costumes, curiosamente reminiscente de "Sorrisos de uma Noite de Verão" de Ingmar Bergman (o título está longe de ser inocente), vem repegar, sob a forma de jogo autoreferencial, nas suas obsessões anteriores e nomeadamente nos acentos trágicos de "O Delfim". Se não vejamos: o narrador do filme de 2002 (o excelente Rui Morrison, ainda e sempre com a sua máscara algo neutra de radialista de voz sedutora) passa a protagonista de um triângulo amoroso, gerado a partir de uma críptica mensagem de telemóvel, assinada por um misterioso Manuel B., diplomata e escritor africano, interpretado por Milton Lopes, o criado Domingos, ligado aos cães de caça, de "O Delfim", cujo par protagonista (Alexandra Lencastre e Rogério Samora) aparece num quase "cameo" autocitacional, no jantar que confronta os dois casais em estranha celebração; a oposição musical entre boleros e ópera (a baixa cultura e a alta cultura) recupera a sequência em que Samora canta "Sabor a Mi" no cabaret de "O Delfim"; a primeira ária de ópera apresentada, no programa de rádio, por Ana Padrão (também ela reminiscente da arrogância de classe da Maria dos Prazeres de "Uma Abelha na Chuva") vem de "A Força do Destino" de Giuseppe Verdi, cuja abertura dava o mote ao filme de 1972; até "Os Sorrisos do Destino" do título recompõem a componente fílmica bergmaniana e a musical de origem verdiana.

Depois, assistimos às múltiplas variações e desenvolvimentos sobre o tema (musical e fílmico) dado: o cão chamado Wotan (o deus de "O Anel do Nibelungo" de Richard Wagner) que, quando perdido parece responder ao apelo do dono por meio da "Morte de Isolda", do "Tristão e Isolda" do mesmo Wagner, mas acaba por reaparecer por um simples assobio; a centralidade de jantares e banquetes, brindes com vinho tinto e whisky; as cumplicidades masculinas entre Manuel B. e Manuel C., com a divertidíssima sequência do bolero, dançado em separado pelos dois homens, porque nenhum deles se consegue deixar conduzir pelo outro; o anel (uma aliança, marca de um casamento fracassado) lançado à água (omnipresente em "O Delfim" e em "Uma Abelha") a parodiar o final da tetralogia de Wagner, para apaziguar a ira dos deuses de uma tragicomédia comédia lusitana.

E constituirá delírio crítico ver a capicua do nome da protagonista, Ada, como uma cifrada caricatura do terrífico "Non" do Padre António Vieira e do filme homónimo de Manoel de Oliveira, sobre a guerra, latente no passado dos dois homens? E a mão de Manuel B. decepada por uma mina, não remeterá também de forma transversa para "A Caça" de Oliveira, num universo como o de Lopes povoado por lagos e pântanos e por personagens que se afundam na sua própria impotência? E a lua de George Méliès, aparentemente deslocada no contexto do final do filme, como divindade cinéfila que preside aos feitiços de uma guerra dos sexos herdada da comédia "screwball", em sonho de uma noite fictícia, não lembrará a sua muita diversa (e semelhante pelo excesso das paixões) utilização em "Le Soulier de Satin"?

Tudo o resto converge para esta noção de divertimento, desde a figura do filho que sobe as escadas em patins e se desloca em casa como se a vida passasse por imenso desporto radical. O tratamento do trio também decorre desta componente ligeira e paródica, nunca ocultando, porém, uma dimensão agridoce que impossibilita as relações e a comunicação.

Particularmente curiosa é a participação de Julião Sarmento, no papel de coadjuvante e de desencadeador da tecnologia que invade o filme como uma personagem subterrânea, a propiciar um grafismo moderno a uma velha fábula, a da traição controlada (e civilizada).Todas as contas feitas, "Os Sorrisos do Destino" não acrescentará muito à longa e importante obra de Fernando Lopes, mas constitui uma divertida e inteligente variação sobre os seus temas maiores.

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