Günter, a primeira vítima de uma cidade dividida

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Philippe Caron/Sygma/Corbis

O Muro mudou a vida das pessoas, nalguns casos para sempre: Jürgen Liftin dedicou os últimos 20 anos a tentar saber a verdade sobre o que aconteceu ao seu irmão, morto aos 24 anos, quando atravessava para Berlim-Leste, e a preservar a sua memória. Encontro com um homem difícil.

A antiga torre de vigia está no meio de vários prédios e parece ali totalmente deslocada. Jürgen Liftin, um berlinense de sotaque cerrado e ar rabugento, acaba de receber um grupo de turistas num dos "restos" do Muro menos conhecido de Berlim, que é um memorial do seu irmão, Günter Liftin, a primeira pessoa a morrer a tentar passar de Berlim-Leste para Oeste.

Acabada a visita guiada, os turistas seguirão para outro sítio com uma aura surreal, um antigo cemitério prussiano arrasado pelas autoridades da RDA para fazer passar o Muro - onde hoje se passeiam bicicletas e há piqueniques na relva.

Enquanto isso, Jürgen Liftin pega em três cadeiras, colocando-as à sombra da torre num dia de início de Outono invulgarmente quente em Berlim. Prepara-se para dar uma entrevista a dois jornalistas estrangeiros, a quem vai contar como teve dois irmãos mortos por dois regimes totalitários diferentes, como foi "comprado" pela Alemanha ocidental depois de ter sido preso pela antiga República Democrática da Alemanha (RDA) e como, depois da queda do Muro, lutou para conseguir manter esta antiga torre de vigia no meio do empreendimento imobiliário que agora a rodeia.

Jürgen Liftin dedicou os últimos 20 anos da sua vida ao irmão. Primeiro, procurando os documentos sobre o que aconteceu naquele dia; depois, tentando fazer nesta torre um memorial "às mais de 200 vítimas do Muro" - o número é contestado, porque há quem inclua não só os cidadãos do Leste mortos por soldados da antiga RDA mas também incidentes entre guardas do Leste e polícias ocidentais, ou mesmo entre guardas do Leste.

No dia 24 de Agosto de 1961, ocorreu o acontecimento que determinou toda a vida de Jürgen Liftin: o seu irmão Günter, de 24 anos, tentou fugir para Berlim ocidental, onde tinha emprego e um apartamento pronto para o receber desde Maio. "Mas ele adiou a ida porque o nosso pai tinha morrido e queria ficar um pouco mais com a nossa mãe."

Em Agosto, Günter achou que era altura de partir. No dia 24, pôs-se a caminho da fronteira na zona da estação principal de comboios (Hauptbanhof), sem saber que, um dia antes, tinha sido assinada a ordem das autoridades da RDA para que os guardas atirassem sobre quem tentasse fugir para o outro lado. Foi visto por um guarda, que disparou um tiro de aviso: Günter mergulhou e tentou atravessar o rio a nado. O guarda disparou mais três vezes. "Ainda nadou 300 metros antes de ser atingido", conta Jürgen.

Em casa da família, chegou a noite sem que nada se soubesse. "No dia 25, a Stasi foi a nossa casa e interrogaram-nos. Percebemos que tinha acontecido alguma coisa, mas não sabíamos o quê", lembra Jürgen. "Só no dia 26 é que soubemos: vimos a notícia na televisão ocidental." No dia seguinte, Jürgen foi fazer a identificação do irmão à anatomia patológica. "Não me deixaram ver o corpo, só entregaram os papéis. Não dormi durante uma semana - pensei que o corpo tinha sido destruído com todos os tiros."

Passaram 20 dias e a família recebeu o corpo para fazer o funeral. "Na capela, abri o caixão porque queria ver. E só vi um penso rápido no queixo. Era a ferida da saída da bala, do tiro na cabeça. De um salvo de três, uma bala acertou."

Na altura, Jürgen viu apenas um simples relatório da polícia que não tinha grande informação. Só depois da queda do Muro é que tentou saber o que tinha acontecido, e foi procurar os ficheiros relativos à morte do irmão.

Jürgen Liftin conta ainda como a irmã gémea de Günter morreu também, muitos anos antes. "Ela teve um acidente em 1943", tinha apenas seis anos (e Jürgen oito). "O médico que a tratou pensou que ela era judia e deu-lhe uma dose extra de anestesia, matando-a. Os meus pais souberam isto mais tarde pela enfermeira." Faz uma pausa, antes de concluir: "Tenho dois irmãos que foram mortos por ditaduras."

Atrás da verdade

Com esta história pesada, Jürgen fala pouco de si. Nasceu em 1940, cresceu em Berlim, "nas ruínas da guerra". "Às vezes brincávamos com munições. Um amigo meu morreu com a explosão de uma granada."

Mais tarde, Jürgen até parecia ser um cidadão-modelo da Alemanha de Leste: "Consegui sempre bons empregos, era serralheiro, fazia chaves e cadeados, tinha qualificações, nunca tive problemas." Aos 20 anos casou, um pouco mais tarde teve uma filha.

A vida parecia ir correndo, simples, até a fuga do irmão o deixar contra o regime e colocá-lo sob os radares da Stasi (mais tarde, quando viu os seus ficheiros da polícia política descobriu que pais de colegas das suas filhas as tinham usado para obter informações).

E toda esta vigilância levou a que, passados alguns anos, ele e a mulher fossem condenados por suspeitas de quererem ajudar a filha a fugir para ocidente. Passou então dez meses na prisão. Nessa altura, a República Federal da Alemanha (RFA) pagava por vezes à RDA pelos presos que tinham sido detidos por tentarem fugir, e a RDA aceitava mandá-los para Berlim ocidental. As autoridades da Alemanha Federal também lhe arranjaram um emprego como auxiliar numa escola. "Fui comprado pela Alemanha ocidental", afirma.

Em 1981, ele e a mulher passaram a viver do outro lado de Berlim, mas não disseram nada ao resto da família no Leste. "Estava registado como inimigo do Estado, e se os contactasse podia pô-los em perigo. Por isso não lhes escrevi, passaram oito anos sem saber o que nos tinha acontecido."

Quando o Muro caiu, esperou "dois ou três dias" e foi visitar a família. "Eles ficaram muito surpreendidos."

Foi aí que começou a sua saga para saber exactamente como tinha morrido o irmão. "Foi criada uma equipa especial para investigar os crimes principais do regime e, entre eles, os mortos no Muro. Fui questionado por esta comissão e ofereci-me para ajudar - até então, só os familiares podiam ir ver os arquivos por causa das políticas de privacidade. Eu podia facilitar-lhes o trabalho." Andou por Berlim e não tardou a recolher os documentos, cujas cópias estão hoje expostas no museu na torre.

"Em 1992, sabia finalmente tudo: quem disparou, quem deu a ordem. Estava tudo no arquivo da Stasi", diz. "Herbert Plauer foi o homem que matou o meu irmão."

Mas Jürgen Liftin nunca tentou conhecer Herbert Plauer. "Sei que ainda está vivo, mas nunca o procurei. Se o visitasse, provavelmente tê-lo-ia matado. Soube demasiadas coisas sobre ele pelo seu ficheiro na Stasi: em 1973 tinha sido expulso da polícia por torturar prisioneiros, a seguir foi-se logo oferecer para ser informador. Vive na Saxónia e provavelmente não se atreve a sair de lá e vir a Berlim", diz, antes de se lançar contra os saxões, "que têm a língua mais suja da Alemanha". Liftin não culpa apenas o homem que carregou no gatilho. "Foi ele que matou o meu irmão, mas todo o sistema é responsável. Todo o sistema era uma porcaria."

Enquanto se dedicava a saber a verdade sobre o irmão, tinha outra obsessão: salvar uma torre de vigia sobre o Muro. Só restam duas em Berlim, esta e uma segunda em Treptow. Uma empresa da Baviera comprou o terreno para construir apartamentos e queria demolir a torre. Mas Jürgen Liftin foi a tribunal, sozinho, e propôs instalar ali um museu dedicado às pessoas que morreram por causa do Muro. O tribunal impediu a empresa de destruir a torre e em 2001 decidiu que Liftin poderia usar o monumento, num lote de dez metros quadrados, durante 30 anos, para o seu memorial.

A 24 de Agosto de 2006 - exactamente 45 anos após a morte do irmão - abriu o museu. Demorou todos esses anos porque, durante a construção dos prédios, os trabalhadores da empresa deixaram a torre cheia de entulho e lixo. Liftin é um homem pragmático e até acha que não é mau ter aqueles edifícios todos em volta: "Como há sempre gente a passar, a torre nunca foi vandalizada como a de Treptow", explica.

A entrada é gratuita - embora seja preciso marcar visita - e Liftin mantém o museu com os donativos que recebe dos visitantes. Mais uma vez, por uma razão prática: "Se cobrasse, tinha de declarar como rendimento e pagar impostos", diz com uma franqueza desconcertante.

A torre-museu atraiu 10 mil visitantes no ano passado, apesar de apostar sobretudo em visitas de grupos e de ter como guia um homem com um feitio difícil e um dialecto berlinense cerrado. Há uma particularidade que o incomoda em relação às visitas escolares: "Em seis anos deste museu, recebi várias visitas de escolas, mas nunca vi aqui um aluno do Leste. Eles não querem saber." amaria.joao.guimaraes@publico.pt

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