A medida de todas as coisas
á meses, escolhi para capa do meu último livro, que é uma espécie de autópsia de um vivo, uma ilustração do tratado de anatomia de Andreas Vesalius. Quase toda a gente já terá visto os seus impressionantes esqueletos e os seus homens de músculos à mostra. Tive várias reacções a essa capa, umas de repulsa e outras de fascínio. Achei justo. É de fascínio e repulsa que falamos quando falamos de um corpo humano. E Vesalius é um herói do corpo humano.
Andreas van Wesel, que depois latinizou o nome, nasceu em Bruxelas no último dia de 1514, numa família de médicos (o pai era apotecário do Imperador Maximiliano). Estudou Artes em Louvaina, depois mudou para Medicina em Paris, e terminou os estudos em Pádua, onde ficou a leccionar a cadeira de Cirurgia e Anatomia. Vesalius começou cedo a trabalhar numa nova descrição do corpo humano, que na altura tinha como modelo os estudos antiquíssimos de Galeno (séc. II). Vesalius não só tinha detectado vários erros e imprecisões em Galeno, como achava que havia um problema de base: o médico romano tinha trabalhado a partir de cadáveres de animais, especialmente macacos, e nem sempre a transposição para o corpo humano fazia sentido. Em obras como Tabulae Anatomicae Sex e Institutiones Anatomicae, Vesalius foi publicitando as suas correcções ao mestre, acompanhadas de desenhos minuciosos.
Em 1543 fez uma famosa autópsia pública a um criminoso condenado em Basileia, e passados meses publicou na mesma cidade De humani corporis fabrica libri septem (Sete livros sobre a estrutura do corpo humano). Os portugueses e os espanhóis tinham andado a descobrir o mundo, e agora o belga Vesalius descobria o corpo humano. Produziu, com efeito, o primeiro atlas da anatomia sem crendices astrológicas nem preconceitos filosóficos. Uma análise detalhada que percorre ossos, músculos, sistema circulatório, sistema nervoso, abdómen, coração, pulmões e cérebro, como se fosse um navegante nos mares do Sul.
Vesalius corrigia Galeno não usando as autópsias como demonstração acrítica do já sabido, mas como teste e inquirição. Ainda havia, à época, alguma polémica quanto à admissibilidade ética das autópsias, pelo que o professor de Anatomia andava secretamente a recolher cadáveres de cemitérios ou a usar corpos de criminosos enforcados. Muitas vezes fazia autópsias às escondidas, só com um punhado de alunos, e guardava os corpos em sua casa, o que não deve ter dado grande paz doméstica.
Conhecemos aquele desenho de Leonardo com o homem como medida de todas as coisas. Vesalius levou essa ideia à letra: tudo para ele estava ligado à estrutura e às funções do corpo humano. Essa foi a sua grande obsessão, a mesma que o levou, com apenas 28 anos, a contestar o clássico dos clássicos da Anatomia, para escândalo geral. Não só ele não aceitava que a ciência ficasse eternamente presa à sabedoria dos antigos, como também não admitia que se pudesse estudar o corpo humano sem ser através do próprio corpo humano. Diz mesmo, numa frase mais exaltada, que o que então se ensinava nas universidades podia ser explicado por qualquer talhante.
A Fabrica parte da experiência directa com o corpo, e usa uma linguagem precisa, acompanhada de ilustrações deslumbrantes, mesmo se por vezes assustadoras. Trata-se de um monumento não apenas da Anatomia, mas da edição e das artes visuais. Vesalius escolheu um dos impressores mais prestigiados do seu tempo, Joannis Oporini, que concebeu uma edição luxuosa, e recorreu a artistas do estúdio de Ticiano (provavelmente um Jan van Calcar). O cientista asseverou que os desenhos eram a marca da veracidade, uma vez que os artistas tinham estado presentes na dissecação - o que, aliás, não impedia uma forte componente alegórica em muitos deles. As ilustrações foram tão admiradas que começaram a circular cópias e plágios, para fúria de Vesalius, que entretanto publicou uma edição reduzida da Fabrica, para estudantes, e que viria a rever todo o volume em 1555, já como médico do Imperador Carlos V.
Ao Imperador, a quem dedicou a Fabrica, escreveu: "Nestes tempos auspiciosos - que os deuses quiseram que fossem controlados pela sagacidade de Vossa Majestade - em que todos os estudos estão tão reavivados, a anatomia levantou a cabeça do profundo negrume em que se encontrava, de modo que podemos dizer sem que nos contradigam que parece ter recuperado o seu brilho antigo em algumas universidades; não querendo nada mais urgentemente do que esse renovado conhecimento das partes do corpo humano, eu, animado pelo exemplo de homens tão distintos, decidi fazer o que podia, por todos os meios ao meu alcance. E (...) decidi que este ramo da filosofia natural deve ser recuperado da região dos mortos. Se não atingir entre nós um desenvolvimento mais completo do que noutras épocas, com outros professores de dissecação, pelo menos que chegue a um ponto em que possamos dizer sem embaraço que a presente ciência da anatomia é comprável com a dos Antigos, e que na nossa época nada foi tão desprezado e depois tão incentivado como a anatomia."
Recuperar em corpos mortos a glória e a miséria dos corpos vivos, eis a verdadeira medida de todas as coisas.