Uma vida (tudo menos) normal

No papel, é um filme de vigaristas. Dois irmãos especialistas em contos do vigário "à la longue" fingem-se antiquários para convencerem uma herdeira órfã recatada e reclusa a abrir mão do seu dinheiro. Nada de particularmente novo, dirão. Só que a herdeira órfã (Rachel Weisz em modo Julie Christie-meets-Twiggy) recatada e reclusa sabe karaté, fala francês e russo, toca violino, harpa, guitarra e banjo, espatifa Lamborghinis como quem deita fora tinteiros de impressora e faz malabarismo com serras eléctricas. Depois, o irmão que elabora as vigarices (Mark Ruffalo cool até à quinta casa), planifica-as em homenagem aos grandes escritores russos como Dostoievski ou Tolstoi, com arcos narrativos e subtextos psicológicos. E o irmão que as executa (Adrien Brody sensível-recatado) apenas quer viver uma vida normal. Esquecemo-nos de falar da ajudante japonesa (uma chaplinesca Rinko Kikuchi) que diz três palavras o filme todo, sem contar com o karaoke?

Portanto, por trás do filme de vigarices o que temos aqui é uma velhinha comédia romântica "screwball". Nós não queríamos citar "As Duas Feras" de Hawks, mas pronto, vamos fazê-lo - não porque "Os Irmãos Bloom" queira estar nessa liga, mas só para terem uma ideia do ambiente que se constrói muito rapidamente no segundo filme de Rian Johnson. E, já agora, vamos também dizer que, para além de comédia "screwball", "Os Irmãos Bloom" é também uma elegantíssima metáfora para a ficção, o teatro, a representação... a necessidade de contar histórias que o ser humano parece ter, de definir a sua vida como uma narrativa. (Já dissemos que uma das inspirações de Johnson foi o "Ulisses" de James Joyce e outra a "Odisseia" de Homero?) E, na verdade, o que Bloom, o irmão sonhador (e mais novo) quer é viver "uma vida que não esteja escrita", escapar (se quisermos) ao destino e ser ele a escrever a sua própria história em vez daquela que os outros lhes escrevem. Em suma, tomar as rédeas da sua própria vida.

Até lá chegarmos, contudo, Rian Johnson leva-nos numa surpreendente e fantasista montanha-russa ambientada numa mítica Europa retro-intemporal, para a qual as personagens viajam num barco cujo título vem de um romance de Herman Melville (e que é apenas uma das múltiplas piscadelas de olho Fellinianas num filme onde as citações sonoras de Nino Rota são inúmeras), onde não há telemóveis nem computadores e onde elas vestem feminismo pop anos 1960 e eles sofisticação Costa Leste e burguesia europeia do princípio do século XX. "Os Irmãos Bloom" leva desde o primeiro momento a suspensão da descrença muito mais longe do que aquilo que outros filmes tomam por dado adquirido, e outra coisa não seria de esperar de um realizador que, como primeira obra, assinou o sublime filme negro em versão liceu californiano que foi "Brick" (2005).

"Os Irmãos Bloom" é um filme muito mais ambicioso, cujo conceito central - um jogo de espelhos cruzado de bonecas russas que se desenrola sempre em areias movediças, com um pé na metaficção e outro no entretenimento puro, mas continuamente piscando o olho ao espectador com cumplicidade - exige uma maturidade invejável que não se esperaria forçosamente a um segundo filme. Em vez de se estampar, Johnson ergue-se à altura do desafio com um virtuosismo quase vergonhoso, entre o respeito mais absoluto pelo classicismo e uma vontade rebelde de o dinamitar por dentro, conseguindo o difícil equilibrismo de tom que evita a queda quer na fantasia xoninhas quer na pretensão pedante, entrando pontualmente em levitação transcendental. E o elenco embarca a fundo no jogo como se nunca tivesse feito outra coisa na vida - o que faz todo o sentido quando sabemos que, no fundo no fundo, "Os Irmãos Bloom" é um filme sobre o teatro que há na vida e a vida que há no teatro (ou não terminasse tudo naquele cenário maravilhoso do teatro abandonado de S. Petersburgo).

E ainda não falámos nem do camelo alcoólico nem da fotógrafa epiléptica que quer ser contrabandista e se vem com trovoadas. "Brick" não foi um fogacho e "Os Irmãos Bloom" - que, como se diz às tantas, é uma "mentira que revela a verdade" - é um filme maravilhoso que tem entrada directa para o top-10 do ano.

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