Sokolov, o supremo pianista

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Sokolov voltou a surpreender na última passagem pela Gulbenkian dr

O pianista russo Grigory Sokolov tornou-se um fenómeno de culto, o que não é de estranhar pois trata-se de um artista fora se série. Nos últimos anos temos tido o privilégio de o ouvir assiduamente em Portugal em recitais que esgotam rapidamente e que, invariavelmente, são seguidos por uma longa sucessão de encores (por vezes cinco ou seis!), tão ou mais empolgantes que o concerto.

O público já conhece a generosidade do pianista e a sua energia inesgotável, contrastante com o seu porte austero, e não arreda pé antes de conseguir o bónus. Numa época em que o marketing e a imagem quase tudo comandam, o culto em torno de Sokolov foi-se construindo de forma saudável apenas a partir da própria música e das suas qualidades superiores como intérprete, já que este nem sequer tem atrás de si uma grande máquina publicitária ou uma multinacional do disco a fazer pressão junto do mercado.

Na sua última actuação na Gulbenkian, Sokolov surpreendeu-nos mais uma vez num programa constituído pela Sonata em Ré Maior, D. 850, de Schubert, e pela Sonata em Fá menor, op. 14 (Concerto sem Orquestra), de Schumann. Um dos traços distintivos da sua abordagem do instrumento reside na forma como trabalha até ao limite último os diferentes parâmetros pianísticos e os enquadra numa visão própria, mas coerente, das obras. No Allegro inicial da Sonata de Schubert, o tema rítmico principal foi apresentado com uma incisividade quase violenta em contraste com os motivos secundários mais melodiosos, conferindo uma dimensão imponente plena de fortes contrastes a uma página que por vezes é tratada de forma mais superficial e jovial. Também no Scherzo, Sokolov deu menos ênfase à dimensão brincalhona inerente à tradição deste género musical, preferindo antes construir uma intensa progressão dramatúrgica que teve o seu ponto alto no Trio, cuja dimensão quase trágica se pode justificar pelas sombrias e audaciosas harmonias desta secção da partitura. Já o Rondó final foi um primor de delicadeza e graciosidade, com uma nobre inspiração lírica e meticulosas gradações dinâmicas.

Escusado será dizer que Sokolov faz o que quer do piano, conseguindo variar consideravelmente o seu timbre e enunciar cada linha e cada plano da textura musical com uma cor e uma identidade próprias. Possui também uma paleta dinâmica extensíssima e um sentido da polifonia e da harmonia exemplares. Mesmo se neste recital foi ligeiramente menos perfeito no desempenho do que noutras passagens por Lisboa, estas e outras qualidades estiveram sempre presentes num elevadíssimo nível, contribuindo para uma interpretação esmagadora da Sonata op. 14, de Schumann. Verdadeiro tour de force para o instrumentista que atinge o auge no Prestíssimo possibile final, esta obra relativamente pouco conhecida de Schumann é também um imenso desafio intelectual e exige que o piano se transforme numa grande orquestra, o que Sokolov realizou admiravelmente.

O entusiasmo do público conduziu à habitual sessão se encores (desta vez foram seis!), onde o pianista nos ofereceu magníficas visões de alguns Prelúdios de Chopin, entre os quais páginas tão virtuosísticas e incandescentes como o n.º 8 ou a beleza imponderável do n.º 15, cujo tempo dilatado nos fez usufruir a magia de cada harmonia. Não podia faltar também uma peça barroca, outra imagem de marca de Sokolov: em Les Sauvages, de Rameau, a técnica e o estilo transfiguraram-se, quase fazendo soar o piano moderno como um cravo setecentista.

Cristina Fernandes

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