Morreu António Sérgio, uma voz da rádio que marcou a geração dos anos 80
Morreu ontem o Som da Frente, António Sérgio, radialista, divulgador de música, símbolo para as gerações do pós-25 Abril
No papel era radialista. Às vezes também escrevia. Trabalhou com editoras. Era uma voz histórica da rádio portuguesa do pós-25 Abril, tendo começado em 1968 na Renascença. Mas há muito que não era só isso. Era também símbolo. De militância e de fé pela música. E também guia para uma geração de melómanos - principalmente para os que cresceram na década de 80 - que viviam as coisas da cultura popular de forma entusiasta, como estilo de vida. António Sérgio faleceu ontem, aos 59 anos, na sequência de um ataque cardíaco. O funeral segue hoje para os Prazeres, depois da missa de corpo presente, às 15h, na Basílica da Estrela.
A sua voz, profunda e grave, reconhecia-se de imediato, em programas de rádio que fizeram história (Rotação, Rolls Rock, Som da Frente, A Hora do Lobo, etc.) e nas locuções para publicidade ou TV, onde era um dos profissionais mais requisitados.
"Era um grande profissional, uma referência, um mestre. Alguém que deu um contributo enorme para a divulgação de música nova. Tinha grande visão de futuro, era o som da frente", afirmou ontem Luís Montez, da produtora Música & Coração e responsável pela Radar FM, a rádio onde Sérgio operava desde 2007. Ele e Ana Cristina Ferrão, a mulher que o acompanhou desde sempre.
João David Nunes, um dos fundadores da Rádio Comercial, casa de Sérgio durante largos anos, destacou à Lusa a "qualidade inacreditável que sempre teve de estar à frente, de ser capaz de ouvir e perceber aquilo que iria ser determinante". Outro homem da rádio, António Macedo, destacou ao PÚBLICO as mesmas características: "Às vezes não acertava, mas na maior parte acertava." E acrescenta: "Era uma idealista da música e da rádio. É insubstituível."
É indissociável do Portugal cultural emergente no pós-25 Abril. A sua influência era tal que o programa Som da Frente começou a ser também a designação utilizada para identificar um caldeirão de músicas populares alternativas. Há três anos, recordando os anos 80 em Portugal, dizia-nos que "nessa altura divulgar música nova tinha um rótulo de militância e era objecto de admiração, até pelo país que Portugal era, onde o peso do Antigo Regime estava fresco. Através da música existia esforço para acompanhar um comboio de cultura, de alegria de viver que era irreversível. Não era só música, era uma nova maneira de pensar, que tem a ver com livros ou filmes." Esse período, acrescentava, "foi uma bóia de salvação, uma forma de dizermos "vamos sair daqui", do marasmo dominante em Portugal".
O cronista do PÚBLICO, Miguel Esteves Cardoso, foi, há dois anos, uma das figuras públicas que se insurgiram contra o afastamento de Sérgio da Rádio Comercial, depois de dez anos de Hora do Lobo. "Desde os anos 70 que agentes sorrateiros se agacham atrás dele, tentando puxar-lhe a cadeira, a ver se cai", escreveu. "Mas o homem sempre esteve ocupado de mais para reparar. Fincou os pés, sacou dos discos e fez o que sempre fez: o que lhe estava na real gana."
Quando as rádios - e a indústria da música - sofreram uma transformação profunda, principalmente a partir do final dos anos 90, a sua influência esbateu-se. Zé Pedro, guitarrista dos Xutos & Pontapés, diz que "no início, era a única personagem do meio a quem dávamos a ouvir as nossas cassetes. Foi ele o "professor" do nosso primeiro disco. Quando arranjou editora [Rossil] produziu-nos e estabelecemos de imediato uma cumplicidade muito forte. A sua morte é uma perda enorme."
Adolfo Lúxuria Canibal, dos Mão Morta, evoca também uma relação especial. "Sempre lhe demos primazia nos trabalhos que íamos fazendo. Era uma espécie de agradecimento pelo trabalho que ele fez e pelo crescimento musical de gerações, nas quais eu me incluo."