Variações da família de António
Se fosse vivo, António Variações faria 65 anos em Dezembro. Espalhados um pouco por toda a parte, os oito irmãos ainda vivos do cantor mantêm-no presente. Fomos conhecer José António, cabeleireiro, Jaime José, advogado, e Carolino Alberto, carpinteiro.
No pequeno e centenário "cemitério parochial" da freguesia de Fiscal, em Amares, Braga, há várias lápides com o sobrenome Ribeiro. António Variações, o cantor falecido fez em Junho 25 anos, nascido na terra e ali sepultado, chamava-se também António Joaquim Rodrigues Ribeiro. É o nome que está escrito no jazigo de mármore escuro junto à fotografia do artista barbudo e excêntrico que Portugal ainda não esqueceu e continua a admirar. No próximo dia 12, em Lisboa, vão ser leiloadas letras de músicas, fotografias, roupas, posters e outros objectos pessoais do iconográfico cantor, incluindo várias imagens captadas junto à casa dos pais, nessa bucólica Fiscal que Variações visitava regularmente no Natal e na Páscoa.
Nascido no lugar de Carrazedo a 3 Dezembro de 1944, pelas seis horas da manhã, António "Variações" Ribeiro tem a memória ainda perpetuada num busto colocado no centro de uma pequena rotunda à margem da estrada que vai de Braga para Caldelas: quem passa vê o rosto esculpido de perfil, exibindo um dos traços fisionómicos mais persistentes da família Ribeiro, um certo formato do nariz que se repete pelo menos em José António, Jaime José e Carolino Alberto, três dos dez filhos do casal sepultado ao lado de António Variações.
Dos dez rebentos de Deolinda e Jaime (sete rapazes e três raparigas), oito estão ainda vivos e de boa saúde, embora espalhados um pouco por toda a parte e com as mais diversas profissões. José António foi barbeiro nos arredores de Londres e está reformado. Delfim foi colono em Angola e, depois da independência, zarpou para os Estados Unidos. Maria Amélia esteve também emigrada em Inglaterra. A irmã Maria de Fátima foi para França. Há irmãos também em Chaves, no Estoril ou em Almada e o próprio António foi emigrante em Londres e em Amesterdão, e também barbeiro de profissão no primeiro salão unisexo de Lisboa.
"Dando razão ao nome artístico que o meu irmão escolheu, somos todos muito variados", graceja Jaime Ribeiro, o advogado com escritório montado num sétimo andar da lisboeta Avenida 5 de Outubro, gestor da herança de Variações. O motivo da diáspora e da variedade é simples: a família era pobre e numerosa, pelo que, por volta dos 12 anos, foram quase todos obrigados a fazer-se à vida, rumando a Lisboa. "O meu pai tentava sempre que fôssemos para o Porto, para estarmos mais perto, mas viemos todos parar a Lisboa e, daqui, cada um para seu lado", conta Jaime.
Para António, recorda, estava reservado outro destino. O pai queria que fosse carpinteiro e fê-lo aprender a arte numa fabriqueta de brinquedos em Caldelas, próximo de casa, mas o rapaz não se afeiçoou àquele trabalho. Protestava todos os dias e acabou por levar a sua avante, ilustrando precocemente o refrão de uma das suas canções: "Muda de vida se tu não vives satisfeito." José António, o cabeleireiro, Jaime José, o advogado, e Carolino Alberto, o carpinteiro, fizeram o mesmo.
José António Ribeiro
71 anos, cabeleireiro reformado
Todas as manhãs diz:"Bom dia, António"
José é um homem pequeno e discreto, calvo e com os olhos muito azuis. Fazem lembrar os olhos de António Variações e, talvez por isso, reconhecemo-lo à porta do escritório do irmão Jaime, em Lisboa, ainda antes de nos termos apresentado. Olha-se para José e é possível imaginar como seria António se atingisse os 70 anos de idade e tivesse chegado a ficar careca.
Desde a morte de João Manuel, o primogénito, José adquiriu o estatuto de irmão mais velho dos Ribeiro. Apesar de viver em Inglaterra há quase 50 anos, não se lhe notam grandes inflexões no português e refere-se ao irmão cantor como "o nosso António". E "o nosso António" continua presente na vida do irmão José: numa parede da casa de Beaconsfield, nos arredores de Londres, há uma fotografia do cantor em grande formato. "Todos os dias, quando passo por lá, lhe digo: "Bom dia, António!"", revela a sorrir, com uma simpatia contagiante.
Tal como sucedeu aos outros irmãos, José António saiu de Fiscal com 12 anos, em 1949, e fixou-se em casa de uns primos de Lisboa, um dos quais tinha uma barbearia em Carenque, na qual aprendeu os rudimentos da profissão que exerceu até 1971, ano em que se reformou. "Aquilo era uma saloiada, os clientes eram trabalhadores das pedreiras. Entravam na barbearia cheios de pedaços de pedra na cara e davam cabo das navalhas todas. Também lá vivia o Max, aquele da Madeira que cantava a Mula da Cooperativa. Cortei-lhe o cabelo muitas vezes."
Em 1961, arriscou emigrar para Londres sem saber uma palavra de inglês. Teve de esperar uma semana num hotel de Calais pelo contrato de trabalho (também não sabia uma palavra de francês) e, depois, foi servir numa casa de pessoas idosas. "Vi-me à rasca, mas uma pessoa tem que se desenrascar", recorda. Seguiu-se um trabalho num hospital de Windsor, onde começou a fazer horas extraordinárias numa barbearia de uma povoação próxima. Ao fim de três anos passou a trabalhar exclusivamente como cabeleireiro e, em 1965, já casado com uma espanhola, sua mulher até hoje, abriu o primeiro estabelecimento próprio. "Depois fui abrindo outras lojas e vendendo-as, sempre com lucro", conta José.
Quando António Joaquim, o Variações, emigrou também para Inglaterra, em 1970, para trabalhar num colégio, visitava, às vezes, o irmão mais velho em Beaconsfield, nos dias de folga. "Mostrava muito interesse pelo meu trabalho, fazia muitas perguntas, mas acho que só em Amesterdão [1974] é que começou a trabalhar como barbeiro", diz José, que ficou tão surpreendido com essa opção como quando descobriu, anos mais tarde, que António era cantor. "Quando foi o primeiro espectáculo dele, Toma o Comprimido, calhou eu estar cá em Lisboa nessa altura. Fui vê-lo. Até aí não conhecia essa sua capacidade. Tinha muita presença em palco e lembro-me de ter pensado: "Este gajo vai longe"."
José habituou-se a ter orgulho no irmão António, uma pessoa "com um carácter muito especial", carinhoso, "especialmente com a mãe". "Era uma coisa extraordinária, o nosso António e a mãe", confessa. "Tenho uma vaidade nele que não queiras saber. Foi sempre o irmão que tentou ajudar os outros, aqueles que tinham mais dificuldades. Era um homem com um talento excepcional, muito criativo e muito à frente do seu tempo. Se fosse inglês, seria mundialmente conhecido", continua José. "Foi pena ter morrido tão cedo."
Dos pertences do irmão, "muitos dos quais desapareceram", José só agora tomou posse de algumas peças da antiga barbearia É Prò Menino e Prà Menina, que António abriu em Lisboa depois de ter trabalhado com Isabel Queiroz do Vale. "A minha mulher gostava muito dele, os meus filhos também. A minha filha Jacqueline até vai acompanhar o leilão pela Internet, porque quer comprar algumas coisas", revela. O filho Nicholas, baterista, encontrou outra forma de recordar o tio: "Está sempre a ouvir as canções dele e toca-as na bateria."
Reformado, José tem uma casa em Setúbal, onde vem regularmente passar férias. Veio em Outubro porque confundiu as datas do leilão dos objectos de Variações e viajou um mês antes da data. No final da conversa, o antigo barbeiro garante que, "se fosse vivo e pudesse ver o que está a acontecer", António "morria outra vez", "espantado" com a forma como se tem perpetuado na memória de todos e como continua a suscitar tanto interesse.
Jaime Ribeiro
57 anos, advogado
O único privilegiado da família
Os Ribeiro de Fiscal são uma família variada, mas Jaime, 57 anos, é o mais variado de todos: foi o único dos dez irmãos que estudou e acabou um curso. É advogado. E, nessa qualidade, é também o gestor do espólio pessoal e artístico de António Variações. "Sou o representante dele e cobro os direitos de autor, que são depois distribuídos pelos irmãos. Alguns ainda vivem com carências", explica.
Na qualidade de representante legal do irmão, Jaime Ribeiro foi também o pivot do leilão de objectos pessoais do cantor, que a leiloeira P4 promove este mês no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. As letras de músicas, fotografias, roupas e colecções de Variações estavam à sua guarda desde o falecimento, a pedido da mãe. "Foi uma dor de cabeça para tirar tudo do apartamento. O meu irmão era um coleccionador incrível: de santinhos a frascos de tinta permanente, coleccionava tudo", revela. O advogado conta que a ideia original passava pela criação de uma casa-museu que guardasse a memória do artista. Como, porém, nem em Lisboa nem em Amares houve interesse em acolher a iniciativa, a família aceitou vender os objectos.
"Há a ideia de tentar aproveitar o facto de coincidirem os 65 anos de idade com os 25 anos do falecimento para recordar o António", explica Jaime Ribeiro, adiantando que está ainda prevista a publicação de um álbum de banda desenhada evocativo da vida do irmão, e pondera-se o lançamento de uma linha de roupa António Variações. A marca está registada e o logótipo está escolhido - um arranjo gráfico com várias tesouras de cores diferentes, evocando algumas das fotografias mais conhecidas de Variações, nas quais ele surge com uma tesoura como se fossem óculos, ou preparando-se para enterrá-la no peito. Faz sentido: a tesoura é comum à actividade do barbeiro que ele também foi e à do criador de moda. "O Luís Trindade [da leiloeira P4] contactou uma estilista e parece que existe interesse nisso, até porque o António também era, de algum modo, um ícone da moda", diz Jaime.
O irmão advogado recorda que chegou a mediar o primeiro contrato discográfico que António Variações assinou com a Valentim de Carvalho. "Ele procurou-me porque achava que o contrato não estava a ser cumprido, eu escrevi uma carta e parece que resultou. Pouco tempo depois foi chamado para gravar o primeiro maxi-single, que incluía o Estou Além e o Povo que Lavas no Rio, da Amália. A Amália não gostou, zangou-se, mas depois fizeram as pazes. O António adorava a Amália, tinha todas as revistas em que ela aparecia. Ela era uma musa para ele", recorda Jaime Ribeiro, que evoca também o tempo em que o irmão aproveitava as idas a Fiscal para cantar fados da Amália no quintal: "Como tinha uma voz muito aguda, os vizinhos todos ficavam a saber quando ele estava em casa."
"Ele sempre foi diferente. Preocupava-se com a higiene e obrigava-nos a lavar os dentes, coisa que, naquela época, na aldeia, era impensável. Usávamos limão, porque não havia pasta dos dentes", conta Jaime, sentado atrás da secretária do escritório num sétimo andar da Avenida 5 de Outubro, onde chega, persistente, o rumor do trânsito de Lisboa. "Trabalhei sempre em Almada, onde moro, e montei este escritório mais por causa do meu filho, que também é advogado, mas ele passa mais tempo no escritório do lado de lá e acabo por ser eu quem dá mais uso a isto", justifica. "Mas a advocacia, para mim, é só um trabalho. Faço-o com gosto, mas não para enriquecer. Há coisas mais interessantes para fazer", acrescenta.
Diferente à sua maneira, Jaime conta como escapou ao destino que estava traçado para todos os irmãos da família Ribeiro: "A minha professora primária foi falar com os meus pais no fim da quarta classe e disse-lhes que era uma pena se eu deixasse de estudar. Como sabia que não havia dinheiro para isso, já levava a ideia de lhes sugerir que eu podia entrar para um seminário. Para a minha mãe, ter um filho padre era quase um sonho. Depois foi um missionário lá a casa, todo vestido de branco, e as coisas compuseram-se. Só tinha que arranjar um enxoval e também não me desagradava nada a ideia de ser padre."
Em 1962, Jaime entrou num seminário de Viana do Castelo, em 1964 passou para o de Fraião, em Braga, e ao fim de quatro anos acabou por perceber que não tinha vocação para padre. "A minha mãe chorou quando soube", recorda. O filho conseguiu, ainda assim, terminar o ensino secundário do Liceu de Braga e entrar, depois, na Faculdade de Direito de Lisboa, onde estudava e trabalhava. "Fui o único privilegiado da família", reconhece.
Para além de advogado, Jaime Ribeiro é dirigente dos escuteiros há 27 anos, faz voluntariado na paróquia em Almada e herdou do pai, que era um exímio tocador de cavaquinho e harmónica, o gosto pela música. Integra, com o filho mais velho, o coro da Universidade Católica e dirige o coro da sua paróquia. O género musical é bem diferente daquele que António Variações praticou, é verdade. Mas Jaime, que reconhece que o irmão nunca se interessou pelas coisas da igreja, tem ainda guardada uma última revelação: "O António chegou a dar catequese na tropa, em Angola."
Carolino Alberto Ribeiro
50 anos, carpinteiro
Ainda lhe chamam Variações
Onde mora o senhor Carolino, o irmão mais novo de António Variações? "Sobe por aí, vira à direita e é uma vivenda sem telhado", explica um rapaz do lugar de Carrazedo, na freguesia de Fiscal. Ainda assim, perdemo-nos. Ao telefone, a esposa de Carolino dá novas instruções e repete: "É uma vivenda sem telhado." E a vivenda sem telhado é, afinal, uma casa bonita e isolada, de linhas modernistas, em cuja sala, nas paredes, apenas há fotografias do cantor, performer e cabeleireiro que deu notoriedade a Fiscal - mais concretamente, duas fotografias (uma delas com António na companhia da mãe) e um desenho feito em 1973 por um retratista de rua, em Roma, quando António Variações visitou a capital italiana. E há ainda o disco de platina conquistado pelo CD O Melhor de António Variações.
Carolino e a esposa recebem-nos no intervalo para o almoço, pouco antes de o irmão de António ter de retomar o trabalho numa carpintaria vizinha. Podemos fotografá-lo lá, a trabalhar? "Isso não, o patrão não gosta", rejeita Carolino, que tem o aparador da sala pejado de CD de Variações e recortes de jornais e cartazes, tudo aquilo que, falando do irmão cantor, tenha chegado a Fiscal. "Comenta-se agora muito mais sobre ele do que antes. Há colegas que ainda me chamam Variações e também já chamam Variações ao meu filho mais pequeno, que tem cinco anos e já canta as canções do tio, aquelas dos Humanos, aquela do corpo é que paga", conta Carolino. E ele gosta? "Gosta. Sabe que Variações é o tio que está no Jesus, no céu", esclarece a esposa.
Carolino herdou, assim, a profissão que chegou a estar reservada para António, herdou-lhe o nome artístico no trato comum entre os moradores de Carrazedo e herdou também a obrigação de cuidar da campa de António no cemitério de Fiscal, uma vez que é o único dos dez irmãos que nunca saiu de Amares. Aquando da morte de António, o mais novo dos Ribeiro chegou ainda a herdar algumas das roupas do cantor que estavam em casa dos pais: "Usei muitas calças e botas dele. Mas a maior parte das roupas foram doadas a uma senhora da Cruz Vermelha. Eram para aí cem pares de calças. Nunca pensámos que tivessem algum interesse", comenta o carpinteiro, algo surpreendido por constatar que há quem possa estar interessado em adquirir em leilão as antigas indumentárias do irmão António.
Cai em Fiscal uma chuva miudinha e ainda hesitante que parece favorecer a nostalgia, mas Carolino reconhece que tem do António apenas uma memória "um bocado vaga", já que era ainda uma criança quando o irmão já era um homem feito. Mas mantém dele uma imagem viva. "Para mim não faleceu, está sempre presente." Aponta o António numa fotografia a preto e branco do casamento de Maria de Lurdes, uma das irmãs, e confirma que o cantor sempre foi "diferente dos outros todos, no agir e no vestir". "Era muito reservado e não gostava de se expor aos vizinhos quando cá vinha no Natal, na Páscoa e no Verão. Quando vinha alguém a casa, queria primeiro saber quem era antes de aparecer e mudava sempre de roupa para se apresentar, para procurar não ferir a sensibilidade do pai e da mãe, que não gostavam muito que se vestisse daquela maneira", recorda.
"O António era muito cómico e crítico, sempre atento a coisas que nós nem sabíamos que existiam. Gostava de ajudar no jardim e de ir à procura de pinhas, o que nos irritava um bocado, já que aquilo que para ele era um passatempo, para nós era trabalho. Mas ninguém pensava que ele ia dar um cantor", graceja Carolino, hoje visivelmente orgulhoso da carreira que o irmão conseguiu e da forma como continua a ser recordado e recriado. "Os Humanos foram uma coisa fantástica", diz.
Os filhos de Carolino são ambos fãs e o mais velho, de 15 anos, grava os CD para os colegas, guarda-os no quarto e obriga os pais a procurá-los quando, como agora, contam que em Inglaterra, no casamento de uma sobrinha, os ingleses que lá estavam, e não sabiam uma palavra de português, adoraram uma música do António que quase ninguém conhece, Minha cara sem fronteiras, do álbum Dar & Receber. "É uma canção fantástica", conclui Carolino antes de correr para a carpintaria. a
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