Salazar nunca se preocupou com a doutrinação ideológica, porque isso viria cristalizar o Estado Novo
É hoje lançada em Washington a primeira biografia académica de Oliveira Salazar, tituladaSalazar - A Political Biography. O historiador Filipe Ribeiro de Meneses, de 40 anos, radicado em Dublin, é o autor da obra que faltava na historiografia internacional.Por Maria José Oliveira
aAo longo de sete anos, Filipe Ribeiro de Meneses, historiador português radicado em Dublin, Irlanda, trabalhou quase exclusivamente numa obra académica inédita na historiografia internacional - a biografia política de Salazar. O resultado da pesquisa traduziu-se no livroSalazar - A Political Biography, um volume com mais de 600 páginas com a chancela da editora nova-iroquina Enigma Books. O livro é apresentado hoje na Embaixada portuguesa em Washington, às 18h locais (22h em Lisboa), pelo embaixador João de Vallera, com a presença do autor. Ontem, Ribeiro de Meneses falou sobre o seu livro na Biblioteca da Universidade de Georgetown, na mesma cidade.
Em mais de 600 páginas, o autor, professor na National University of Ireland, tentou compreender as decisões do antigo presidente do Conselho durante as quatro décadas do regime. Mas não foi fácil. Porque o cariz centralizador de Salazar nos mais diversos assuntos "dificulta, intencionalmente ou não, o acesso do historiador às suas opiniões, ou à maneira como estas se formavam". O P2 entrevistou Ribeiro de Meneses, por correio electrónico.
O que é que mais o surpreendeu na investigação que fez para esta biografia?
A necessidade de separar Salazar, enquanto homem de Estado e pensador, do Estado Novo. Muitas vezes falamos de salazarismo (um termo que ele abominava) e Estado Novo como sendo a mesma coisa: mas o Estado Novo nunca cessou de evoluir, enquanto as ideias de Salazar foram sempre mais ou menos as mesmas. O regime nos anos 50 e 60 era muito diferente do que tinha sido nos anos 30, e sugiro que não devemos cair na tentação de ver no Estado Novo dos anos 30 a verdadeira face do salazarismo. A sua principal prioridade era manter-se no poder; para o fazer precisava de pactuar com uma série de forças nacionais e internacionais. Conseguiu sempre impedir a instalação permanente de qualquer facção no poder, porque precisava de ambiguidade para ter espaço de manobra. Tinha muitas maneiras de fazer asfixiar as iniciativas de que desconfiava, mas que pela força dos seus apoiantes era obrigado a aceitar.
Este facto traz-me à segunda grande surpresa: o sentimento de fraqueza muitas vezes manifestado por Salazar e aqueles que o cercavam. A lista de inimigos, rivais e potenciais traidores era enorme, mas Salazar não podia lidar com eles como fizera Franco, fuzilando-os. Salvo algumas excepções que não cabiam dentro do regime, era preciso ouvir, negociar e pactuar constantemente e, sobretudo, manter a ambiguidade dominante em torno das grandes questões. República ou monarquia? O que fazer com a Assembleia Nacional? O que era, afinal de contas, o corporativismo português? O melhor era não dizer nada de concreto, para não hostilizar ninguém.
Escreve no livro que Salazar é, porventura, o ditador do século XX mais difícil de biografar. Quais foram as maiores dificuldades que enfrentou para realizar este livro?
São tantas as dificuldades... Em primeiro lugar, a falta de outras biografias razoavelmente cuidadas. Depois, a duração da estada de Salazar no poder e a vastidão do espólio a consultar. O Arquivo Salazar é um labirinto sem fim; quanto tempo é necessário ao historiador para consultar o que levou 40 anos a ler e a escrever? Por onde começar? Como decidir que se está em condições de passar à escrita?
Por fim, há a maneira de trabalhar de Salazar, nascida, em parte, do seu temperamento. Não só trabalhava muito - muito mais do que, por exemplo, Franco -, centralizando na sua pessoa questões que outros governantes deixavam a colaboradores de primeira ou segunda ordem, mas, pior, fazia-o de uma forma que dificulta, intencionalmente ou não, o acesso do historiador às suas opiniões, ou à maneira como estas se formavam. Havia uma correspondência oficial, muito formal e por vezes desprovida de grande interesse; uma correspondência semi-oficial, em que Salazar alargava os seus horizontes e discutia as opções que o confrontavam; e, por fim, os contactos directos com os seus interlocutores. Porque em Portugal poucos políticos escreveram as suas memórias, ou publicaram os seus diários, quantas destas conversas se perderam...
A maior limitação foi, como escreve, tentar "entrar na cabeça de Salazar"?
Esta foi a minha primeira biografia, e imagino que todos os biógrafos passem por esta situação: terão ou não feito justiça à figura que tentam retratar? A natureza cuidadosa de Salazar tornou os seus pensamentos íntimos difíceis de sondar; e é sobretudo nos momentos de dúvida e de hesitação que estes transparecem nas fontes que restam. Numa biografia política como esta, a questão é menos importante: interessa mais o que de facto aconteceu do que as razões por detrás das decisões tomadas.
Escreve que Salazar foi o único ditador do século XX que chegou ao poder devido ao reconhecimento dos seus méritos académicos e intelectuais. Essa é a diferença substancial que o distingue de Hitler, Franco e Mussolini?
Sem dúvida. Hitler e Mussolini lideravam forças políticas importantes e, em momentos de grande instabilidade política, foram convidados a partilhar o poder, aproveitando-se depois de circunstâncias favoráveis para criar uma ditadura. Franco era, desde os anos 20, a estrela do Exército espanhol, e venceu uma guerra civil, beneficiando não só da sorte das armas como ainda da morte de muitíssimos rivais dentro da Espanha "nacional".
Salazar integrava uma formação política - o Centro Católico - disposta a participar na governação do país, mas marginalizada pelos partidos republicanos. Foi graças ao 28 de Maio que esta situação se alterou. Salazar foi, primeiro em 1926, e depois em 1928, convidado a entrar no Governo não porque representava uma força considerável, mas porque era um técnico capaz de ajudar os militares a endireitarem as finanças nacionais. E se Salazar se transformou em presidente do Conselho foi acima de tudo porque desempenhou a missão com que foi incumbido, impondo-se aos seus rivais pela competência técnica.
Salazar quis apenas deixar um legado político? Na sua investigação, refere que ele parece ter tomado precauções para que ficasse registado apenas o queconsiderava essencial.
Salazar queixava-se frequentemente de não poder deixar uma obra, ou um monumento, que marcasse a sua estada no poder. No seu entender, muito se tinha feito em Portugal e em África, mas eram sobretudo obras pequenas. O mais que conseguiu foi a Ponte Salazar. Por duas vezes, em épocas bem distintas, lançou a ideia de um grande monumento em Sagres, em honra do Infante Dom Henrique - e por duas vezes a tentativa se saldou por um fracasso.
Quanto ao legado político, houve uma nítida tentativa de criar uma imagem de Salazar, e de fazê-la perdurar na história: foi essa a principal missão do SPN [Secretariado de Propaganda Nacional] e de algumas publicações, tais como osDiscursos, osDez Anos de Política Externae até o livro de Christine Garnier,Vacances avec Salazar.
Quanto ao Arquivo Salazar, é-nos impossível saber se houve uma selecção cuidadosa do que nele foi guardado. A doença surpreendeu-o enquanto era presidente do Conselho, sem nenhuma intenção de se retirar, e o seu arquivo estava em pleno funcionamento. Se alguma "limpeza" se deu ao arquivo, ter-se-á dado depois da doença, ou da morte.
Há ainda outro ponto a referir: embora no arquivo existam milhares de relatórios e informações oriundas da PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado], são poucos os registos de contactos directos entre Salazar e os directores da polícia secreta para discutir casos concretos, estudar opções. Voltamos aqui à sua maneira de trabalhar, à distinção entre o público e o privado. Ou Salazar discutia o caminho a seguir com Silva Pais [director da PIDE de 62 a 74] e os seus antecessores de forma directa, em pessoa ou pelo telefone, ou então dava-lhes carte blanche para agirem como melhor entendessem. De qualquer forma, não nos podemos iludir sobre um ponto essencial: a responsabilidade suprema pelas acções da PIDE cabia-lhe a ele, Salazar. Quando lhe chegavam às mãos queixas sobre o tratamento de prisioneiros políticos, por exemplo, a quem é que encomendava uma investigação sobre o assunto? À própria PIDE.
Dedica uma parte substancial do livro às décadas de 30 e 40. Entende que estes anos determinaram a longevidade do ditador?
Quando discuti o livro com a Enigma Books, falámos longamente sobre a dimensão da obra e as questões a focar. Ficou acordado um livro com 400 páginas. E foi publicado um livro com mais de 600. Tive de sacrificar secções inteiras para poder lidar melhor com certas questões, especialmente a II Guerra Mundial e a Guerra Colonial. Porém, não devemos privilegiar uma época do Estado Novo e ver nela o "verdadeiro" Salazar, ou a aplicação sem restrições das suas ideias. Os anos 50, com os planos económicos e a internacionalização da economia europeia, são tão dignos de registo como os anos 30, marcados pela criação do Estado corporativo e pelo estabelecimento de organizações tais como a Mocidade Portuguesa e a Legião Portuguesa. Foi nesta capacidade de evolução do regime - fruto da enorme ambiguidade sobre questões essenciais que alimentou ao longo dos anos - que residiu o segredo da longevidade de Salazar. Teria sido impossível ao Estado Novo sobreviver nos anos 50 e 60 se mantivesse a fachada e as práticas dos anos 30.
Apresenta três explicações para a vontade de Salazar se manter no poder: acreditava ser um homem providencial; julgava que, sem ele, o regime colapsaria; e, já depois de 61, entendia que tinha de manter as colónias até o Ocidente "recuperar o juízo". São justificações que se enquadram em diferentes períodos da ditadura.
Refiro duas que se manifestam até 1961, quando a defesa das colónias se lhes veio juntar. Salazar falava e escrevia regularmente sobre o papel da Providência na sua vida. Podemos reduzir este facto a um simples tique retórico, reproduzido e ampliado pela máquina propagandística.
Mas é na correspondência de Cerejeira com Salazar que esta interpretação da "missão" se faz mais abertamente. Muita desta longa correspondência tem um fim político, com Cerejeira lutando por preservar boas relações entre o Estado e a Igreja. Mas custa a crer que Cerejeira insistisse tanto, e tão regularmente, sobre este ponto de vista, se suspeitasse que ele não fosse partilhado por Salazar - ou pelo menos que, quando Salazar entrou no Governo, ele não o partilhasse. Esta visão de um homem imbuído de um espírito de missão, pelo menos em parte da sua longa carreira, repugna a muitos, admiradores e inimigos. Salazar descrevia a sua vida pública como um calvário, uma cruz a carregar, e custa-nos levar tal explicação a sério, pois ela concedia-lhe vantagens políticas importantes.
A outra interpretação é mais tradicional, e de acordo com a historiografia existente: Salazar era o ponto fulcral do regime, o único capaz de manter o Estado Novo intacto e de preservar os interesses que este servia. Parece-me, porém, que as duas interpretações - uma conjuntural, a outra pessoal - podem coexistir pacificamente.
Salazar nunca se preocupou com a doutrinação ideológica dos portugueses. Esta constatação, aliada às transformações do mundo pós-II Guerra Mundial, terá contribuído para o início do fim do Estado Novo?
Podia publicar-se um longo volume composto somente por cartas recebidas por Salazar, pedindo-lhe para iniciar um processo de doutrinação ideológica. Nunca o fez porque sabia que tal doutrinação viria cristalizar o Estado Novo, retirando-lhe a ele a liberdade de acção que desejava manter. Por outras palavras, a doutrinação era o fim do Estado Novo. Porque quem se opusesse ao compromisso ideológico determinante nessa doutrinação virar-se-ia contra o regime.
A historiografia portuguesa só agora começa a dar atenção ao género biográfico. E até hoje ninguém se ocupara da biografia mais óbvia. Como é que interpreta esta situação?
São muitas as razões, a começar pela rejeição sistemática, ao longo de várias décadas, da importância da história política - do papel do indivíduo na História.
Nos últimos dez anos, o panorama alterou-se e muito, mas Salazar representa um obstáculo tremendo: são quarenta anos a descrever - quarenta anos da vida de um homem, de um país, e mesmo da Europa, pois Portugal não estava isolado do resto do continente. E como há opiniões fortes e feitas sobre Salazar e o Estado Novo, parece-me que ninguém quer provocar a ira do resto da profissão, ou daqueles que pensam que tentar entender Salazar significa automaticamente tentar desculpá-lo.
Por fim, um biógrafo de Salazar tem de lidar com a concorrência colossal dos seis volumes escritos por Franco Nogueira. Parece-me, porém, que os historiadores têm de ir ao encontro do público, sobretudo desde que apareceu a Internet. E não há dúvida de que os portugueses interessam-se por Salazar.