Ocrashde 1929 que ajoelhou a América não marcou Portugal
As exportações e os rendimentos caíram, o desemprego aumentou e registaram-se falências, mas o país conseguiu resistir à crise
Hoje, há precisamente 80 anos, os jornais noticiavam uma queda abrupta no mercado de capitais de Nova Iorque. Sem que ninguém ainda o soubesse, eram os primeiros sinais de que algo de grave se estava a passar e um dos pontos de partida para a grande depressão que marcou a década de 30 do século XX.
O dia 24, como sustenta John Kenneth Galbraith , professor, conselheiro de vários presidentes dos EUA e autor do livroCrash de 1929, escrito em 1954, "é o primeiro dos dias que a História (...) relaciona com o pânico de 1929". Milhões de acções foram colocadas no mercado, "muitas delas a preços que destruíam os sonhos e as esperanças" dos seus detentores, que expressavam uma "incredulidade horrorizada", escreveu Galbraith.
O desastre, esse, verificou-se nos dias 28 e 29 de Outubro, sendo este último dia marcado por uma enorme cascata de vendas a qualquer preço. As ondas de choque não tardaram a afectar outros países, Portugal incluído. No dia 30 de Outubro de 1929, o jornal O Século fazia manchete com uma quadrilha de ladrões de Faro que caíra nas mãos da polícia, noticiava um caso de falsificação de Bilhetes do Tesouro e os novos cartazes da campanha do trigo, mas não deixava de incluir meia dúzia de linhas onde dava conta da queda do mercado de capitais norte-americano, já apelidada de "grande crise bolsista". "Os círculos oficiais", escrevia o jornal português, "não consideram duradoura a nova corrente de vendas". Um discurso de psicologia positiva que não vingou.
Embora nunca tenha dado grande destaque aos dias negros docrash,O Século continuou a acompanhar o assunto, e, no dia 1 de Novembro, relatava que, "entre os efeitos trágicos da baixa de valores" de Nova Iorque, se incluía o suicídio do presidente de uma fábrica de tabacos "cujas acções desceram de 113 dólares para quatro".
"Alguns financeiros", adiantava ainda o jornal, "declararam não se esperar que a baixa se repercuta nos mercados europeus". Só que foi exactamente isso que aconteceu. Os mais afectados foram a Alemanha, Áustria, Inglaterra e França, por causa dos efeitos da I Guerra Mundial. Com a crise, o fluxo financeiro ligado aos empréstimos norte-americanos e às reparações de guerra estancou, fazendo um efeito dominó nestes países europeus.
Portugal em contracicloNo caso do mercado português, Pedro Lains, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, refere que este "estava relativamente isolado, pelo que o impacto não foi muito grande". A globalização, afirma, estava limitada, ao contrário do que sucede agora, devido aos níveis de proteccionismo europeus que se verificaram após a I Guerra Mundial. Além disso, acrescenta, é difícil contabilizar objectivamente o verdadeiro impacto docrash de 1929, uma vez que este factor se misturou com os vestígios da crise, aguda, vivida em Portugal por causa da guerra de 1914-1918.Nuno Valério e Rita de Sousa, investigadores do Departamento de Ciências Sociais do Instituto Superior de Economia e Gestão, afirmam que, após a política de estabilização iniciada em 1922 (com redução do défice e da dívida pública, aumento das reservas do Banco de Portugal e estabilidade cambial), Portugal teve um comportamento de contraciclo face à conjuntura internacional de crise. Os dois investigadores destacam a política de baixas taxas de juro e programas públicos de investimento que estimularam a economia na década de 30, bem como uma "maior eficiência na intermediação financeira que se reflectiu no aumento dos depósitos bancários".
Também Pedro Lains sublinha que se verifica uma expansão industrial e investimentos públicos, e que o ritmo de crescimento do PIB não é afectado. Este manteve-se, entre 1928 e 1939, regularmente positivo, com uma taxa anual da ordem dos 3,2 por cento.
Dois bancos falidosNa altura docrash, Portugal vivia debaixo da égide da ditadura militar, instaurada em 28 de Maio de 1926, e a figura de Salazar já se destacava como ministro das Finanças. Pedro Lains não tem dúvidas em sustentar que a crise de 1929 veio reforçar um ambiente propício para políticas autoritárias, dando-lhes argumentos como a necessidade de "protecção" face a um mundo tão conturbado. Foi vincada uma postura antiliberal, com o Estado a ditar as leis da economia, visível na aposta da industrialização de forma controlada (via condicionamento industrial).Mesmo assim, e se é certo que outras crises tinham afectado Portugal de forma muito mais grave, o país não ficou incólume. Registou-se uma queda nas exportações dos produtos tradicionais, como o vinho do Porto, conservas de peixe e cortiça, mas mais em valor do que em quantidade, o que foi compensado pela descida generalizada de preços.
As mais afectadas terão sido mesmo as exportações de matérias-primas das colónias, só que, como destaca Pedro Lains, estas não tinham grande influência na economia de Portugal. As remessas de emigrantes desceram, tal como diminuiu o fluxo da saída de portugueses para o estrangeiro, aumentando o desemprego, mas a quebra das remessas não era uma novidade, e a taxa de desempregados não terá ultrapassado os seis por cento (embora fosse mais grave na agricultura).
Os rendimentos de aplicações no estrangeiro levaram um golpe, mas depois dessa fase verificou-se, como se refere na História de Portugal dirigida por José Mattoso, um refluxo parcial de capitais para o sistema financeiro português. Houve, no entanto, bancos portugueses que não resistiram ao embate imediato. Uma crise revela sempre quem tem maiores fragilidades, e, neste caso, os contemplados foram entidades como o Banco Comercial do Porto (BCP) e o Banco do Minho.
O primeiro fora criado por dezenas de empresários do Porto em 1835, e, em 1853, tinha entre os seus accionistas diversas famílias ilustres desta cidade, como os Kopke, Van Zeller e Pinto de Magalhães. Já o Banco do Minho tinha nascido em 1864, em Braga, tendo em comum com o BCP, como destacam Nuno Valério e Rita de Sousa, o facto de ter nascido "na época do boom das remessas dos emigrantes no Brasil". O primeiro a falir foi o Banco do Minho, em 1933, e o BCP encerrou seis anos depois, vítimas de uma corrida aos depósitos e da sua incapacidade de cobertura.
Pedro Lains recorda que, nessa altura, "o sistema bancário era mais volátil", com várias entidades financeiras a abrir e outras a fechar, sendo o mercado preenchido por diversos bancos mais pequenos, logo, vulneráveis. Já o Banco Nacional Ultramarino, muito exposto aos negócios das colónias, onde tinha diversos investimentos e era o emissor de moeda (à excepção de Angola), só se salvou graças à intervenção do Estado e da Caixa Geral de Depósitos, que avançaram com uma injecção de liquidez.
Também a bolsa portuguesa sofreu com o colapso dos EUA, conforme destacam Nuno Valério e Rita de Sousa. Houve um "declínio das cotações" na bolsa portuguesa em 1929, que, no entanto, abrandou logo a partir de 1931. Ocrash de 1929 passou, sem dúvida, por Portugal, mas a verdade é que não deixou grandes marcas.