37º 17" N, 32º 16" W Dez horas e meia à procura das chaminés do Atlântico

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A equipa põe na água o aparelho que permitirá determinar a posição do veículo de operação remota face ao navio dr

Vai ficar na história da exploração portuguesa dos oceanos: pela primeira vez um veículo submarino do país mergulhou nas fontes que lançam fluidos quentes, a grande profundidade. Lucky Strike, o sítio do mergulho, tem destas chaminés fumegantes, no meio do Atlântico. Retratos de uma viagem até lá.

Puseram o pão a fazer numa máquina própria, que o fermenta e coze ali mesmo, na bancada do laboratório, não muito longe de amostras de rochas e corais trazidos do fundo do mar ou dos coletes salva-vidas. Promessa, portanto, de pão quentinho com presunto e queijo para todos, num piquenique nocturno, recompensa pelo esforço de acompanhar horas a fio a primeira viagem de um robô submarino português a um campo de fontes hidrotermais.

O cheiro a pão não tarda a espalhar-se pelo laboratório, com porta aberta para o convés do navio oceanográfico. Falta é muito para saborear uma fatia, num bar improvisado em frente ao laboratório, no convés a céu aberto, com direito a estrelas que oscilam ao ritmo dos balanços do navio e caixas de plásticos azuis a servir de bancos. Blue Bar é a alcunha que ganhou. A equipa de 14 pessoas, entre cientistas e técnicos, está com a cabeça noutro lado, não no pão que tanto gosta, nem nos momentos de descontracção tardia no Blue Bar.

Estão embrenhados numa viagem de exploração pelo interior do mar, como personagens de um filme que não passa de todo num cinema perto de si. Só passou, há apenas uns dias, a bordo do navioAlmirante Gago Coutinho, 180 milhas náuticas a sudoeste do Faial. Coordenadas: 37º 17" N, 32º 16" W, por cima do campo hidrotermal Lucky Strike, escondido sob 1700 metros de oceano. Protagonista: o Luso, um veículo de operação remota (ROV), não tripulado portanto, que é controlado à distância e transmite imagens do fundo do mar para bordo.

Longa, a exibição iniciou-se numa quinta-feira à tarde e entrou pela madrugada fora do dia seguinte. Destino inicial no Lucky Strike: uma das suas chaminés, a Torre Eiffel, que é uma coluna de 20 metros de altura por onde saem fluidos quentes, que por vezes parecem fumo, numa mistura de água, gases, sais e metais.

Há três dias, desde a partida de Ponta Delgada, que a equipa anda a tentar mergulhar com o Luso nas fontes hidrotermais. Primeiro, dirigiu-se ao campo Menez Gwen, a 140 milhas a sudoeste do Faial e a 850 metros de profundidade. Para trás, já tinham ficado os enjoos no período de habituação ao mar e uma noite muito mal dormida, agitada pelos balanços do navio. Às vezes, parecia que ia cair-se do beliche e a cabeça andava à roda. Resultado, era impossível dormir profundamente e de manhã o corpo estava dorido de tanto lutar contra uma cama que não parava de mexer. Dava vontade de gritar: "Parem de abanar a cama, por favor!"

Para trás tinham ainda ficado vários mergulhos do ROV perto das ilhas açorianas, entre a Terceira e São Miguel - por exemplo, na bacia Hirondelle, uma cova no fundo do mar a mais três mil metros. Esse mergulho, o 45.º, foi o mais fundo até agora do Luso, que pode ir aos 6000 metros. Seis países têm veículos capazes de descer a essa profundidade, o que lhes permite visitar 97 por cento do fundo oceânico. Os basaltos, resultantes de uma erupção, que o ROV apanhou em Hirondelle, podem ajudar a completar o quebra-cabeças da construção dos Açores e a ter uma ideia mais clara de como surgiu a plataforma vulcânica em cima da qual assenta o arquipélago. Guardaram-nos no laboratório do navio, não muito longe das máquinas do pão, tal como corais ou esponjas apanhadas.

Mas no Menez Gwen o tempo trocou as voltas à missão. Ondas de mais de três metros e vento entre 30 a 40 quilómetros por hora não deixavam pôr o Luso na água. Por vezes, o mar entrava pelo convés. Para alguns, os enjoos voltaram. Outros, para não voltarem, tomavam comprimidos, que os punham a dormir encostados em qualquer canto do navio. Portanto, navegou-se um dia inteiro por cima do Menez Gwen, às voltas, ora para cima, ora para baixo, à espera que o tempo melhorasse.

Não melhorou, e o plano foi avançar mais para sul - para o Lucky Strike, a seis horas de distância, que foi descoberto em 1992 por uma equipa norte-americana, que, numa dragagem ao fundo do mar, trouxe logo um bocado de uma chaminé hidrotermal. Foi um golpe de sorte, daí o nome inglês. Por sinal, esse foi o primeiro de vários campos hidrotermais localizados nas águas dos Açores. Encontram-se na Dorsal Médio-Atlântica, uma cordilheira cujos cumes são cortados por inúmeras fracturas transversais, e onde nasce crosta terrestre nova e as placas tectónicas se afastam.

Onde está a Torre Eiffel?

Agora, com Ponta Delgada para trás há três dias, chegou o momento que todos tanto esperavam. Há mais de uma hora que o Luso vai sozinho a caminho da Torre Eiffel (saiu do convés onde estava estacionado às 16h55, hora de Lisboa). Propulsores ligados, leva as luzes sempre acesas e o que as suas câmaras transmitem na descida é monótono. Resume-se ao braço metálico do robô e a uma chuva miudinha constante, que nada mais é do que plâncton a passar-lhe pela frente.

"Viram algum tubarão?", provoca a geóloga Filipa Marques, da Faculdade de Ciências de Lisboa, sozinha na popa do navio, a controlar o desenrolar do cabo umbilical do ROV, por onde passam os comandos, comunicações e energia. Com uns grandes auscultadores enfiados na cabeça, microfone incluído, capacete e colete salva-vidas, fala com o piloto nos comandos do robô, que está sentado dentro de um contentor no convés. "Sim, sim", brinca o escocês John Roddy, piloto-instrutor (a formar 15 portugueses, de instituições e formações diversas, como pilotos do Luso). Ao lado dele, uma das coordenadoras do mergulho, também da Faculdade de Ciências de Lisboa, entra na brincadeira: "Vimos baleias", diz Ágata Dias. "E um elefante também", remata Roddy.

É assim que a equipa da Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental (ou EMEPC, grupo científico criado pelo Ministério da Defesa que comprou o robô) procura quebrar a monotonia da descida.

"Filipa, tenta ir um pouco mais devagar", pede Roddy, conforme observa o cabo umbilical num dos ecrãs, sempre atento para não se enrolar.

"Faltam 150 metros para o fundo", avisa Ágata Dias. "Está quase, está quase!", pula de excitação. A última vez que a geóloga se passeou pelo Lucky Strike foi em 2002, através das imagens captadas por um ROV francês.

Idem para o geólogo Nuno Lourenço, 38 anos, o chefe desta missão. Só que ele mergulhou (mesmo) aqui pela primeira vez há 15 anos, no submersível francêsNautile. Viu as fontes lá em baixo com os seus próprios olhos, pelas vigias de plástico grosso do submersível e agora prepara-se para explorar a mesma paisagem à distância, através de imagens captadas pelo ROV comprado no ano passado por Portugal, por três milhões de euros, a uma empresa norueguesa.

"Ah, já estamos a ver o fundo", atira Ágata Dias, ao olhar para os monitores no contentor, ao fim de hora e meia de monotonia. São 18h29, e lá fora o dia está a terminar de forma radiosa. Em redor, azul apenas.

Começa uma viagem em câmara lenta ao fundo do mar português, como se estivéssemos numa nave espacial e avançássemos às apalpadelas, à média de 300 metros por hora. "Isto sãopillow lavas", observa Nuno Lourenço, também no contentor. Conversa de geólogo descodificada: lavas em almofada, provenientes de erupções submarinas, com uma forma típica. "É o Lucky Strike como nunca o vimos antes", comenta, referindo-se às imagens de alta definição que o Luso consegue obter. Tanto quanto sabe, este campo nunca foi filmado com essa qualidade.

Como uma das coordenadoras do mergulho, na parte da geologia, Ágata Dias comunica, viawalkie-talkie, para o Centro de Aquisição de Dados (CAD), uma sala do navio onde outra geóloga regista os factos relevantes da viagem: "Aquilo no fundo sãopillow lavase existe cerca de dez por cento de sedimentos."

Nada da Torre Eiffel do Atlântico. O Lucky Strike fica numa zona com três pequenos vulcões a rodear um lago de lava arrefecida. À volta desse lago formaram-se as várias chaminés hidrotermais. A Torre Eiffel encontra-se num local plano, mas o cenário que o ROV mostra é inclinado.

"Podes ir ao topo do monte?", pede Nuno Lourenço a John Roddy, aos comandos do ROV no contentor,joystick na mão, recostado numa cadeira de costas altas, ambiente escuro, iluminado só pelo brilho de vários monitores. Neste espaço exíguo, a balançar e chiar à cadência da ondulação, sucedem-se as trocas entre os membros da equipa do ROV, ora para co-pilotar o veículo, ora para o pilotar com a supervisão de Roddy e do sueco Christian Landegren, outro piloto-instrutor.

Uma pista esbranquiçada

Com os olhos colados a um ecrã gigante, os ocupantes do contentor concentram-se na procura de certas cores no fundo do mar. A presença das fontes hidrotermais é denunciada por depósitos esbranquiçados (precipitações de sulfatos) e vermelhos (formados por oxidação do ferro e manganês). É no encalço dessas cores que anda o Luso.

"Começo a duvidar que a gente consiga encontrar alguma coisa", desabafa Ágata Dias, a certa altura.

Afastando-se do fundo, o Luso lança-se então num "voo" em busca da Torre Eiffel, pelo menos assim o espera a equipa, já que os mapas parecem ter um desfasamento com a realidade. A chuva miudinha está de volta: "Alô CAD, estão a gostar das chaminés?", ironiza Ágata Dias. "Ou está tudo a dormir?"

Do outro lado da comunicação, no CAD, há cadeiras dispostas em frente ao único ecrã na sala, qual cinema improvisado. Além de biólogos e geólogos, alguns membros da guarnição do navio não querem perder este filme, mesmo que tenha partes aborrecidas e até agora nada de especial tenha aparecido.

"Olha uma coisa branca", alguém diz no contentor. "Nadine [Pereira, engenheira geóloga a fazer o registo no CAD], podes escrever que no fundo existem sulfatos", comunica-lhe Ágata Dias pelowalkie-talkie. "Estamos muito perto", diz Filipa Marques, que entretanto foi substituída na popa e veio para o contentor. "Pode não ser a Torre Eiffel", contrapõe outra geóloga, Patrícia Conceição, da EMEPC. "Parece estar próxima, porque a concentração de depósitos aumentou", acrescenta Ágata Dias.

E eis, por fim, a paisagem que tanto procuravam: um tremelicar característico da saída de fluidos quentes nas fontes hidrotermais. "Há aqui uma chaminé!", aponta Filipa Marques. "Ali há outra."

Trocam-se beijos entre as geólogas. É uma fonte hidrotermal discreta, é certo, mas é a primeira observada por um robô submarino português, no seu mergulho de estreia neste tipo de ambiente. À semelhança de outras fontes hidrotermais de profundidade dos Açores, o Lucky Strike tem sido visitado por muitas missões estrangeiras, com submersíveis e robôs. Os cientistas portugueses são convidados habituais, sobretudo nas missões francesas, como aconteceu com Ágata Dias e Nuno Lourenço, mas estavam sempre dependentes destas boleias. Isso mudou com este mergulho, cem por cento português, desde os cientistas e o navio envolvidos até ao veículo de exploração.

O Pequeno Fumador

Porquê tanto interesse nas fontes hidrotermais? As primeiras a serem descobertas, em 1976, no Pacífico, mostraram formas de vida inesperadas em redor destas emanações de água quente do interior da Terra, cuja temperatura pode ultrapassar os 300 graus Celsius. Há lá uma abundância de vida, que é independente da luz solar e da fotossíntese. Na base da cadeia alimentar estão, por exemplo, bactérias resistentes ao calor: extraem das fontes elementos químicos que constituem os seus nutrientes.

Além disto, nas chaminés hidrotermais acumulam-se metais, como cobre, ferro ou ouro, pelo que têm um potencial económico. Por sua vez, as bactérias podem ser um recurso genético a explorar. "Ou estudamos isto ou alguém estudará por nós. Ou geramos riqueza a partir disto ou alguém a vai sacar por nós", diria mais tarde Nuno Lourenço.

Ora, as bactérias são facilmente visíveis na primeira fonte vista pelo Luso: os filamentos brancos que formam, ondulando como pequenos cabelos, não enganam. E não faltam mexilhões, outros habitantes habituais das fontes, que se alimentam das bactérias.

"Não estou a reconhecer esta chaminé de lado nenhum", desabafa Nuno Lourenço. Na verdade, ainda andam um pouco perdidos. Continuam com o problema nas coordenadas das chaminés do Lucky Strike (provenientes de fontes de informação distintas). Talvez a Torre Eiffel, Timor, a Estátua da Liberdade, Toilet, Tony Blair, Mário Soares, Sintra ou o Bairro Alto não estejam onde a equipa supõe que estão. Nuno Lourenço não teve a tentação de rever uma das chaminés com o seu nome, encontrada na missão em que participou em 1994. Seria egocêntrico de mais, diz. Nuno, o Pequeno Fumador, é uma fonte que deita poucos fluidos e, como o geólogo estava a tentar deixar de fumar, a equipa lembrou-se de pôr o nome dele no fundo do mar.

Pouco depois, encontram a primeira chaminé visivelmente "fumegante". Parece sair um fumo acinzentado; na verdade são os fluidos quentes. Será que a Torre Eiffel vai aparecer? Ainda não - e o robô lá segue caminho. "Estou triste. Queria ver a Torre Eiffel e recolher sedimentos", desabafa Ágata Dias. Sempre que o robô vai em voo, o filme perde interesse. "Às vezes, apetece-me pôr o pé no acelerador", exaspera-se a geóloga.

Pelos altifalantes do navio, anuncia-se: "Guarnição, o jantar vai ser servido." Significa que são 19h15 em ponto (hora dos Açores, menos uma que em Lisboa) e, no meio da excitação, Ágata Dias ainda diz que não consegue ir jantar. Lá acaba por ir rapidamente ao encontro de um creme de cenoura e um bife de peru grelhado.

"Olha, olha", chama a atenção, algum tempo depois, Mónica Albuquerque, da EMEPC e coordenadora do mergulho na parte da biologia, com o nariz colado ao grande monitor no CAD. Um submersível andou por ali sem margem de dúvidas: a prova está nos sacos de lastro que largou no fundo para subir. Não tarda a ver-se um orifício de saída de fluidos quentes, apinhado de mexilhões abertos e alguns camarões.

Uma tampa no fundo do mar

O filme já vai longo. São 22h47, e será que é desta vez que o momento alto se aproxima? "Parece estar-se na base de uma grande chaminé, mas temos de ir para cima para ver. Os orifícios estão cheios de vida biológica e o fluido é transparente", diz Patrícia Conceição. É a Torre Eiffel. Finalmente.

Chega-nos um grande plano dos mexilhões. "Esta imagem é mesmo espectacular, é brutal", exclama Rui Gomes, engenheiro electrotécnico da Universidade do Porto e um dos pilotos do ROV em formação. "Epá, que coisa mais louca", ouve-se ainda. "Muito giro", completa alguém.

As visitas anteriores ao local são bem visíveis. Há marcos no chão, a deixar bem claro que alguém esteve lá antes. Há equipamentos de investigação que apontam directamente para pequenas chaminés laterais na grande torre. Vagueando chaminé acima, o robô cruza-se com os filamentos de bactérias, os caranguejos, os camarões. Às 23h20, o topo é atingido, como se de uma conquista do Evereste se tratasse.

Mas nem um vislumbre de uma das grandes chaminés laterais no conjunto da Torre Eiffel, conhecida por expelir fluidos negros (são todos cinzentos ou incolores). Onde está essa chaminé "negra"? "Não está lá, o que é curioso", responde Nuno Lourenço.

Não ficou, no entanto, por cumprir o desejo de ver uma chaminé "negra", sinal da presença de muitos metais. Estas bocas fumegantes do planeta impressionam, e o Luso bem tenta captar com nitidez a que, deixada a Torre Eiffel para trás, lhe apareceu a poucos metros de distância. Sem poder pousar no chão, porque está a pairar, as suas câmaras não conseguem registar em grande plano esse outro momento alto da viagem.

À sétima fonte hidrotermal encontrada, o mergulho é dado por terminado, e às 3h25 o Luso chega a bordo do navio. "Temos de verificar se descobrimos novas chaminés. Algumas não tinham marcadores", resume o chefe da missão. Dez horas e 30 minutos foi quanto demorou a primeira viagem exploratória portuguesa às fontes hidrotermais - um feito assinalado simbolicamente antes da partida do fundo. No cimo da última chaminé, entre os mexilhões, o braço metálico do Luso deixou plantado um marco: uma tampa branca com as letras PT, a sigla de Portugal. "Fizemos uma declaração: também conseguimos", diz Nuno Lourenço.

Assim que o robô estaciona no navio, onde é atado, o convés entra num frenesim. Andam todos à sua volta, alguns empoleirados, a confirmar se chegou em condições e a retirar as amostras que traz. Bichos sugados por um aspirador, rochas apanhadas com um dos braços metálicos, garrafas com água e sedimentos: tudo é transportado para o laboratório em frente ao Blue Bar, onde os cientistas se apinham num vaivém.

Chega a hora de dar uso às caixas azuis, saborear o pão, soltar umas gargalhadas. Nada melhor para aprofundar a ligação entre a equipa e descomprimir depois de um longo mergulho. De manhã, o acordar é que será difícil: quem saltou o pequeno-almoço vai confrontar-se, para a primeira refeição do dia, com uma feijoada à transmontana.a

teresa.firmino@publico.pt
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