Ele entrou no coração doregime iranianopara mostrar que "não háum lado bom"EntrevistaMehran Tamadon

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O arquitecto e cineasta iraniano Mehran Tamadon saiu do seu "pequeno mundo intelectual, burguês, classe média" para entender a milícia que protege a República Islâmica. Fez um filme sobre osbassijis- em competição no DocLisboa -, mas as certezas deles, zelotas religiosos, não dissiparam as dúvidas dele, ateu e órfão de um comunista

Num átrio da Culturgest, em Lisboa, Mehran Tamadon aparece sorridente e descontraído para a entrevista, que seria depois complementada pore-mail. Não há medo nas palavras, nem hesitação nos passos, sensações que o acompanharam, durante dois anos, na rodagem deBassidji. Este filme, em competição no DocLisboa, pode ser (re)visto hoje, às 21h, no cinema Londres. Nascido em Teerão há 37 anos, Tamadon chegou a França aos 12. Não para fugir da guerra com o Iraque (1980-88), mas das "restrições sociais" que incomodavam a sua irmã e a sua mãe, viúva de um opositor comunista do Xá. Em 2000, depois de concluir a licenciatura na École d"Architecture de Paris, regressou ao Irão e aqui começou a conviver com elementos da milícia Bassij (Mobilização). Convidoubassijispara a sua casa, onde eles "comeram, dormiram e falaram com mulheres sem véu". Através deles chegou a Nader Malek-kandi, 46 anos, e a Mohammad Pourkarim, de 28, os protagonistas do seu segundo documentário, depois deMères de Martyrs. Muitos dos seus amigos criticaram-no por ele ter "tentado humanizar gente que tortura e mata". Ele diz que é importante "negociar e manter o diálogo", para ajudar a reformar o sistema "a partir do seu interior".

Como surgiu a ideia de fazerBassidji?

Em 2002-2003, fiz um primeiro filme, Mères de Martyres, sobre as mães dos que morreram na guerra entre o Irão e o Iraque e que vão chorar os seus filhos. Nesse cemitério, Behesht-Zahra, apercebi-me da presença dosbassijis. Tentei ser provocador e perguntei-lhes se era possível estabelecer um diálogo. O meu filme mostra desde o início uma visão antropológica. Eu queria compreender os seus rituais.

Desconhecia esses rituais?

Sim, eram novos. Por exemplo, quando eles ficam às escuras [há uma cena, durante a evocação do martírio do Imã Hussein, uma das maiores figuras do islão xiita, em que os membros de uma associação religiosa se despem, batem nos seus corpos, choram e gritam], foi a primeira vez na vida que me vi num lugar assim.

Mas não conhecia os rituais da autoflagelação?

Esses eu conhecia. Mas não aquela cena no escuro em que, num acto instantâneo, todos os homens começam a chorar ao mesmo tempo. Bastava uma palavra para eles chorarem. Palavras-chave como "sede". Vemos frequentemente cenas de flagelação nas ruas, mas estas, no escuro, são isoladas.

Como é que preparou este filme?

O meu objectivo era enfrentar o outro que é muito diferente de mim. O meu meio é muito pequeno, muito fechado, intelectual, burguês, de classe média. Foi a vontade de quebrar essa barreira que me fez fazer este filme. Tornei-me amigo de alguns bassijis. Convidei-os a vir até ao meu apartamento em Teerão onde vivi de 2000 até 2004 (de 1984 até 2000 vivi em França, depois conheci a minha mulher no Irão, uma francesa que estava de férias, e em 2004 fomos viver para Paris, onde nos casámos e temos dois filhos). Algunsbassijiscomeram e dormiram na minha casa. Convidei amigos, incluindo raparigas sem véu, e tivemos discussões francas. Está a verbassijis a falar com mulheres sem véu? Os preconceitos caíram. Eu filmei-os, mas não os integrei na montagem final. Não os filmei para serem personagens, mas foi uma experiência singular.

Por que se concentrou em Nader Malek-kandi (46 anos) e Mohammad Pourkarim (28)?

O jovem Mohammad participou na repressão dos estudantes [em 1999] e Malek-kandi não, mas fez a guerra. Eles pertencem a dois tempos - o tempo da guerra e o tempo actual.

Acha que eles o aceitaram bem por ser um iraniano a viver no estrangeiro?

Não tendo sofrido sob o domínio dos bassijis- como muitos dos meus amigos -, demonstrei um maior distanciamento e uma certa ingenuidade em relação aos que me permitiram entrar em contacto com eles. Sobretudo, poder ouvi-los sem ódio (mesmo que eu me mantivesse consciente do papel que eles desempenham no regime). Os que, durante toda a sua infância e adolescência, sempre conheceram a propaganda do regime e sofreram a violência exercida pelosbassijis dificilmente darão um passo na direcção deles, para tentar compreender quem são eles, o que se esconde por detrás de uma fachada aparentemente uniforme. Um dos meus amigos disse-me: "Só tu podias fazer este filme, e ainda bem que o fizeste. Eu não seria capaz de o fazer."

Mas reconhece que também teve amigos que o criticaram.

Criticaram-me, em debates posteriores à projecção do filme, de ter humanizado pessoas que defendem um regime opressor. Sim, efectivamente, isso aconteceu. São seres humanos que apoiam o regime. A história das ditaduras e dos regimes sanguinários sempre mostrou isso: os algozes não são monstros mas indivíduos comuns incorporados num sistema, ou seja, somos todos pequenos algozes ou fascistas potenciais, e é preciso estarmos vigilantes para não nos tornarmos isso. Muitas pessoas bem-intencionadas demonstram uma intolerância extrema porque pensam que fazem parte do "lado bom". Mas não há um "lado bom". Não tenho problema por, no filme, os bassijis parecerem humanizados (na montagem, não fiz qualquer esforço nesse sentido), porque se percebe que eles participam num sistema repressivo. Não oculto a responsabilidade deles no sistema. Eles, aliás, assumem isso sem complexos (como na sequência de moto com Mohammad). Ao fazer este filme, compreendi que as pessoas podem ser simpáticas e fraternas, individualmente, apesar de defenderem um sistema colectivo repressivo, e tudo isso em nome de uma crença que eles não questionam. Como pessoa, senti que Malek-kandi simpatizava comigo [apesar de Tamadon se assumir como um ateu, filho de um comunista e casado com uma estrangeira que bebe álcool]. Mas isso não o impede de continuar a defender, categoricamente, o Guia [Ali Khamenei] e a repressão.

Filmou durante dois anos, de 2006 a 2008, nunca teve medo?

O medo está sempre presente. O medo do perigo. Sentimos que nunca saíamos de uma prisão. Dou passos tímidos, hesito muito, procuro as palavras certas. Vivi sempre inquieto, e isso vê-se em toda a rodagem do filme.

Mostrou o filme aos protagonistas antes da versão final?

Malek-kandi queria ver o filme e eu montei uma versão mais longa, de cerca de quatro horas, que ambos visionámos, porque ele está muito exposto. Aparece o mullah da sua associação religiosa, aparece o seu pai. Vemos o seu gabinete. Ele queria ter a certeza de que não iria ser manipulado. É compreensível. [No visionamento], agiu como um censor. Queria que eu eliminasse palavras que o incomodavam. Recomendei-lhe que olhasse o projecto na globalidade, que visse se, apesar de pormenores de que não gostava, não teria vergonha de mostrar o filme ao seu pai e aos seus amigos. Acabou por aceitar. Uma etapa foi ultrapassada e isso foi importante, para mim, porque tudo pode ser negociado. Penso que a democracia é uma negociação para partilhar o poder.

Por que defende tanto esta ideia de diálogo com o regime?

Devemos esforçar-nos por falar com os bassijis, porque não há alternativa! É certo que a situação mudou um pouco depois das eleições [presidenciais de Junho último], mas, até então, vivíamos numa sociedade dominada por pessoas que têm um apoio popular importante e que, há 30 anos, estão agarradas ao poder. Penso que a única maneira de as coisas mudarem no Irão é reformando o sistema a partir do seu interior. Se abandonarmos a cena pública aos mais conservadores, se permanecermos encerrados nos nossos bairros e meios mais ou menos privilegiados, não há qualquer razão para haver mudanças. Considero este filme um espaço público em que tomei a liberdade de me mostrar tal qual sou, sem me censurar, e onde estabeleço um diálogo que não existe hoje na sociedade iraniana.

Você pergunta aosbassijisse há alternativa à religião e quando é que, depois de 30 anos, os iranianos vão deixar de se sentir vítimas. Conseguiu as respostas que procurava?

Não! As respostas deles eram preparadas. Não eram espontâneas. Eram as respostas do regime de que eles se apropriaram. Eles têm muitas certezas e eu tenho muitas dúvidas.

O Irão é um país fracturado onde há um campo que olha para o futuro e outro que quer manter-se no passado?

Bem, mesmo os que falam de mártires têm contacto e interessam-se pela modernidade. Eles usam as novas tecnologias para os seus próprios fins. Malek-kandi é um excelente informático, estudou Física na universidade, conhece bem poesia. É um letrado, não é inculto. Quando ele aceita entrar em debate comigo, está a reconhecer, implicitamente, que há um problema. Os iranianos, de um modo geral, estão prontos para reformas. Até os bassijis, mas é preciso primeiro que os decisores políticos evoluam. E eles não evoluem. Osbassijis funcionam como uma organização que é capaz de fazer coisas totalmente diferentes: são combatentes numa guerra e servem de socorristas quando há um tremor de terra; reprimem manifestações [como os protestos contra a reeleição do Presidente Ahmadinejad] e participam em campanhas de vacinação nacional contra a poliomielite. São polivalentes.

O seu filme obteve licença para ser distribuído no Irão?

Só em DVD e no mercado negro. Eles não gostam da parte em que eu digo que não acredito em Deus.

Qual será o seu próximo filme?

Eu planeava fazer um filme sobre a revolução [islâmica de 1979]. Queria falar com alguns protagonistas, mas, depois dos acontecimentos de Junho, vai ser muito mais difícil, porque muitos deles [agora no campo reformador] encontram-se na prisão.

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